Experimente passar um domingo em casa. Sem tirar os pés do chão do apartamento – se você mora em apartamento – ou do chão da casa – se você mora em casa. Mora já nas nuvens? Ah, meu irmão, então vai te fuder.
Experimente passar um domingo em casa. Sem botar o nariz fora da janela, nem a pontinha – se você tem narizinho – ou a pontona – se você é um clone do Cyrano de Bergerac.
Experimente passar o domingo em casa, sem falar com ninguém. Despache todo mundo, a mulher, ou o marido, os filhos, dê folga pra empregada e um sonífero pro cão amarrado, bem amarradinho, no fundo do quintal.
Tire a TV da tomada. O liquidificador da tomada. A torradeira de pão da tomada. Não desligue a geladeira, porque, sem a ligação com a tomada a bicha não gela nem faz o essencial para um domingão em solitário: cubos de gelo. Cubos de gelo em profusão.
Mas de nada serve água congelada em forminhas plásticas se o distinto senhor ou senhora disposto, disposta, a atravessar a aridez do santo dia qual eremita no deserto não dispor de uma boa garrafa de um uísque com vergonha no rótulo – um doze anos, pra começar.
Esqueça o macluhanismo e meta a mão no que tiver ao alcance da sua: vitrola portátil, garrard, cd player, stereo sound system, ipod, mp3, mp4, cinco, seis, trinta e um alerta lá vou eu – aqui o negócio não é mensagem enquanto meio nem versa e vice.
Aqui o negócio, o lance, a coisa, palavrinha mágica, é Kind of blue. Não é pra começar, nem pra terminar, nem pra início de conversa nem de papo que a ordem – falei, derna o início – é silêncio de cordas vocais, de amígdalas, faringe, traquéia, diafragma, caralho a quatro. Então, o disco, bolacha, compact, eme-pê, long play, long tall sally metafórico é esse mesmo: Kind of blue. Columbia records, 1959.
Trompete, sax alto, sax tenor, piano, baixo e bateria numa briga coreográfica, balé aritmético, dança dos cinco elementos, preciso, exato, pleno de imperfeições perfeitas. Parece um brinquedo Lego: tudo se encaixa. Quando menos se espera, você montou um aeroplano de duas hélices, uma moto de não sei quantas cilindradas, um microscópio ou um astrolábio. Só de ouvido, sem tocar nas peças – e que peças: Miles Davis, John Coltrane, Jimmy Cobb, Cannonball Adderley, Wynton Kelly, Paul Chambers e Bill Evans – que comparou as improvisações da turma à disciplina dos calígrafos japoneses (cuja arte ele associou à “disciplina” e a uma certa “espontaneidade forçada”).
Posto o som para tocar, arrume uma cadeira confortável e de preferência discretamente reclinável e uma janela onde você se colocará diante pra se sentir... adiante.
Além.
Muito além.
Experimente passar o domingo além.
[Imagem do filme de Peter Greenway, The pillow book, 1996]