sexta-feira, 28 de setembro de 2007

satellite of love | yesterday



alpendre ouvindo Michael Brook albino alligator 1997 4AD




quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Quero casar com Charles Cosac

Folheie as páginas da CartaCapital 463 ainda nas bancas e diga se não tenho minhas razões que a própria razão reconhece: virando a de número 65, meia página emoldurada pelo corpo defunto de Ernesto Guevara, mais 1/3 inferior com o dedo acusatório de Lyndon Johnson, o leitor dá de cara com 2/4 de pura frescura, na melhor acepção da palavra.

Uma frescura mística.

O retrato de Charles Cosac, editor da mais luxuosa editora jamais vista na Terra dos Papagaios.

No meio de uma floresta encarnada.

A tela na parede de fundo é vermelha, vermelho o tapete que veste o chão, onde o dândi, de ladinho, debruça o olhar inquieto para além da página, para além dos excessos do mundo.

O terno é preto, como convém a qualquer criatura celestial que tenha parte com o submundo – não o submundo tolo da terra dos homens, tropa de elite e que tais, mas o submundo mesmo, as entranhas da terra, Quinto, Quinta dos Infernos.

Todo anjo é terrível, parece ser a epígrafe. Invés, a didascália clama pelos gritos e sussurros de Ingmar.

Se o terno e as listras do quadro são pretos, as mãos são brancas, frágeis, imaculadas.

Branco é também o rosto oval bem escanhoado, alguns mililitros de gordura em discreto e vaporoso excesso.

Um quê de olheiras sutilmente relevadas combinando com o vinco no canto da boca.

O cabelo é comprido, ralo, repartido filosoficamente de ladinho, na direção contrária àquela aonde o corpo se inclina. É de uma geometria perfeita o retrato assinado por Olga Vlahou, ela mesma autora dos Retratos Capitais exibidos na última página da semanal. (Mas, não, aquilo não é lugar para exibir uma criatura dessas – está melhor assim: um L invertido de letras enquadrando um Retrato dos mais Capitais.)

Tem um quê de monstro sagrado, de festa profana, de mística tatibitate, de inferno glacial, de santidade martirizada.

Tem uma infinidade de leituras o retrato do senhor Cosac.

Como os livros que publica, mais importante que o conteúdo – maravilhosamente selecionado – é a forma.

Eu disse “mais – que”? Disse. Eu não deveria ter dito “tanto – quanto”? Não. Fica de bom tamanho o “maravilhosamente selecionado”. E não se fala mais nisso. Senão me enfio no ascensor e vocês verão.

Óbvio que não me enamorei daquela imagem, página meia-sete, diapasão de um ícone bizantino.

O rapaz não esconde os quarenta anos passados – a gordurinha sotto voce, os cabelos diáfanos e sem peso.

Um olho reza: “’Nenhum Cosac jamais fez exercícios’, afirma Charles, entre baforadas de cigarro.”

Pronto: apaixonei.

A mocinha que fez a reportagem – boa, mesmo – atende pelo nome de Cynara Menezes. Notem o Y, sublinhem o Z. É ela quem informa: o senhor Charles fuma três maços por dia. Ai, pecado, ela não diz a marca. Serão Marlboros vermelhos? Serão Santé gregos?

Também: chegou a tomar 45 litros de coca por dia. Charles: “Tive de escolher entre a vida e a Coca-Cola. Escolhi a vida por dois dias e foi terrível.” (Novo amor à segunda frase.)

Quem era mesmo aquela moça que ia pra cama usando apenas algumas gotas de Chanel número 5? Pois Charles, meu Charles, acrescenta um Valium 5 no penhoar invisível, roupa nova do imperador sírio. Sim, meninos, o bruto tem sangue árabe. Assim qualquer um abandona a heterodoxia e abraça de uma vez por todas o amor homo, uno, indivisível.

Charles em casaco de pele em São Petersburgo: outra foto.

Charles girando o mundo – Inglaterra, Rússia, França, Noruega, América (de Kafka, off course).

Charles que fala mal português. (Um leque, please, um abanico, por favor.)

Charles, Charles, Charles. O pai, opressor. A mãe, castradora. Um miliardário americano como padrinho. Godfather!

Charles, que “recebe os amigos de um em um”. Charles, que tem um elevador particular no seu duplex, e que não se acanha em subir sozinho aos aposentos deixando uma visita não mais querida abandonada, perplexa, no térreo, entre as panelas da cozinha (tenho certeza: todas de puro aço inoxidável).

A coleção de mulheres de Charles é imbatível: Virginia Woolf, Marguerite Duras, Katherine Mansfield, Karen Blixen.

E que pensas? Todas, na capa, assim: V. Woolf, M. Duras, K. Mansfield, K. Blixen.

Em compensação, ignorou a viúva Sales Gomes, e reuniu outras mulheres de três pês.

E os homens? Já levei Edgar Allan Poe, Georges Bataille, Giulio Carlo Argan, Manuel Bandeira, Elias Canetti, William Faulkner, Henry James, Adolfo Bioy Casares, João Antônio, e outros, pra cama. Um escarcéu dos diabos. E se não levei mais, foi por falta de dinheiro.

Gyula Krúdy, por exemplo, namorei, namorei, namorei, e ficou só nisso. “Foda adiada é foda perdida”, diz o ditado – que Charles me odiará se souber que o transcrevi.

Charles não toma sol, Charles voltou para o Brasil para ter uma casa. Abrir uma livraria. Charles provavelmente não sabe que o país é governado pelo Lula. Quem diabos seja Renan Calheiros. Nunca viu Mônica Veloso (e se viu, deu de ombros). Não posso afirmar, mas desconfio que o meu Charles pensa que Caetano já está morto, enterrado e venerado em algum lugar da Bahia ao lado de Glauber Rocha, coisa de zilhões de anos atrás.

Charles voltou para o Brasil só para me fazer apaixonar. Desconfio que, no casamento marcado, me abandonará, plantado, buquê de rosasangue na mão, em alguma igreja barroca, todos os putos zombando da minha cara, um ou outro querubim solidário às minhas lágrimas.

O rímel desfazendo meu rosto.

O coração destamainho.




quarta-feira, 26 de setembro de 2007

God Bessie You


Há 70 anos morria Bessie Smith.

Uma Billie Holiday ainda mais cru.

Ou crua.

Prefiro cru, mesmo.

Lenda viva, lenda morta: a peça teatral de Edward Albee afirma que ela recusou-se ser atendida num hospital de brancos.

Janis Joplin, branca na pele por um erro qualquer nos céus, disse:

- Bessie Smith me mostrou o ar, e como fazer para encher o ar.

The Blind Boys of City of Kings | Carlos de Souza


"Um galgo cavalga costelas nuas no beco da galinha morta"



Cachorro Magro [Fragmentos]


[...]
O cachorro atravessa a areia branca da praia molhando as patas na espuma pérola das ondas que morrem rubras de sangue no quebra mar Mastins de dentes afiados afiam as presas rasgam a carne dos infiéis em nome da cruz bandeiras tremulam sobre a amurada do fortim Tambores saúdam a boa vinda dos que chegam donos de tudo que antes fora de ninguém É o início da cruel jornada dos que vêm Canhões cospem ferro na areia branca da praia


James Joyce acorda de um sonho numa praia do Atlântico Sul toma um gole de whisky e recita: “Um ponto, cão vivente, crescia à vista correndo pelo escampo do areal”


É o cão chupando manga no meio do redemunho O cramunhão canho coisa-ruim não-sei-que-diga cujo coxo sujo o malandrim Tudo isso no panelão da raça negros, brancos, mulatos, caboclos afins A boa massa taça rasa da caça busca na fera lúcida um veio de testemunho queima na face rubra a chave do seu sim

[...]
No entanto meu poeta canta uma manhã com “miasmas de cerveja choca” enquanto o peixe apodrece no mercado público o renegado pede mais uma e mais uma e mais outra a fera ruge em seu peito que quer esganar o dia aquela mulher não quer seu desejo canino o menino esmolambado pede esmolas faminto como uma ferida aberta é a espuma leve dos dias mortos o arroto compulsório dos que não comem é este viver ordinário de quem nada espera o caminhar profundo dos homens rotos o esbugalhar de olhos sob a velha fome porque o futuro aguarda ali em frente com sua ceifa e seu ódio de cachorro insano
[...]
Areias de Jenipabu se misturam às de Alcácer Quibir Ai, meu Dom Sebastiãozinho armadura luzindo ao sol espadas tocadas a golpes de cimitarras que escorrem sangue Ai, a gente que trouxe essa dor tão nossa e tão antiga Ai, essa madeira que singrou as águas espumosas os nobres que tombaram nessa imensa praia potiguar Ai, meu tolo monarca desconhecido que morreu por nada o que tenho além dos grãos de areia dessa tua imagem tão pomposa e fugidia que parece raios de sol na prata de teus arreios e tu sozinho morrendo em uma manhã sem cor E eu aqui coitado chorando sobre esta duna potiguar O teu fadado sonho de glória e a vã cobiça de mandar
[...]
Eles chegam e penetram o canavial como quem já afundou mil navios o pau-brasil é o adobe de sua sala São os piratas sem navio destes mares verde cana que entopem suas veias
Com seu elmo prateado o homem brande a espada como se fosse um cão Cospe no prato indigesto do fraco indigente E aperta o cabo de madrepérola da pistola niquelada para enterrar na garganta da esfinge e esganar a pestífera férula faringe do esfarinhado Dorme sobre tombadilhos e trocadilhos como em barcos desesperados de vontade de estuprar violar nativos da terra virgem que gemem Come vomita dorme na cova dos condenados e sorri embevecido da dor que deveras sente


Seja um cão de guarda potiguar um legítimo cão pastor um cão de fila exemplar Erga suas preces ao céu e reze que alguém ouça que Ele venha lhe buscar Envolva bem sob seu manto o balbuciar de lábios trêmulos o tremelicar de dentes pêndulos que de nada valerá Tua hora urgente chegará no fio de uma boa espada no vão de uma grande escada na flecha de um Tupinambá
[...]
Empunhas a faca que é tua espada teu instrumento de identificação E morres na areia como um rei um besta menino português cavalgando as dunas da desgraça rolas pelo despenhadeiro do nada nadando em desespero vil Oh mais um gole de cachaça todo o suor do vale do Ceará-Mirim
[...]
Fugindo da matilha dos capitães do mato Correndo entre os labirintos da mata Pelo emaranhado das plantas sertão adentro em busca de um quilombo que me aquilombasse Mesmo assim guardei o amor pelos cães Ainda ressoam em meus ouvidos os latidos em meu encalço Meu corpo treme ao ouvir ainda o som dos gritos da morte Meus algozes por perto a dor da corda de cânhamo no pescoço As chibatadas as correntes o tronco E a humilhação de se saber gente no meio de tanta iniqüidade
[...]
É madrugada nos bordéis da rua São Pedro em Natal Entre sífilis podridão e vício oferto louros ao teu ofício sirvo no prato frio da morte tua vida de louca consorte As radiolas de ficha soltam música fuleira cervejas chocas ofuscam os odores da feira O amor não tem metáforas sãos frestas nas portas furadas são chatos nos lençóis fedidos Oh meu santo perdoai orai pro nobis e chorai As meninas pensam em casar enquanto seus dentes caem A beleza é um espelho atroz a realidade é o reverso feroz E assim uma cadela chamada Baleia uma baleia chamada Moby Dick um pescador chamado Santiago um profeta chamado Jonas um boneco chamado Pinóquio Desobediência é um sinal de morte Pinóquio chora no ventre do peixe Jonas blasfema contra Deus Santiago amaldiçoa os céus Moby Dick estraçalha o barco Baleia uiva por seu dono As letras traçam seu caminho ao léu
[...]
A velha joga água fria sobre os cães que copulam no meio da rua Uma mulher gorda dorme nua enquanto amamenta o bebê Moscas passeiam pela pele branca pelo bico rosado dos seios sugando gotas de leite cru Meninos olham aquela cena com olhos de nunca mais Depois seguem pelos becos para ver a cópula dos porcos e tocar punheta sobre o monturo O sexo na infância tem imagens confusas de bichos e mulheres gordas de seios grandes e focinhos idem A infância tem qualquer coisa de ruim de perverso e de inocente assim
[...]
Vejo o elmo brilhando ao sol e os mastins rasgando o ventre das índias grávidas em plena selva brasileira Vejo os navios portugueses rompendo a barratrazendo para o povo potiguar sua boa nova Vejo também a cor do sangue espumando entre os dentes alvos como a alma dos cães danados os cães no paraíso que virou inferno Minha memória canina não me trai
[...]
Uma tríade caminha pelo deserto Um trio canino espreita ao longe camelos que levam Reis modestos que vão louvar um menino assim contido em três entidades sem fim Pai, filho e espírito santo Equação mínima da religião ocidental Magos por que sacros Cachorros por que magros Também a estrela olha o céu Não há sol sobre seus véus Não há ouro, incenso e mirra Há o sangue dos índios mortos Há a ira do bandeirante feroz Há o clamor dos bárbaros morrendo no Vale do Assu Há o Forte dos Reis Magos os canhões explodindo além A caravana dos magos passa indolente e os cães dos potiguares não ladram nada
[...]
Teu nome é Cam e teus descendentes vagueiam pela vida pagando o preço de teu anátema Porque vistes a nudez de teu pai E desde os tempos imemoriais vagueiam pelo deserto arrastando seus molambos no rastro das caravanas São caçados a laço nas clareiras das florestas da Velha África São atirados nos porões dos navios negreiros Apodrecem nas fábricas da Velha Inglaterra Comem o pó do carvão nas minas infames Esfolam a pele enegrecida no corte da cana e morrem queimados no caldeirão de melaço dos engenhos de Brasil Esmolam pelas estradas Morrem nas secas do Nordeste arcaico Sonham entupidos de drogas nas ruas das cidades grandes do Novo Continente E tu nada podes fazer Pois teu olhar está mais fundo que o escuro fundo do anoitecer


Este ganido é para ti, Torquemada, filho do Demo Da escuridão da história do alarido das vozes de Espanha e Portugal que ressoam nos becos de Natal Os que queimaram o teatro de palha E a intolerância que ainda vigora nas mentes desta terra ignota Este poço de mediocridade enquanto a burrice quer triturar ossos, dedos e tendões Ouve-se a risada de Lúcifer A província afunda no nada o mesmo é sempre o molde do mesmo talhe de agora E o torrão “não consagra nem desconsagra” Enquanto os quadrúpedes passeiam sua pose pelas ruas pelas praças e cafés e arrotam sua sabedoria cagando tolices nas folhas dos jornais O bruto olha para o entardecer colhendo o fruto da imundície pobre terra do sol


Eu Filho da espada de Jerônimo de Albuquerque Os pés calejados de andar no tombadilho das caravelas que aportaram ao largo do pequeno grande Potengi Forniquei com as filhas do Imperador dos Camarões e fiz guerra aos holandeses Nada tenho a dizer de minha origem de cão feroz Sempre de pênis ereto disseminando a raça dos que trazem a pele pálida povoando praias e sertões com esta gente de cor ímpar a que chamam potiguar Trago em meu peito a gana dos malditos e em minha mão a adaga de prata Pois temo a noite escura o poço escuro em que atiraram o herói Jaguarari Tenho a fala fácil e o silêncio dos que sabem o fado final da morte Cravo em teu ventre o aço quente de minha volúpia e bebo o sangue amargo e doce de tua desejada inocência Para que mais tarde seja enfim louvado como o grande fazedor de raças gentes de toda essa gente Albuquerques, Homens, Maranhões a estirpe de Felipe, Surupiba e Janduís Cavo minha cova sob as serras E deito para dormir sobre a terra A meus pés minha raça fenece sob o peso da desgraça e ignomínia de seus pares Bebedores de sangue da miséria alheia Próceres ilustres forjados na limalha dos que lambem as botas do poder a pocilga onde espojam até hoje nos despojos imundos se seus descendentes carrapatos de curtume coprófagos da diarréia geral é o que resta de nossa epopéia secular
[...]


[Carlos de Souza, Cachorro magro. Natal: Sebo Vermelho/Edufrn, 1999]


terça-feira, 25 de setembro de 2007

The Blind Boys of City of Kings | Adriano de Sousa


"eu os vi eu os vejo"
o alvissareiro


eu português eu francês eu batavo eu americano bastardo ameríndio (ameraba) ex-tupi degredado na minha pele eu negrocafuzo mamaluco mulato eu branquelo mazombo caboclo confuso amarelo mofino sarará sebento eu pária de toda pátria que tomou por latrina cem léguas além da baía da traição

eu vi os cavalos argentários no mar eu ouvi o tropel da besta na barra os aventureiros de ceca e meca chegando para o saque eu vi os fodedores de almas jesuíta judeu calvinista os conversores de sangue e pau de tinta em ouro gado peixe gentio em ouro

eu vi as armas & os barões assinalados d’el-rey eu vi os brasões nas sacas de açúcar & cera & sal & algodão eu os vi eu os vejo os capitães-mores da perene indústria a esfolar os bugres que algum atoleimado tomou por entes olhai sob o lustro das plumas de escol cutucai as águias imperiais e vereis a velha escória os carcarás ronceiros cagando séculos nas nossas cabeçorras botai cobro nos probos da hora e revereis os ogros d’outrora pedreiros e colunas guabirus e praieiros saquaremas e luzias patriotas e corcundas uns & outros veros caraduras todos uns homens bons sinhôs sempiternos do pelourinho e do diário oficial eu os vi eu os vejo eu os revejo nos primogênitos ditosos lavando a égua à sombra de cajuais em acrílico olhai bem o néon nas fachadas da matrona quatrocentona e vereis o rubro do ferro a brasa imêmore nas ancas da noivinha do sol olhai bem os sinhozinhos que vendem dunas e entregam bundas de escravazinhas branquinhas e vereis a baba rútila do corsário enquanto acunha as cunhãs de potiguassu no regaço do puty-gi

eu vi como vendidos os índios da terra se deu princípio à povoação três casas de pedra e cal e umas dez dúzias de gentes ronceiras e rudes a pouco e pouco arrostaram os cordões de areia e uns lugares mais ferazes e os sítios mais vantajosos e desdobraram nos tabuleiros furtados a pacas jacus e veados e na lagoa da campina a cidade do rio grande uma nova amsterdã a esquina do continente o trampolim da vitória chave do brasil & cáes da europa londres nordestina a capital espacial do país do futuro uma perspectiva indefinida

olhai no que deu o sacrário dos meus amores a tecnatalópolis sonhada para raparigas núbeis e galalaus fúteis nos saraus suarentos a dez merréis por cabeça tamanha epifania tão belo delirium tremens penhorados a isso? um balneário assim assim uma boca de pó malhado uma aldeia onde gasta-se 200 pro galado da oca ao lado não ganhar 20 a cidade do já-teve a capital do já-foi he terra de ñhu proueito a mais perto que há no brasil a este reino não consagra nem desconsagra ninguém

olhai bem os mecenas e suas fulaninhas grifosas as doninhas dos mafuás da cultura da fartura de uísque e langor & mesuras com o meu o seu o nosso rico chapeuzinho

eu vi nos salões os fraldões das musas macróbias eu vi os fardões dos cardeais sonetistas eu vi os galardões dos marechais da crônica passando em revista a tropa de trepidantes tribufus eu vi os seis-botões dos bacharéis beletristinhos batendo uns epigramas na pia marmórea

olhai bem os príncipes de altiva vilania e vislumbrareis a linhagem ancestral os capitães-de-mato os capatazes de cangas e zangas dos joõesinhos de barro made in miami & das novíssimas sinhás de engenho artístico


olhai bem e enxergareis o mondrongo qual ética afinaria tal biscoito para a rafaméia? qual estética surdiria da ação entre amigos? ou a obra não seria tal cousa mas coisa mui diversa de tanta loisa e maripoisa?

então a obra seria talvez o montículo de palavras num canto de muro onde o monstrengo caísse de boca? então somos todos uns galos de briga riscando no terreiro da casa grande a barra da manhã? mas qual manhã medraria em rinha tão chã? e não somos todos burgueses ou menos na lépida contradança shottisch reisado bambelô entre linhos e faianças? e não somos todos larvas de soezes ou menos protoburgueses fodidos entre cobras criadas?

então não somos apenas o que fomos uns lambe-botas da história uns rufiões da linguagem uns pobres-diabos mourejando por uns cobres salafrários nas minas de sal do texto?

olhai bem a poetápolis mítica em cada bêbado um letrado em cada barnabé neurastênico um bardo olhai bem e me vereis entre tantos que não ousariam submeter a obra à prova do fogo leitor impertinente crítico sem compadres olhai bem e me vereis nas parelhas de pavões peripatéticos metrificando ressacas no beco da lama nas patotas de poetastros pagodeiros caitituando uns versinhos ao colunista de plantão no cova da onça no kazarão no raro sabor na esplêndida plêiade de onã que cassou os velhos livros para escrevê-los novos e ficou sem palavras

apurai as oiças e percebereis os meus pios de porta-voz dos parvos nesta língua do pê eu ouvi no ganzarino das ruas xaria não desce! canguleiro não sobe! o martelo agaloprado viva o senhor dão jão! morra a liberdade! no carnatal maxima lista aleluia! aleluia! feijão no prato! farinha na cuia!que durou só três dias

eu ouvi o clangooooooooor das tardes consteladas nos pés de maranhão danilo alberi & juca show garcia hélcio & dedé silva marinho eu ouvi o musgo crescer nas frinchas do frasqueirão na noite em que alberi cevado em álcool e ócio marcado homem a homem pelo mito bateu a última bola de trivela

eu ouvi a vasa do sangue fervendo nas quebradas do potengi estuário da mia malinconia minha casa de água e sol detonada pelo mar na boca da barra meu manipanso traído onde esta santa parar por nossa senhora do rosário nenhuma desgraça acontecerá meu rio grande sem sorte crucificado entre líricos e usurários expelido para o mangue em marés de chumbo mistificado por nosotros fazedores de riverruns sem rigor tá vendo aquele vate ali seu moço? apois o cujo esquartejou o rio em tantas margens que nem deus

eu o vejo cão cego a farejar o território demarcado a vômito valium e versos sem vigor chambaril tirraguso bolívar casavelha chernobyl iarabar qualquercoisa buraco bodega tecoteco bocabar xavier pontocruzado artimanhas mintchura versiprosa a memória é uma cidade de nomes sem objetos de coisas órfãs de nomes de pronomes que não revelam ninguém olhai bem e o vereis carregá-la um sudário da sua carcaça de mancebo chapado

escuto-lhe o nome em vogais de escárnio que o vento arrola em redemunhos no caderno de agosto eu o vejo cuspir estrelas implumes entre sarças fátuas a iluminar tão-só o pânico dos caranguejos nas locas

eu o vejo macho mocho moço ancho desfilar sua pose de lord overdose entre ninfas de papel a poesia é sua corcunda a cidade sua página sem manchas de poesia

eu o vejo pastor de nuvens e de espumas que os olhos tomaram por rotas de fuga eu o ouço visionário vendido ao banal anunciar o devir sem porvir eu o vejo donatário do ar sesmeiro da estrela de pedra e callegar sua data uma gota de mar que a duna há-de beber eu o ouço galo gago banido da torre degradado no rés do chão cacarejar para a manhã mercantil uma salva que o terral há-de

[Adriano de Sousa, “O Alvissareiro”. In O Alvissareiro. Natal: Fundação José Augusto, 2001]

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

The Blind Boys of City of Kings | Ângelo Magalhães Silva



Capital não tem acrofobia
Para se estar na vertical, era necessário subir o Morro do Careca, na praia de Ponta Negra. Lá em cima, era só abrir os braços, sentir a brisa do mar e, da "cobertura", apreciar parte da cidade e do bairro. Subindo a Ladeira do Sol, se podia ver a Rua do Motor e parte do bairro das Rocas e o Forte. Era divertido, anti-stress, quase divino. Era desses pontos naturais que o natalense podia ver o espaço urbano de sua cidade, abaixo do seu nariz. Hoje, o caro é vê-la na horizontal.
Nos anos 60, em Natal estar na vertical era "démodé", "out", "estar por fora". Morar na horizontal é que era "dans", "in" e de acordo com os ditames sociais. Aqui não se olhava mais para cima, como durante a segunda guerra, pois no alto pouco se tinha para ver. Os raros conjuntos habitacionais térreos davam o ritmo da vida urbana. O natalense "espiava" na linha do horizonte. Os edifícios eram poucos e baixos. Para apreciar a cidade de cima era necessário ser empresário, trabalhar em banco ou ser um enfermo, internado no terceiro pavimento de algum hospital. Apenas 9% do total das edificações eram verticais e destinavam-se a estes serviços. Para o morador da Ribeira, Tirol, Petrópolis e Cidade Alta, isto era um sinal de bons tempos, modernidade, desenvolvimento e racionalidade.
A mudança do enfoque deu-se na década seguinte. Vários prédios foram construídos na Ribeira, Cidade Alta, Petrópolis e Tirol; 32 deles para uso diverso e 15 para fins residenciais. Todavia, no norte, sul, oeste e leste continuaram os conjuntos habitacionais tradicionais, como foi o caso dos conjuntos Ponta Negra e Alagamar, na zona sul, com 1.837 casas. Era um momento do crescimento demográfico e de ocupação de espaço e o início do dilema "viver na vertical ou na horizontal". Mas a regra era clara: "ainda não é bom subir muito alto".

Na década de oitenta a verticalidade se consolidou. Cresceu a atividade turística e comercial, expandiram-se as cooperativas habitacionais, as linhas de crédito para a aquisição da casa própria, novos conjuntos habitacionais foram edificados, requalificadas e construídas a Via Costeira e a Avenida Roberto Freire. Foram erguidos edifícios em espaços onde já existiam serviços de água, energia elétrica, calçamento, linhas telefônicas, transportes públicos etc. Os empresários da verticalidade transformaram o espaço das antigas casas de veraneio em espigões ou pousadas, trazendo a cidade para o modismo dos arranha-céus. Essa nova onda reconstruiu o cenário urbano ao seu modo, atraiu recursos externos, projetou Natal para o mundo imobiliário. Bairros como Cidade Alta, Lagoa Seca, Praia do Meio, Barro Vermelho, Tirol já tinham 124 edificações para uso residencial. A moda pegou e já não era mais preciso adoecer, para ver o mundo da vertical. O diagnóstico foi simples: o capital não tem acrofobia.

Os anos 90 foram de novos e arrojados investimentos, na vertical. Pensava-se em shoppings, hotéis, pousadas, áreas de lazer; pensava-se no turismo e na "exportação da cidade". Com a redução dos financiamentos para habitação, o mercado da horizontal foi desaquecido, e a partir de 1994, com o novo Plano Diretor da cidade, se intensificou a corrida para os espigões. A moda foi investir em áreas nobres e distantes do centro, sem muita estrutura urbana, mas com potencial de valorização. Cerca de 67% das novas edificações eram verticais, principalmente em Candelária, Capim Macio e Ponta Negra – só neste bairro, 13 edifícios. A partir desse ano, a solicitação de novos alvarás de edificação possibilitou subir mais alto, e em quase toda Natal.
Chega o novo milênio. Como o mundo não se acabou, é necessário ver o lado bom desse boom; vê-lo de cima, da vertical. A zona sul é o império do turismo e do capital imobiliário. Crescem os grandes empreendimentos imobiliários, os shoppings, redes de supermercados, grandes hotéis e mais pousadas. Na Natal cosmopolita se fala inglês, francês, italiano, alemão, norueguês, sueco e se intensifica a prostituição e o uso das drogas. Mas... agora, há os grandes residenciais na vertical, Corais do Atlântico, Sport park, Corais de Ponta Negra, Complexo Cidade Verde, Corais de Cotovelo e os Planos Cem, que chegaram e ficaram. Os moradores dos conjuntos Ponta Negra e Alagamar reclamam: "aqui tá ficando quente e perigoso". O Ministério Público também. A coisa esta perigosamente quente.

Os que contemplam Natal na vertical – e vêem a cidade olhando para baixo – dizem que tudo melhorou e acham que tudo está mais seguro, desde que se abra os braços e se sinta o vento em uma sacada – se possível, da cobertura. Todavia, os da horizontal, os que enxergam a cidade olhando para cima, reclamam por não terem mais espaço para estender seus braços e suas vidas. Todos, indistintamente, reclamam da falta de esgotos, da qualidade da água, do trânsito que começa a ficar caótico e das falhas da regulamentação para o crescimento da cidade. É caro ver a cidade de cima para baixo.

[escrito por Ângelo Magalhães Silva, sociólogo e pesquisador (angelomagalhaes@bol.com.br)]

domingo, 23 de setembro de 2007

The Blind Boys of City of Kings


Os três macaquinhos mágicos: cegos, cegos, cegos

cidadedosreis inaugura a manhã de domingo reencenando um texto escrito muitas primaveras atrás, coincidentemente numa manhã de domingo – sim, porque, dizem as folhinhas, é primavera, embora a melodia seja muito distante daquela dos velhos camaradas, Cassiano e Tim Maia.

Daí resgatar do fundo da gaveta um texto, sobre um livro fundamental para se entender esta Província, publicado hoje, abaixo. E um outro, garimpado nas páginas dos jornais da semana passada: um artigo do sociólogo Ângelo Magalhães Silva, que saiu meio escondido na página dois do Jornal de Hoje de 18 de setembro (amanhã, acima).

Foram enfeixados sob um título pomposo, assim, meio ao acaso.

Os garotos cegos possuem várias referências, a começar por uma foto tirada há algumas semanas na Galeria de Arte do Centro de Turismo – a contraluz, os reis magos parecem cegos. Como cegos parecemos todos nós que ousamos criticar o estátus cu da manada que perambula pela Cidade, se fartando nas varandas dos restaurantes pretensamente chiques, amalgamada nas colunas ditas sociais que se multiplicam como peste nos diários, tribunas, correios e, sim, jornais, e terminam por ser seus verdadeiros editoriais.

Aquela grei seria o equivalente da Elite Branca, alcunhada pelo então governador de SP, Cláudio Lembo. Seria, se não fosse esse sol caatingueiro que nos assola e do qual nos valemos para grilar terras em prol do colonizador de sempre. As meninotas de cabelos escovados, para ficar num só exemplo, fogem da praia como o diabo da cruz, em prol de uma pele diáfana que não denuncie o pé na senzala. E do mar, justamente, pela lisura da cabeleira que as redime, irmana e as tornam clones de si mesmas.

Cegos são também uns senhores do Alabama, berço do blues, cantoria de alforriados etc. Justa homenagem nessa geléia geral. Como não conheço toda a discografia, recomendo apenas um: Ben Harper and The Blind Boys of Alabama, There will be a light. 2004, Virgin records.

Cegos, por fim, são os moços-mendigos de Pieter Bruegel, o velho, conduzindo outros cegos, metáfora de nós mesmos, críticos críticos, nessa luta vã, insana, anjos exterminadores, clamantes nos desertos d’alma, tão imbuídos de boas intenções – as quais, como se sabe, superlotam o Inferno e seus afluentes.

The Blind Boys of City of Kings | Franklin Jorge

Luzia Dantas - o dragão da maldade contra o santo guerreiro, ou, o santo da maldade contra o dragão guerreiro, ou,


Kind of blue


A insônia não me surpreende às quatro da manhã: é domingo, e as manhãs de domingo servem a isso, acordar mais-que-cedo, capuchino, cigarros, water closed, café, cigarros. Cigarros. E livros.

O Spleen de Natal é de véspera – a leitura de O Spleen de Natal, esclareço, é de véspera. Mas, numa manhã insone de domingo – a maresia atlântica recobrindo os relevos acidentados da casa silenciosa, o sol preenchendo, pouco a pouco, os móveis e objetos da casa ainda adormecida, ribeiras do Atlântico – a releitura do livro de Franklin Jorge adquire nova dimensão, se reveste, ele mesmo e o ambiente onde é consumido e consumado, de uma estranha pátina que mistura melancolia com alegria.

O Spleen deveria ser distribuído, grátis, nas salas de desembarque do aeroporto de Natal. Os turistas – essa fauna exótica cada vez mais aloirada a quem rendemos inquestionável culto, exibindo sem pudor o fundo das calças nos salamaleques cordiais – não entenderiam nada, bulhufas, patavinas, porra nenhuma. Mas, enfim. Uma vingança sutil, bilhete de suicida de uma cidade idem, não digam que não avisamos, Natal não consagra nem desconsagra ninguém, etc.

Um assombro.

Um desassombro o livro de F. Jorge. Estão, quase, todos lá. De Blecaute a Jota Pifa. De... de... Esqueçam. O Spleen tem, na verdade, muitos anônimos. Ou muitos pouco conhecidos. Ou quase nenhum lugar-comum. À parte os já citados, um Marcelino Bob, um J. Gualberto.

Até mesmo Dona Maria Raimunda, uma época lugar-comum, aparece desprovida dos estereótipos que lhe renderam culto e fama fugazes. “Dona Maria Raimunda tem espírito aristocrático”, começa F. Jorge. E por aí vai, descrevendo a casa, os móveis, os objetos, o guarda-roupa, e, através destes, não apenas o espírito de D. Raimunda, mas o zeitgeist. De ontem, hoje, amanhã.

Sutil, F.J.: “As pérolas de imitação saltam de dentro da caixinha de marchetaria ou de pastilhas medicinais”.

Sutil, F.J., sem curvar-se diante dos lugares-comuns, como quando revela, através de D. Raimunda, um prefeito de Natal – Garibaldi A. Filho – expulsando-a do carro oficial para dar lugar à filha do defunto, no cortejo fúnebre de Cascudo. A velha aristocracia cult, marginal, cedendo seu lugar à velha aristocracia chapa-branca, ambas fake, ambas caixinhas de marchetaria e pastilhas medicinais. Ontem. Hoje. Sempre.

Ilustrativo. Poucas imagens valem por tão poucas palavras.

Ou como quando, através de J. Gualberto, revela os erros em português cascudiano do original de Prelúdio e fuga do real.

Ou, ainda, como revela, através do próprio João, um Gualberto de bobeira em busca da grana de prêmios literários.

Intenso, F. Jorge, quando repete o texto black do poeta Blecaute. Passa da camisa azul celeste e calças cor de goiaba e tênis brancos e meias roxas “de monsenhor” para as torturas violentas da carne e d’alma – testículos furados, arame enfiado no pênis, tapas na cara, estupro oral sob a mira de um três-oitão. O pecado de Blecaute, vulgo E. Borges, segundo Borges-Jorges: nascer preto. Pobre. E com vontade de mostrar-se menos marginal, vestindo produções extremamente coloridas. O que faz com que outros pretos, pobres, vestindo fardas monocromáticas, desçam o cacete em sua carapinha “pirandélica”.

A cara de Natal. A metáfora de uma cidade às escuras. O Aleph triste-tropical.

Os personagens de O Spleen são protagonistas e vítimas de uma cidade romântica, enquanto dure. Romântica e felliniana:

O sobrinho do cardeal trocando beijos com o padre professor de religião no Colégio Marista, e, metamorfoseado, anos depois, em transformista.

O ocaso do colunista social, que vê minguarem os bailes de debutantes e crescerem o número de velórios, revelando, ainda, a festa americana no Trampolim da Vitória: “[os americanos] Adoravam uma boa felação. Muita gente em Natal tirou diploma nessa especialidade.” E, surpreendentemente revelando-se um pensador: “Hoje eu percebo que toda essa efervescência nos distraía da idéia de que Natal era uma cidade ocupada.”

A história do Teatro Alberto Maranhão, quase único em sua secular importância, e de seus dirigentes, na voz do funcionário mais antigo, expectador privilegiado do espetáculo diário de vivos e mortos – “até ópera já vi ser cantada aqui por gente que já morreu há muito tempo” – e quase-vivos ou quase-mortos – “No fim da vida [Henrique Castriciano], já subia os batentes com dificuldade (...) era um tipo redondo e morto de preguiça.”

Como o velho funcionário, cuja obrigação máxima era acender e apagar as luzes do templo, F. Jorge reescreve a história dos famosos através da boca dos anônimos, desprezando os holofotes, jogando luzes fugidias de verões passageiros aqui e acolá, feito vaga-lume, deixando de propósito lacunas a serem preenchidas pelo leitor, num texto sem gordura, excesso de peso ou de poesia. Não à toa, inexistem títulos capitulares e referências ou reverências onomásticas. Até as páginas finais, onde repousam algumas fotos, desgarram-se do corpo do volume, livres, como se o texto exigisse apenas a força das palavras.

O Spleen de Natal não é leitura obrigatória nas escolas da Cidadela dos Reis. Nunca foi. Nunca será. A gringalhada que desembarca no Augusto Severo carregada de espelhos vai continuar lendo escrituras imobiliárias e desejos lúbricos nos olhos das meninas de plantão. Palumbo é uma sombra incômoda no Plano Diretor, à sombra das raparigas em flor e dos prédios e condomínios fechados, vendidos a toque de caixa, cash. Velocíter. Dos dólares aos euros, a cidade desaparece numa velocidade impressionante, como diz um personagem.

Às vezes, a luz tênue de Franklin Jorge Fernandes chega a ofuscar. Como uma lua orwelliana na, ainda, Praia dos Artistas. Ou como quando descreve a recusa do garçom em atender o turista e roqueiro Lobão no seu desejo estapafúrdico de beber água de coco – ousadia – no coco:

- Segundo as regras da casa a água de coco deve ser servida em jarras.
Natal continua servindo a água de seus verdejantes coqueiros em jarras.

Em jarras.

[escrito por midc há tanto tempo]

[Franklin Jorge, Spleen de Natal. Natal: Edufrn, 2001]

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Amanheceres


Não foi tão radical quanto Orlando, nem quanto Carol, ou Bull.

Em verdade, não houve nenhuma transformação sexual como aconteceu às três personagens.

Lembrem-se: depois de oito dias de um torpor profundo, durante os quais os turcos rebelam-se contra o sultão e deitam fogo à cidade, depois de ser visitado por Nossa Senhora da Pureza, Nossa Senhora da Castidade e Nossa Senhora da Modéstia, Orlando desperta, espreguiça-se, levanta-se, fica de pé e nos revela sua mais nova condição feminina. Ou, como quis Virginia Woolf traduzida por Cecília Meireles:

- Era mulher.

Carol e Bull, pela caridade, não chegam aos pés de Orlando (nem de Virginia, tampouco pés ou dedos que sejam de Cecília). Daí que a transformação não poderia ser tão completa. À Carol se lhe revela ao toque do mindinho “um fino nódulo, uma insinuante fronde de carne cavernosa”, durante o saudável hábito da masturbação ao som de A Whiter Shade of Pale. E o fino nódulo etc. não é nada mais nada menos, senhores, senhoras, senhoritas, que um pau. Ou pênis ou qualquer um dos apelidos da infinita nomenclatura.

Já Bull, “rapaz encorpado e musculoso”, acompanhado do duvidoso hábito matinal de se “inspecionar, explorando cuidadosamente todas as suas curvas e fendas”, descobre por trás do joelho esquerdo uma vagina. Assim, mesmo, uma vagina, nunca viram uma? “Bifurcada”, “enrugada”, “totalmente seca” – a de Bull, esclareça-se, que, imagino, a da senhora ou senhorita que me lê mereça descrições bem mais poéticas.

Pois, pois, nada disso me ocorreu nesta manhã sem sabor. Nem uma vagina ao posto do pênis, como em Orlando, nem uma vagina detrás do joelho, como em Bull. E, como nunca tive clitóris, impossível seria emparelhar-me com Carol.

Oh, Carol.

Descartada a metamorfose sexual, restar-me-ia outra, genética, morfológica – acordar, por exemplo, como um inseto, tal qual Gregor Samsa.

Ou sacra, como Inácio, que desperta “em plena manhã, sob a histeria ornitológica da mata rasteira e catingante”, e finda Bispo de Taipu, no paradisíaco Vale do Ceará-Mirim, lá pelos lados do Grande Rio do Norte, léguas de distância do País de Gales e da nobre Inglaterra.

Nada.

Continuo com os dois braços, duas pernas, cabeça e tronco.

Os cabelos desgrenhados no reflexo do espelho.

A língua enrugada de amarelos crepusculares, mais de 4.700 substâncias tóxicas, incluindo nicotina, que me causam dependência física ou psíquica, quem sabe as duas.

As remelas discretamente concentradas no sono.

Mas – tem sempre um mas no final de um discurso – permanece algo neste despertar, que me incomoda, que me faz rememorar o Orlando, de Woolf, o Cock & Bull, de Self, o Inácio, de Inácio, e, o maior-de-todos, Kafka.

Não adianta nem me apalpar de cabo a rabo, botar no estéreo o Procol Harum, ajoelhar-me diante de uma imagem consagrada, fuçar no lixo da cozinha, as antenas delgadas ondulando de lá pra cá.

Acordei, e nada me aconteceu.

Talvez seja esse o incômodo.



[Virginia Woolf, Orlando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003]
[Will Self, Cock & Bull: histórias para boi dormir. São Paulo: Geração Editorial, 2002]
[Franz Kafka, adaptado por Peter Kuper, A metamorfose. São Paulo: Conrad, 2004]
[Inácio Magalhães de Sena, Agora lábios meus dizei e anunciai. Natal: Nossa Editora, 1985]


quinta-feira, 20 de setembro de 2007

da série diálogos inesquecíveis


Alex Varenne, Mulheres de sonhos em quadros sonhados


“- Você é virgem?

- Não, já lhe disse. Aquele homem...

- Bem... – Bond sentiu que não podia comer mais. Sua boca estava ressequida com o pensamento na jovem. Então disse:

- Honey, ou como ou falo de amor com você . Não posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo...

- Você vai para Kingston amanhã e terá muito que comer lá. Fale, então, de amor.”

[Ian Fleming, O satânico Dr. No. São Paulo: Bestseller, 1965]

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

honey baby


Edu Gomez, Festival DuSol, anos 00

19 de setembro: Aconteceu uma tragédia: Jimi Hendrix morreu aqui em Londres na madrugada de ontem pra hoje. O Evening Standard diz que a causa da morte foi inalação de vômito depois de uma intoxicação de barbitúricos. Jimi morreu no apartamento de uma moça chamada Monika Danneman. Fez um domingo muito frio hoje, o dia inteiro. Agora, então, que é meia-noite passada, está um gelo. Acabamos de chegar do centro. Fomos assistir Rod Stewart no Lyceum e depois ficamos zanzando em Picadilly. No show de Rod teve um minuto de silêncio em homenagem ao Jimi. Rod cantou com muito feeling e fez o público se levantar, bater palmas e dançar, durante “It’s all over now”, encerrando o show. O público pediu bis e Rod voltou para mais um número. Chorei muito e por muitas razões.”



É o Diário íntimo de Antonio Bivar.

E o Capítulo 7 de Verdes vales do fim do mundo (Porto Alegre: L&PM, 1984).

Apesar de ser o retrato in loco de uma outra época (1970-71), o livro de Bivar é também o retrato – ou um dos muitos portraits – de uma década depois: os fantásticos anos 80.

A começar do próprio livrinho, formato quase de bolso, alongado, um dos volumes da Coleção Olho da Rua, da editora gaúcha, que tinha também, entre outras, a Coleção Alma Beat, com Ginsberg, Burroughs, Ferlinghetti e Kerouac.

Nomes também presentes numa outra editora, o supra-sumo e resumo editorial dos 80, a Brasiliense.

Aliás, Bivar vinha de O que é Punk (Coleção Primeiros Passos) e da tradução de On the Road (Coleção Circo de Letras), pela Brasilense, em parceria com Peninha, aka Eduardo Bueno.

Provavelmente foi o sucesso dessa tradução, e do tema da vida na estrada, que o fez desempoeirar o texto, escrito ainda no início da década de 70.

Eu lembro quando, provavelmente não encontrando o livro em Natal, pedi aos meus pais duas encomendas básicas pra quando voltassem do Sul Maravilha, idos de 84: o On the road, e Zen e a arte de manutenção de motocicletas. Nunca mais o cheiro de um livro novo teria o cheiro de livro novo que aqueles dois exalaram durante os dias em que foram, literalmente, devorados.

Na primeira página ainda está escrito, a lápis: “5,500”... E quem se lembra qual a moeda d’antão? Já no de Bivar, datei: “220285”. A velhice, jovens escribas, é um troço inevitável. E inescondível.

Noves fora a importância inegável do livro de Kerouac, acho este Verdes vales muito mais significativo para o leitor brasileiro, seja para quem era jovem e imberbe e faminto de sexo, drogas, roquenrrol e estrada, nos anos 80, seja para quem é jovem e imberbe e faminto de sexo, drogas, roquenrrol e estrada, nos anos 00.

Afinal, é a aventura de todos nós, sonhos que não envelhecem, pegar aquele velho navio ou avião ou ônibus ou moto ou simplesmente o pé no pó da estrada, sem precisar de muito dinheiro, graças a deus.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

encruzilhadas


Quadro de Flávio Freitas em sala de jantar na Província dos Reis



Bacon meets Eliot


“Sempre soube que eu era influenciado por Eliot. Sobretudo A terra devastada e os poemas que precedem essa obra sempre me emocionaram muito. E volta e meia estou lendo os Quatro quartetos, que, como versos, talvez sejam até melhores que A terra devastada, apesar de não me tocarem da mesma maneira. Mas só muito poucas vezes eu fiz alguma coisa diretamente inspirada em versos ou em algum poema em particular. Admiro poesia, ela me emociona e me estimula a ir ainda mais fundo em meu trabalho. É muito difícil pegar uma poesia e fazer dela uma pintura; é toda a sua atmosfera que me emociona.”
FRANCIS BACON

[in David Sylvester. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac&Naify, 2007]


"...
Aqui é um lugar de desamor
Tempo de antes e tempo de após
Numa luz mortiça: nem a luz do dia
Que reveste formas de lúcida quietude
Transfigurando sombras em beleza transitória
E cuja rotação sugere permanência
Nem a escuridão que purifica a alma
Esvaziando o sensual com privação
Purgando de afeto o temporal.
..."
T. S. ELIOT, “Burnt Norton”
[in T. S. Eliot: tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004]

Eliot meets Freitas




"...
Na primeira volta da terceira escada
Uma janela estreita inchava como um figo
E além do espinheiro em flor e da cena pastoril
A silhueta espadaúda de verde e azul vestida
Encantava maio com uma flauta antiga.
Doce é o cabelo em desalinho, os fios castanhos
Tangidos por um sopro sobre lilases,
Frêmito, música de flauta, pausas e passos
Do espírito a subir pela terceira escada,
Esmorecendo, esmorecendo; esforço
Para além da esperança e do desespero
Galgando a terceira escada.
..."
T. S. ELIOT, “Quarta-feira de cinzas”

[in T. S. Eliot: tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004]


segunda-feira, 17 de setembro de 2007

da série pecados capitais | INVEJA [& derivações]



PREÁ – O que motiva as desavenças entre jornalistas?
VICENTE SEREJO – A pergunta me obriga a ser prosaico: a inveja. Parece que há uma inveja crônica entre os jornalistas e [entre] os intelectuais. E tenho a impressão de que é no mundo inteiro.

[entrevista a Tácito Costa, Gustavo Porpino e François Silvestre. Revista Preá. Natal: Fundação José Augusto, 2003]


"No jornalismo, que é uma das maiores vítimas dos “intelectuais conterrâneos”, as proporções são extraordinárias. [Os verdadeiros jornalistas] levam uma vida de cão sem dono, lutando contra a incompreensão daqueles que depois de receberem 99 elogios não admitem nenhuma crítica dos seus atos, por mais imundos que sejam; [...] mas tudo isso não vale nada diante do jornalista por decreto, do jornalista improvisado, guindado aos mais altos e rendosos cargos, que tem um desprezo congênito pelo seu colega profissional. E há também os “ilustres colaboradores”, que se preocupam meses inteiros no preparo de um “estudo”, ou mesmo de um simples ensaio e que compram 100 exemplares do jornal do dia, no dia em que o mesmo é publicado e ficam “arrotando goga” uma existência inteira..."
DJALMA MARANHÃO

[in Esquina da Tavares de Lira com a Dr. Barata, centro convergente e irradiador da vida natalense. Natal: Sebo Vermelho, 2004]


"O intelectual é a empregada doméstica dos poderosos."
MILLÔR FERNANDES

[in Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM, 1996]

sábado, 15 de setembro de 2007

Bom dia, Babilônia, bom dia, tristeza, bom dia Vietnã, bom dia rede de dormir


O blog, blogueiro, coluna, quinta coluna, enfim, o subscrito, recomenda ao despertar a audição de: September fifteenth, faixa 3 de As fall wichita, so falls wichita falls, Pat Metheny & Lyle Mays. 1981, ECM Records.

Procurem nas prateleiras empoeiradas, desarrumadas, desconjuntadas, cascavilhem nos sebos, baixem o santo náutico.

Pat Metheny de melhor safra, sem os excessos e chatices que permearão alguns discos posteriores, aqui e na companhia de Lyle Mays e do “nosso” Naná Vasconcelos, anima qualquer alma matutina.

Pra continuar em decúbito dorsal, claro – da cama pra rede. De dormir e embalar sonhos.

Porque hoje é sábado, 15/09, e ninguém merece ir à academia.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

A grei, o presépio e a presepada



Os nativos desta terra onde se plantando tudo dá estão revoltadinhos com a turma do congresso.

Berram aos brados, retumbantes, vergonha! Vergonha! A mais cruel das vergonhas.

Armam-se de paus, pedras, caminhos sem fim, instigam cobras e lagartos na superfície saburrosa das línguas afiadas, desta feita desprovidas de papas. Sem amarras, sem peias.

O roto do esfarrapado, o sujo do mal lavado.

Lavam as mãos e assobiam de lado, como se não tivessem culpa no cartório. Cantam de galo. Batem no peito. Choram, rangem os dentes.

Muitos sobem nas tamancas.

Se agigantam, destamainho que são e não passam disso.

Da valentia espetacular. Valentes. Valentões. Valentinhos.

Esquecem que foram eles mesmos, quem colocamos a malta ali. Ali, aqui, e acolá. Ontem, hoje e sempre.

Nossos representantes no poder. Retrato 46x35 de nós mesmos. Cagados e cuspidos.


Citação da citação de Torquato Neto:

E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação:
leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o
homem, nem que seja o boi.

{terça-feira, 14 de junho de 1971}

[in Torquatália: obra reunida de Torquato Neto/organização de Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004]

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Feira moderna em Cabul, mercado de animais no Rio


Literatura é, cada vez mais, um negócio. Mais atrelado aos negócios que a idéia romântica de um fazer literário, associado a artesanías e boemias e fome e dores de amores.

As tais feiras literárias de negócios são a prova do crime.

Crime entre aspas, óbvio, que não somos, neste quesito, preconceituosos.

Se já são um acontecimento mundial, há décadas, essas feiras no Brasil ganham ares ainda mais festivos e carnavalescos. E se revestem, como tudo mais, dessa necessidade premente de acontecer. De ser e fazer sucesso. De celebridade. Féime, cantava Bowie.

A matéria de Sylivia Colombo e Lucia Valenttim Rodrigues é quase uma novela exemplar [ontem, na Folha, para assinantes].

As repórteres começam profetizando a guerra a ser travada entre uma turma de escritores, na Bienal do Livro do Rio.

Em comum, a palavra “Cabul”, também presente numa das mesas de debates – A verdade sobre Cabul.

Eu sou o livreiro de Cabul, O salão de Beleza de Cabul e As andorinhas de Cabul, são alguns dos títulos que deverão ser jogados na mesa – ou, quem sabe, na cara dos autores presentes.

Parece que quem bateu o pontapé inicial foi O livreiro de Cabul, pelos pés da jornalista norueguesa Asne Seierstad.

Se não tivesse vendido horrores, o milagre econômico da multiplicação da capital afegã, provavelmente não aconteceria.

E se Seierstad deu o chute inicial, Shah Muhammad Rais, o “verdadeiro” vendedor de livros, tomou a bola e cabeceou, escrevendo – e vendendo horrores, também – a sua versão, da sua própria história.

Segundo a Folha, o livreiro de Cabul disse que estão todos "tentando ordenhar a vaca".

Rais acha que a vaca é sua, claro.

Pode ser, mas é uma vaca com muitas tetas.

A cabeleireira americana Deborah Rodriguez morou em Cabul, onde, como sugere o título do seu livro, tinha um salão de beleza.

Sintomática transposição – das estantes de livros para os espelhos, tesouras, pentes, escovas. Todo escritor é um famélico egocêntrico. E um pavão empoado.

O argelino Yasmina Khadra, autor das andorinhas (de Cabul, donde mais?), deve olhar atravessado a perua americana, provavelmente de origem hispânica (olha meu preconceito aí: só porque é peluquera não significa que seja perua, dona Deborah, nem cucaracha, la señora Rodriguez).

Realmente, o debate promete: Khadra nunca esteve em Cabul, Rodriguez morou lá mas já deu o pira, e Rais é o único autêntico nativo. E o legítimo dono da vaca.

Da senhora Seierstad não dou notícias. Deve ter se fartado de tanta mala leche e está procurando outro rebanho pra apalpar.

Mais esperto é outro autor presente na bienal, o ex-soldado norte-americano Jay Kopelman, que invés de ordenhar a vaca se atracou com um cachorrinho: não li o livro, não sei se vou ver o filme (alguém já deve estar pensando no assunto), mas a história deve ter sido mais ou menos assim:

o bravo guerreiro de Alá-Bush caminhava aterrorizado com os horrores da guerra
em meio aos escombros de Cabul, quando ouve o choro miúdo de um animalzinho.
Seria uma criança afegã? O rostinho sujo, os olhinhos esbugalhados, a língua
presa pelo traumatismo da guerra? Não, senhores, senhoras, meninos: era Lava, o
cãozinho, que abanou o rabo e lambeu o rosto exausto do senhor da guerra, um
coração maior que a mira do seu fuzil.

O meu relato, obviamente, está errado. Kopelman escreveu de Bagdá, com muito amor, um livro intitulado, pois, De Bagdá, com muito amor.

Bagdá, Cabul, Argel, Washington, Rio – não é tudo a mesma merda literária e humana?
Pois, viva a mala leche, viva a leche buena: ler é o melhor alimento para mamíferos semi-alfabetizados!


P.S.: Sinto informar que não sei se, logo mais à noite, na cidade maravilhosa, a vaca e o cão e as andorinhas acompanharão seus autores; se a cabeleireira comparecerá com uma burka; e, estou pensando seriamente em trocar o nome deste blog, para cidadedecabul.blogspot

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

amarcord : caderno de viagens de angeles





Amarcord




[Foto autor desconhecido. Anna Magnani no filme de Mario Bonnard, em 1943]



No início foi quase insensível.

Eu escrevia sobre Bertolucci e Pasolini, lembrando de quando foram vizinhos em Monteverde, zona do bairro Gianicolense, em Roma. Daí para a recordação dos Ragazzi di vita e sua inspiração nos meninos das casas populares de Donna Olimpia foi um pulo. Ou, a descida da ladeira.

Daí para me lembrar que eu também vivi ali... foi...

No início foi quase indolor.

Eu queria rever as fotos do número 45 de Via Giacinto Carini. Nesses casos a internet é uma mãe. Um mundo onde reencontrar referências para as memórias perdidas, ou para as não-memórias.

Um link puxa outro e eu revi o número 30 de Via di Donna Olimpia.

Onde fui feliz.

Mais que feliz.

Às vezes tínhamos um ovo em casa. E não mais que isso. O suficiente para assar uns biscoitos. E sorrir.

Nunca fazia frio: a calefação era subsidiada pelo governo, uma espécie de Frio Zero. Através dos janelões sempre abertos o sol romano banhava todo o apartamento.

Antes, morávamos em San Lorenzo, no outro extremo da cidade. Num apartamento construído ilegalmente no teto de um velho prédio, debruçado para a estação de trens, Termini. Era minúsculo, muito minúsculo. O aluguel começou a ficar caro, as goteiras começaram a molhar os livros, um amigo nos ofereceu o apartamento que mantinha fechado. Tinha um contrato com o governo, pagava pouquíssimo por mês, não poderia desistir nem sublocar – a não ser para alguém confiável.

O amigo era Silvano, irmão de Antonella, casada com Nando, que apreciava cebolas e escrevia sobre cyberspazio. E, em mais uma coincidência cinematográfica, Silvano e Antonella eram irmãos de Fabrizio Forte, que tinha interpretado Gavino Ledda quando menino em Pai Patrão, dos irmãos Taviani.

Quando entramos ali pela primeira vez, os dois ambientes amplos, pé direito alto, quarto e sala, pareciam os escombros de uma guerra. Na parede do quarto de dormir tinha um afresco da Praça Vermelha de Moscou. Era simpático, mas preferimos apagá-lo.

Os amigos ajudaram a pintar e a limpar todo o apartamento. Rosa, Maurizio, Marcello. O pai de Patrizia, experiente, nos olhava sarcástico: o que fazíamos em horas ele pintava em minutos. E melhor.

A cozinha era pequena. Acolhente.

E tinha elevador! Em San Lorenzo subíamos oito lances de escada até chegar ao teto...

Mas o móvel, estilo “arte povera”, que Alberto nos deu, não coube no ascensor. O vizinho do subsolo, barbudo, forte, nos salvou, carregando-o nas costas junto com um colega, vencendo os seis andares.

Não lembro seu nome. Foi um dos poucos vizinhos simpáticos que tivemos. Não que fossem antipáticos os habitantes de Donna Olimpia, mas éramos estrangeiros, em todos os sentidos – e um apartamento como aquele era cobiçadíssimo. O barbudo, de poucas palavras, morava com a mulher num apartamento improvisado no subsolo, onde uma época eram as lavanderias coletivas. Sua mulher era a cara de Anna Magnani. Mesmo. E falava como La Magnani, com um acento fortíssimo de italiana do povo.

Tinham dois velhos pastores-alemães e uma coleção de bonecas. Não tinham filhos.

O pátio era amplo, com poucos canteiros malcuidados e algumas árvores esquálidas. Nele não se podia entrar com carro. Às vezes, esquecíamos de desligar o motorino. Tinha sempre alguém, atento, pra reclamar.

A vizinha de porta era uma típica bruxa italiana. Pintadíssima, brega, cílios postiços, batom, anéis, pulseiras, correntes. E um cãozinho histérico. Foi ela quem nos envenenou a primeira planta que pusemos no corredor aberto.

Pintamos a parede da sala de laranja.

E a do quarto de azul.

Na esquina, o lixo era valioso. Ainda durante a reforma, encontramos duas camas de mola, novas. Levamos pra cima. Numa manhã cedinho, uma botelha velha de vinho, o vidro verde, grosso.

Tínhamos um sofá-cama na sala. Sempre aberto, dormíamos mais ali que no quarto. Depois de anos sem televisão, trouxemos uma da Grécia, no ônibus do senhor Λαγός (“coelho”). Como bons retirantes.

Para chegar às casas populares, podia-se percorrer até o fim o Viale di Trastevere, dobrar à direita na altura da estação e novamente à direita. Mas preferíamos subir o Gianicolo, desde a parte velha de Trastevere, passar pela Porta di San Pancrazio, e descer. Em dois, o motorino não deveria agüentar – mas agüentou, até o fim, quando teve que ser vendido pra financiar outros aspectos duros da vida.

Não íamos muito ao bar-restaurante da esquina, senão para uma garrafa de vinho romano e barato – vinodellacasabianco, como na música do Durutti Column. Na parte “mais nobre” de Donna Olimpia tinha uma sorveteria que servia um ótimo sorvete, com pão, recheado de nutella. Mais longe, no Viale di Trastevere, próximo a Porta Portese, podia-se comprar tortas maravilhosas, de ricota, para viagem. O lugar era simples e me lembro do retrato imenso de Sai Baba na parede. Subindo outra ladeira, na direção oposta a Monteverde, o mercado de San Giovanni era um espetáculo de queijos, laranjas da Sicília e Camels contrabandeados.

Foi em Donna Olimpia que despedi-me de minha filha, antes de eu voltar para o Brasil e ela ficar em Florença. Ela desceu o elevador com sua mãozinha colada à minha. Eu desci o elevador com minha mão colada à dela, numa viagem que parecia nunca chegar ao térreo. Depois, nos despedimos e choramos. Eu chorei um dia inteiro seguido.

De Donna Olimpia, partimos uma madrugada escura. Elio não quis nos levar. Mandou invés uma Mercedes com motorista. Sabia que em muitas ocasiões, a vida nos foi difícil. Queria que partíssemos alla grande, como se diz em Roma.

Em Donna Olimpia, recebemos um único hóspede, inesquecível: Angeles Laporta [Santiago-Natal-Madrid-Roma]. Foi ela quem desenhou as ilustrações que acompanham essa confidência[no post acima]. Ao lado do desenho ela anotou:

“Mayo 30
1997
Sexto andar
aos telhados de Roma
o teto de céu lavado
as antenas, as antenas,
colheita das palavras
rumo das cores e da
estridência
da mesa de trabalho de
Mário e Pola

a janela pela manhã.”


É só um retrato na parede, mas como dói.


[domingo de setembro]

terça-feira, 11 de setembro de 2007

a volta ao mundo em 11 onzes de setembro


Milo Manara, Viagem a Tulum

1. [New York City, 1961]
Bob Dylan sobe ao palco do Gerde’s Folk City, no seu primeiro show na cidade – como tudo que se refere a Zimmerman, há controvérsias

2. [London Town, 1962] Os Beatles gravam o primeiro compacto, Love me do

3. [Los Angeles, 1969] Chega às lojas o primeiro disco pirata da história do rock, The Great White Wonder, com canções de Mr. Dylan

4. [Rio de Janeiro, 1971] Torquato Neto escreve na sua coluna Geléia Geral: “Sim: Matou a família e foi ao cinema já passou, e muito bem, na cadeia do New-Yorker. Bom, não?”

5. [Santiago do Chile, 1973] O general Augusto Pinochet invade o Palácio La Moneda e "suicida", segundo ele, assassina, segundo nós, Salvador Allende

6. [Havana, 1969] Alfredo Guevara escreve a Glauber Rocha, em Roma: “el valor, la audacia, la combativad de los patriotas brasileiros llegan como si me tocara revivir los años de nuestra propria insurrección libertadora.”

7. [Montecatini, 1930] Paulo Prado envia cartão-postal a Mário de Andrade: “Aqui estamos gozando da doçura toscana, o Yan bebendo vinho, e eu água. Ontem pensamos muito em você, porque a música do parque tocou o Guarani.”

8. [Macaíba, 1876] Dona Henriqueta Leopoldina de Souza provavelmente ainda não sabe, embora a barriga lhe deva pesar, mas no dia seguinte vai segurar no colo uma poeta, Auta de Souza

9. [Berna, 1948] Clarice Lispector descansa: pariu o primeiro filho no dia anterior

10. [Marselha, 1891] Arthur Rimbaud não descansa: queria voltar para Harar e está internado num quarto do Hôpital de la Conception, desde o final de agosto, de onde sairá, morto, em novembro

11. [Natal, 1954] Os restos mortais de Nísia Floresta, a escritora, desembarcam, vindos de Marselha, para seguir viagem no dia seguinte para Nísia Floresta, a cidade

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Um Osama só é pouco


Jim Aparo, A morte de Robin

Deu a louca no mundo.

Nos EUA, o puritanismo é uma piada levada a sério.
Kyla Ebbert, 23 aninhos, quase não embarca num vôo da Southwest Airlines.
O motivo: uma minissaia.
Microssaia, vá lá.
Ainda não está no YouTube, mas você pode conferir o Festival de Besteiras que Assola o País de Bush clicando aqui.
A NBC entrevistou a moça, numa matéria sob o título “Airline stops sexy flier”.
O entrevistador, careta, pediu pra Kyla levantar e sentar, rapidinho.
Não deu nem pra saber a cor.
Enquanto isso, na tevê Macunaíma...

Justamente:
No Brazyl, em Aparecida, Sumpaulo, o prefeito, que atende pelo cognome de Zé Louquinho, proibiu a minissaia durante a quaresma.
E os padres andarem sem batina.
Casa de ferreiro, Zé Louquinho compareceu a uma manifestação semana passada vestindo uma... tanga.
(Daí que é melhor refazer o penúltimo parágrafo: o prefeito proibiu os padres andarem em trajes civis.)
Em entrevista à coluna de Mrs. Bergamo (FSP), Zé Louquinho tranqüilizou a todos nós: “Desde pequeno eu sou assim.”
Esse rapaz vai longe. O planalto central me parece um destino lógico, ainda mais que Zé é da turma do DEM.

Calma, que ainda não acabou:
Na Itália, os consumidores programaram uma greve contra o aumento do preço do trigo, ingrediente básico da famosa pasta.
Em um ano o quilo de farinha subiu 11%, o de pão 17%, o de penne 22% e o de espaguete 27%.
Ao menos cinco associações de consumidores apóiam a greve. A idéia é que no dia marcado, quinta próxima, ninguém compre massas.
Em compensação, na quarta-feira vai ter neguinho enchendo o carrinho de supermercado de lasagne, fettuccine, tagliatelle, taglierini, linguine, tortellini, cappelletti, maccheroni, bucatini, vermicelli, capelini, nidi, ravioli, cannelloni, rigatoni, penne, fusili, farfalle, farfalline, e, ufa! gnocchi.


O filho de Godard e Pasolini


Seria mais ou menos como o cruzamento genético de uma melancia com uma uva, mas o resultado foi excepcional: Bernardo Bertolucci, nesses dias e noites venezianas, afirmou ter ao menos dois “pais putativos” – Pier Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard.

Bertolucci recebeu anteontem o Leone d’oro speciale da 75ª mostra internacional de cinema. “Melhor que receber o Leão pela carreira”, disse ao jornal italiano La Repubblica, insinuando que aquele outro Leão (concedido a Nikita Mikhálkov) poderia ser o atestado de uma aposentadoria da qual ele faz questão de manter-se ainda longe. As filmagens de seu novo filme começam tão logo sejam concluídos acordos de produção. O diretor da mostra, Marco Muelle, já avisou a Bertolucci do interesse de produtores chineses em financiar a obra, que deverá ter o título, talvez provisório, de Condizione umanà al 60%.

O diretor italiano é habitué da laguna – a primeira vez que participou do festival tinha apenas 21 anos e um só filme: La commare secca (1962). Quarenta e cinco anos depois, Veneza apresentou ao público duas obras suas, restauradas: o documentário La via del petrolio e o longa, de 70, Strategia del ragno (este, inspirado num conto de Borges).

“Estreei no cinema como assistente de direção de Accattone, o primeiro filme de Pasolini”, lembrou, recordando um dos “pais”.

Sobre Godard, rememorou um episódio, quando foi presidente do júri em Veneza 83: “No começo, um pouco embriagados, eu e os outros diretores do júri (Bob Rafelson, Agnes Varda) decidimos conferir-lhe sete prêmios... depois, aceitamos alguns conselhos mais racionais e lhe demos ‘apenas’ três ou quatro!”

O pai “verdadeiro” de Bertolucci também foi uma grande inspiração para o diretor: Attilio Bertolucci era poeta, professor de história da arte e crítico cinematográfico. A mãe, Ninetta Giovanardi, era professora de letras, filha de um italiano emigrado na Austrália por motivos políticos e de uma irlandesa.

Não deve ter sido um acaso que o cãozinho que o menino Bernardo teve na infância chamava-se Flush – homônimo do cão da poeta Elizabeth Barret Browning, retratado, biografado e ironizado por Virginia Woolf em Flush: memórias de um cão (1933). Este Flush original nasceu e viveu na Inglaterra, morou alguns meses em Pisa, e veio a falecer em Florença.

Já Bertolucci nasceu em Parma, e aos 11 anos muda-se com a família para Roma, quinto andar de um prédio na Via Giacinto Carini, número 45, Monteverde Vecchio, bairro de casas elegantes. No primeiro andar morava um rapaz um tanto esquisito, vestido às vezes como um proletário, como um “ragazzo di vita”: era Pier Paolo.

Morei próximo a Monteverde, em Via di Donna Olimpia, número 30, justamente nas “casas populares” onde Pasolini ambientou seus Meninos da vida (no Brasil publicado apenas pelo Círculo do Livro). As tais casas populares na verdade são conjuntos de prédios cedidos pelo governo italiano às famílias de baixa renda. Foram construídas durante o fascismo, e eram referidas ironicamente pelos próprios moradores como “arranha-céus”.

Bastava subir uma ladeira e sair do proletariado para o mundo pequeno burguês. Ou, para Pasolini, descer uma ladeira e sair do mundo pequeno burguês para o proletariado. Os contrastes, enfatize-se, não são nem eram os extremos brasileiros, entre alta favela e baixa elite branca, topologicamente às avessas.

A primeira vez que viu Pasolini, Bertolucci fechou-lhe a porta. “Numa tarde de domingo, às três, batem à porta, vou abrir e vejo um jovem vestido de azul, terno de festa e um grande tufo de cabelos negros. Me perguntou se podia ver meu pai. Eu pensei que fosse um ladrão. [...] Meu pai estava dormindo e eu deixei Pier Paolo fora de casa. Sem uma palavra. Evidentemente eu sentia qualquer coisa de muito forte nele, qualquer coisa excepcional.” [in Stefano Socci, Bernardo Bertolucci, Milano: Editrice Il Castoro, 1995]

Attilio Bertolucci ajudaria o poeta friulano a publicar Ragazzi di vita, seu primeiro romance.

O poeta friulano convidaria o jovem parmigiano a ser seu assistente no primeiro filme.

O produtor Tonino Cervi convidaria o primogênito de Attilio para dirigir a seqüência de Accattone, La commare secca.

“A minha maior preocupação era fazer um filme diferente de Accattone, que parecesse mais comigo. De conseguir que fossem meus, os rostos, as paisagens, e um dialeto que no princípio não eram.”

Com o filme de estréia, Bertolucci considera-se mais francês que italiano. Godard e Truffaut eram suas referências na época, justamente pelos questionamentos sobre o que era o processo de fazer filmes – “finalmente o cinema tinha chegado ao ponto de olhar-se no espelho”.

É de Bertolucci – junto com Dario Argento e Sergio Leone – o roteiro de Era uma vez no Oeste (68).

É de Bertolucci um dos grandes escândalos do cinema – O último tango em Paris – quase sempre infelizmente lembrado apenas pelo episódio da manteiga do que por uma infinidade de méritos outros, à escolha dos fãs e críticos. Eu citaria a música de Gato Barbieri, as imagens de Francis Bacon, o próprio apartamento onde se enclausuram Brando e Maria Schneider.

Tango foi censurado. Durante quase quinze anos foi proibida sua exibição em grande parte do mundo. Impossível não encontrar um paralelo com as infinitas perseguições à obra de um dos seus pais, Pasolini.

Na Espanha, as donas de casa cruzavam a fronteira do regime de Franco para assistir O último tango, esperando aprender alguma lição sexual.

Bertolucci volta à carga “escandalosa” com La luna (79), onde uma mãe americana tenta salvar o filho adolescente da droga, aceitando suas insinuações incestuosas. O roteiro tem a colaboração de Clare Peploe, então companheira do diretor. A mesma Peploe de Antonioni.

Se Michelangelo é sempre lembrado pelo seu discurso da incomunicabilidade, quase nunca comenta-se sobre o mesmo enfoque na obra de Bertolucci – talvez por ter uma temática mais ampla em sua também ampla filmografia. A impossibilidade das relações, presente nO último tango, permanece como pano de fundo de O céu que nos protege (ou O chá no deserto), inspirado no romance de Paul Bowles. É quase o mesmo casal, transferido da claustrofobia do apartamento parisiense para a claustrofobia do deserto marroquino. Dos anos setenta para os anos quarenta. Dos anos setenta para os anos noventa.

“Não é um filme sobre a impossibilidade do amor, mas sobre a impossibilidade de ser feliz no amor”, comentou. E:

“Os casais modernos são uma espécie em perigo. São tão constantemente atacados pelo mundo exterior que criam um tipo de fusão, uma simbiose. E tudo isso os leva logicamente a uma crise.”

Não posso falar sobre o último filme de Bertolucci, que não vi, mas sobre o último que vi: L’asssedio, quase dez anos atrás. Bertolucci retorna às relações tempestuosas entre um homem e uma mulher; e a Roma, uma Roma turística e ao mesmo tempo intimamente pessoal: os protagonistas, um músico inglês e uma estudante africana, convivem num apartamento vizinho às escadarias de Trinità dei Monti. Embora aparentemente “menor”, sem a grandiloqüência das paisagens as quais estávamos nos acostumando (O último imperador, O pequeno Buda), é um filme impressionante.

Toda a antipatia do inglês vai se diluindo pouco a pouco. E nós, que começamos odiando intensamente o personagem, terminamos por amá-lo. Intensamente.