quinta-feira, 29 de novembro de 2007

ah

ah se eu fosse um daqueles poetas que o Jorge Fernandes quis ser um dia eu saberia na hora na bucha no momento se é algazarra folia ou hino o esforço de pluma desses pássaros em descortinar a manhã como se o mundo fosse lar ninho caverna de milhõezinhos de manoelitos de barros um em cada esquina saltitando bicando alpistes insetos migalhas parando pra conversar com borboletas tecnicoloridas mariposas rola-bostas centopéias grilos joaninhas imbuás lacraus ah se eu fosse um desses poetas testosteronados a camiseta alargando músculos os tênis cadarços em desalinho planejado o jeans lavado descosturado os pés plantados bem firme no chão o olhar seguro confiante maduro jovial simpático sorridente displicentemente blasé marginal outsider aventuroso destino globe-trotter marca registrada caixa registradora bolsos vazios sem a bagana suja amarfanhada de antão ah se eu fosse um desses poetas sujos a barba por fazer o corpo franzino e magresquelético os dentes dedos nicotinados a cadência solta frouxa de palavras excêntricas quilométricas em seus centímetros aparentemente cordiais em seus milhões de anos luzes de novelos entrechos labirintos de teses antíteses sínteses em sua leitura objetiva concreta faca afiada de razões e dez mandamentos ah se eu fosse um desses poetas com as raízes bem fincadas na seca esturricada do sertão com direito a fardão de algodão cru armorial à sombra duma serra tresmalhando na malhada afugentando a canícula como o vacum espanta moscas berberes infiéis com seu rabo açoite vento abrigado ah se eu fosse um desses vates doutores pediatra de adultos e fêmeas infantis o açúcar-cande na ponta da lingüinha solta a mão no bolso alisando sensabor a grossura máscula do pau pai do rebanho os dentes sutis resfolegando no pescoço alvar das caçadoras em corsa com os lupus e os canis amārus ah se eu fosse um desses poetas consagrados com mulher e filhos e babá horas extras nanando nanindo ganindo vomitando babas salamaleques puxões no culhão do alheio cevando letras frases perguntas oblívios cartões postais de crédito imbecil vodka whisky cherish scottish bloomwish sandwich ah se eu fosse um desses poetas artistas que usam óculo escuro pra sua alma fingir tão bem o indizível o aprazível o canhoto destro sinistro do talão galão cheques choques chocos trinta dinheiros onze mil virgens nenhuma idéia na cachola cetácea e uma dama lilás por companhia promessa de felicidade amparo muleta de intelectual na finestra indiscreta barril de amontillado muro de pedras cal cã cio ah se eu fosse um daqueles poetas da guerrilha colombiana bolivariana cubana capim saia gomada plissê pot-pourri purpurina ocarina messalina púlpito douro entronizado no altar da malemolência e da decadência do samba roque baião rap hip hop melodia alcatrão nos prumos da irlanda da islândia de reykjavic costas quentes olhar profundo toco de charotos na comissura labial dedos ágeis soando bronzes sinos sonhos em tergal valise de couro boletim bainha duelo fim ah se eu fosse um poeta dicionarizado antologicizado dissecado de frente e de verso de costas e de prumo ventral dorsal olhos míopes boiando no fundo dum rosto azul aguardando impaciente na esquina mais um ganir de pneumáticos e a colisão metálica de ferro aço vidro borracha carne ah se eu fosse um daqueles poetas que o Jorge Fernandes quis ser um dia eu mas não eu não acredito em nada nada disso nem na ausência de vírgulas nem na descostura dos pontos na inflexão tesa dos verbos na desconstrução repentina do parágrafo em nada acredito eu nem

6 comentários:

Anônimo disse...

adorei.

cego aderaldo disse...

ah
quem dera
que os poetas
escrevêssemos assim
como esse
antipoeta

midc disse...

adri: (meio viado esse jeitinho de chamar) assim vc me deixa encarnado...

Moacy Cirne disse...

Mas o Adriano tem razão, meu caro. Como tinha razão Jorge Fernandes...

Anônimo disse...

O senhor alcaide dessa cidade dos reis, midc, deve ser leitor de Mallarmé ou tem o timbre de voz afinado coincidentemente no mesmo diapasão do celebrado aedo: ‘os poemas não são feitos de idéias, mas com palavras.’
O roteiro cinematográfico ou gastronômico ou carnavalesco (mais apropriado em dias de carnatal) de ah traz os elementos indispensáveis ao dizer poético: ritmo, metáfora, reinauguração de palavras. E um que prezo muito: quebra do discurso, fragmentação, antilinearidade, ‘desconstrução do parágrafo’.
E outro (aqui demonstrado): todas as palavras são, de cara, poéticas; ou têm embutida a poesia na sua carne, o encantamento.
Para poeta falta algo ao poeta?

Napoleão de Paiva

midc disse...

a vontade de ser.