quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

uma crônica familiar de cecilia gianetti


"É quase Natal e, principalmente nas metrópoles, as pessoas se organizam em violentas hordas para fazer compras. Quem acredita no fim da família nuclear deveria observar o fenômeno - seguramente à distância, como eu, acuada num banquinho da praça de alimentação de um shopping center. As gangues familiares percorrem os shopping como arrastões de classe média, aglutinações de gente ávida por crediários e embrulhos, parcelamentos e cadastros que requerem CPF. Incapazes de desviar de qualquer um que tente olhar as vitrines sozinho, formam uma corrente que não se parte, unida por laços de sangue e consumo. Roubam-nos tempo, paciência e, às vezes, até mesmo uma lasca de nosso dedinho do pé, quando passam pisoteando o que houver pela frente. Seguem como um imenso trator, sem desviar nem mesmo quando lançamos um inútil "dá licença?".

O paizão vai de mãos dadas com a filhinha mais nova, uma criança que atinge agudos na freqüência de 20 Khz. São duas peças-chave do arrastão consumista, caminhando quase sempre emparelhadas a uma quase sempre rotunda mãe. Esta, por sua vez, carrega um pacote junto aos quadris, adicionando pelo menos mais 15cm à parede humana.

O comprador solitário tenta furar o cerco inicial, imaginando que estará livre para andar em seu próprio ritmo ao ultrapassar a barreira criança + pai + mãe + pacote. Tal configuração é uma armadilha: é aí, justamente, que se vê impedido pela segunda camada da família-em-compras. Para locomover-se outra vez com desenvoltura, terá de passar também pela filha crescida do casal, abraçada a um mastodonte bombado em academia, ambos estrategicamente posicionados mais à frente. A voz da moça é a versão teen dos agudos da caçula, agora ajustados para conversar sobre tópicos que tornam preferíveis os gritos ininteligíveis da pirralha. Esse fator é uma arma importante no processo de fragilização da vítima: a insalubridade dos diálogos da dupla de adolescentes confunde seu raciocínio, imobolizando a presa enquanto dura o assunto do casal.

Se conseguir retomar a consciência e ultrapassar esse nível do arrastão, surgirá em seu caminho o obstáculo móvel: um guri de mais ou menos 5 anos de idade que se desprendeu da mão da mãe (lembre-se: ela está na retaguarda da operação, carregando um enorme pacote) e agora fica saracoteando lá na frente do grupo. Conforme o corpo estranho - comprador solitário - tenta retornar ao mundo exterior, indo para a esquerda, o guri vai para o mesmo lado; quando tenta escapar pela direita, ele acompanha seu movimento outra vez, ad nauseum.

Quem cai nesse redemoinho pode ser arrastado por quilômetros até que consiga terminar suas compras. Ou sem que jamais possa fazer o que pretendia no shopping. Há o caso de K., para citar apenas um exemplo, que, feito refém de uma família de consumidores selvagem e numerosa na semana do Natal passado, foi expelido de volta ao shopping tarde demais. Mais ou menos em abril deste ano, quando acabou novamente capturado por outra família, nas Lojas Americanas, durante uma promoção de ovos de Páscoa."

Cecília Gianetti

Um comentário:

Anônimo disse...

nauseam...