terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Ladyhawke


[Guido Crepax Acqua alta]


Ladyhawke tinha as mãos calejadas e olhos sonhadores.

Corpinho mignon.

Seios miúdos, na palma da mão em concha.

Uma boca devoradora de línguas, amor em pílulas.

Ladyhawke parou na cidade numa escala internacional. O que deveria durar algumas horas, demorou semanas. O aviãozinho que conduzia Ladyhawke era de uma companhia meia-boca, bandeira duma republiqueta sulamericana.

Ladyhawke ficou lá em casa, por uma piada de Deus, uma armadilha do destino, uma interpretação apressada do i-ching.

Não nos topamos de súbito. Ela tinha olhos sonhadores demais, olheiras minúsculas de quem quer amar com direito a casinha do Mickey Mouse e férias na Disneylândia. Eu estava mais para filtros amarelados e botelhas quentes na madrugada.

Além do mais a moça rescendia às plantations paulistas de quatro séculos – e tinha gravado nas retinas, impresso a ferro e fogo e água, o horror ao detergente lava-pratos que Paris obrigou-a a usar durante os anos em que os sonhos se estilhaçaram.

Ladyhawke voltava para casa. E não se deve confiar em quem está voltando para a casa – eu não sabia então.

Acompanhei-a à agência de turismo. Na calçada, o inverno agasalhava formigas. Ladyhawke usava um cachecol púrpura, emoldurando seus olhinhos sonhadores, de quem apenas findou um choro. As lágrimas são o melhor colírio e, se você quer seduzir alguém, dispense o abrigo das lentes escuras e ensaie um sorriso pipocando de dentes brancos, como um raio de sol depois da chuva. Ladyhawke e eu, na calçada da agência, um pôster de palmeiras recortadas na vitrine ao nosso lado: não, ainda não.

Os dias passavam. A velha fórmula: um após o outro.

No domingo fez sol. E fomos lagartear os corpos no parque às margens do rio X. Eu lhe passei um dos fones. Éramos jovens, o mundo todo era jovem e usava walkman com fitas cassetes. Eu tinha gravado um disco de Naná Vasconcelos, Saudades, pela ECM. Só ouvindo: um disco indescritível. Eu dum lado, ela doutro, os fios nos aproximando. As mãos sorrindo, ainda, cada um na sua. Um rebanho de ovelhas subiu a encosta, era um dia quente. Um ouvido mouco aos sons do universo, o outro mergulhado na comunhão dos sons do universo. Tínhamos de nos beijar. E nos beijamos.

Ela continuou com os olhinhos límpidos, sonhando nuvens.

Nos encontramos ainda uma vez, na Paulicéia. Ela me levou a um daqueles clubes quatrocentões, me deu de comer e beber, me abrigou num apartamento moderno, com lençóis brancos, móveis brancos e quadros brancos nas paredes.

Depois, nos separamos.

Semana passada me enviou uma carta – não era bem uma carta, mas. Dizia ter conhecido alguém: um mexicano. No início, pensei num sujeito de bigodes fartos e sombrero na cabeça, aquela casaca curta pregueada dos mariachis.

Ela escreveu:

– O mau humor de noites mal dormidas se transformou em dias com “areia” nos olhos e o tal sorrisinho no olhar.

Anos depois, eu fiquei feliz com a felicidade da moça. Mas não posso negar que, deitado no tapete de unhas, tive sonhos.

Que não posso revelar.

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