sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Amanheceres


Não foi tão radical quanto Orlando, nem quanto Carol, ou Bull.

Em verdade, não houve nenhuma transformação sexual como aconteceu às três personagens.

Lembrem-se: depois de oito dias de um torpor profundo, durante os quais os turcos rebelam-se contra o sultão e deitam fogo à cidade, depois de ser visitado por Nossa Senhora da Pureza, Nossa Senhora da Castidade e Nossa Senhora da Modéstia, Orlando desperta, espreguiça-se, levanta-se, fica de pé e nos revela sua mais nova condição feminina. Ou, como quis Virginia Woolf traduzida por Cecília Meireles:

- Era mulher.

Carol e Bull, pela caridade, não chegam aos pés de Orlando (nem de Virginia, tampouco pés ou dedos que sejam de Cecília). Daí que a transformação não poderia ser tão completa. À Carol se lhe revela ao toque do mindinho “um fino nódulo, uma insinuante fronde de carne cavernosa”, durante o saudável hábito da masturbação ao som de A Whiter Shade of Pale. E o fino nódulo etc. não é nada mais nada menos, senhores, senhoras, senhoritas, que um pau. Ou pênis ou qualquer um dos apelidos da infinita nomenclatura.

Já Bull, “rapaz encorpado e musculoso”, acompanhado do duvidoso hábito matinal de se “inspecionar, explorando cuidadosamente todas as suas curvas e fendas”, descobre por trás do joelho esquerdo uma vagina. Assim, mesmo, uma vagina, nunca viram uma? “Bifurcada”, “enrugada”, “totalmente seca” – a de Bull, esclareça-se, que, imagino, a da senhora ou senhorita que me lê mereça descrições bem mais poéticas.

Pois, pois, nada disso me ocorreu nesta manhã sem sabor. Nem uma vagina ao posto do pênis, como em Orlando, nem uma vagina detrás do joelho, como em Bull. E, como nunca tive clitóris, impossível seria emparelhar-me com Carol.

Oh, Carol.

Descartada a metamorfose sexual, restar-me-ia outra, genética, morfológica – acordar, por exemplo, como um inseto, tal qual Gregor Samsa.

Ou sacra, como Inácio, que desperta “em plena manhã, sob a histeria ornitológica da mata rasteira e catingante”, e finda Bispo de Taipu, no paradisíaco Vale do Ceará-Mirim, lá pelos lados do Grande Rio do Norte, léguas de distância do País de Gales e da nobre Inglaterra.

Nada.

Continuo com os dois braços, duas pernas, cabeça e tronco.

Os cabelos desgrenhados no reflexo do espelho.

A língua enrugada de amarelos crepusculares, mais de 4.700 substâncias tóxicas, incluindo nicotina, que me causam dependência física ou psíquica, quem sabe as duas.

As remelas discretamente concentradas no sono.

Mas – tem sempre um mas no final de um discurso – permanece algo neste despertar, que me incomoda, que me faz rememorar o Orlando, de Woolf, o Cock & Bull, de Self, o Inácio, de Inácio, e, o maior-de-todos, Kafka.

Não adianta nem me apalpar de cabo a rabo, botar no estéreo o Procol Harum, ajoelhar-me diante de uma imagem consagrada, fuçar no lixo da cozinha, as antenas delgadas ondulando de lá pra cá.

Acordei, e nada me aconteceu.

Talvez seja esse o incômodo.



[Virginia Woolf, Orlando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003]
[Will Self, Cock & Bull: histórias para boi dormir. São Paulo: Geração Editorial, 2002]
[Franz Kafka, adaptado por Peter Kuper, A metamorfose. São Paulo: Conrad, 2004]
[Inácio Magalhães de Sena, Agora lábios meus dizei e anunciai. Natal: Nossa Editora, 1985]


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