sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Mormaço






Me deixou esperando na soleira. Sem sombra. Pedra brilhante. Toquei a campainha três vezes, feito o galo de Pedro, noite do suplício. Fingiu que não escutou. A campainha está com problemas, ah, é, rapariga. Problemas vai ter você agora, a partir de hoje. Inda pensei em ligar, mas não liguei. Antes da quarta, a empregada surgiu no fundo do jardim, tava aguando as plantas. A campainha está com problemas, repetiu, desculpa. Tem de quê, não. Faço riso sério, abro o jornal do dia, quase intacto. Cruzo as pernas. Aprumo os óculos no meio da venta. Cara de mau. Celular desligado. Quero ninguém perturbando nosso encontro. Me mostrará hoje a caixinha chinesa? Sei. Desconfio, não. Chega minuto depois. Trouxe a chave, molhe de. Se atrapalha diante da bolsa aberta, couro cru e macio. Pintou os cabelos. Graúna. Passou por mim, e, boa tarde. Boa. Voltou, mais um minuto. Fechei o jornal, desdobrei as pernas, me indicou a porta aberta. Eu falei, eu tinha que falar, puta sol lá fora. Não quero trazê-lo pra cá dentro. O que eu quero dizer com isso, o que significa exatamente isso – assim, que não quero ficar sob sol. O ar condicionado no mínimo, deitei na cama, ela, ao lado. O quimono japonês fez a clássica dobra, entreviu o seio, a curva do. Um tufo de pelos caiu pela testa, espanou o nariz, ela pôs o dedinho na boca, outro percorreu meu peito. A caixinha, quase dizia, não disse. Que é isso do sol, perguntou. Muito sol, falei. Dói, ficar lá com os outros, todos se equilibrando no fio de poste derramado no chão. Me diz, quer dizer que está prestes a explodir, não falei isso, nada de combustão. Ela se levanta, some pelo quarto, sua voz caminha em pontos distantes, vejo apenas a estante de livros, lombadas em horizontes decrescentes. Agora, a voz às minhas costas, no alto da cabeça, os dedos percorrem os fios de cabelo, um após o outro, como a tecer coroas. Estou aborrecido comigo mesmo, falei, mais pensando na caixinha chinesa. Dessa vez foram as mãos a massagear o corpo inerte de cima abaixo, o quimono abrindo-se como leque, um calor de demônios derramando-se, uma boca tão fria, tão úmida, vulva fria e úmida e abissal por breves instantes. Não. Não quero que me toque, falou, levando o dedo ao lábio, como se uma coisa significasse silêncio e não outra. Planejamos tantas coisas, eu disse, vem sempre algo e cruza o caminho e nos desvia a rota. Como um gato, um cão, que atravessasse a frente do automóvel, perguntou, isso, isso, respondi. Um cão. Um gato. É um breve desvio de rota, altercação de bússola, mas o destino, mesmo vizinho, é tão distante. Gesticulei. Em algum ponto da conversa, não lembro o que dizia, gesticulei, como possuído. Boca seca, tosse miúda, uma preguiça mole arrodeando os músculos. Agora era o quimono que desfalecia no soalho de madeira, palco de tacos desfilando em tardes de verão. Hora líquida, de suores, salivas, espermas, fluidos vaginais. Cadê a caixinha, a pergunta só na memória embotada, sem eco o silêncio, gemido abafado. A boca que sorria emergindo na sombra do quarto. Dorme um pouco, sussurrou, ainda resta um quarto de hora. Então, sonhei. Que a outra moça chorava, retirando as bagagens do automóvel estacionado. Nem me perguntou como eu estava, como eu senti o suceder de mortes, ela disse, entre choros contidos e corpo em defesa. Com fúria a minha resposta, não, não perguntei, nem você, da semana passada, dos dias no deserto. Ela gemeu, e voltei a colocar a bagagem no interior da máquina. Depois, nos alpendres abertos, vento percorrendo tendas, refrigerando a tarde, ela se colocou bem próxima aos animais, todos doentes, lázaros em chamas calmas, alheia, como sempre, a tudo e em especial a mim. Tinha nas mãos um rato. De pêlo hirto e nariz cômico, rabo descarnado, ele abriu a boca e lhe engoliu quase toda a face, como em beijo canibalesco. E ela se entregou à carícia medonha, sem pudor, toda aberta e entregue a uma felicidade exótica, mundo vasto onde só cabia ela e seus temores, cada um deles domesticado, cada um deles prestes a morrer eternamente. E eu me virei e fui embora e deixei o alpendre e tendas ao vento pra trás, até que fosse apenas um ponto, minúsculo ponto no deserto, até que despertei, outra voz me chamando, seu tempo acabou, é hora de ir embora. Então, me vesti, deixei o dinheiro amassado sobre a mesa, globo de vidro, apertei sua mão. No salotinho escuro, percebi a sombra de outro homem na poltrona estreita, apenas as mãos, os sapatos de verniz escuro e lustroso, um anel vermelho no dedo, lenço branco ao peito magro. Seria ele, não eu, a assistir a abertura da caixa. Quanto a mim, restava a tarde com mil sóis e o hálito quente do exílio.
No salotinho escuro, percebi a sombra de outro homem na poltrona estreita, apenas as mãos, os sapatos de verniz escuro e lustroso, um anel vermelho no dedo, lenço branco ao peito magro. Seria ele, não eu, a assistir a abertura da caixa. Quanto a mim, restava a tarde com mil sóis e o hálito quente do exílio.

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