segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O filho de Godard e Pasolini


Seria mais ou menos como o cruzamento genético de uma melancia com uma uva, mas o resultado foi excepcional: Bernardo Bertolucci, nesses dias e noites venezianas, afirmou ter ao menos dois “pais putativos” – Pier Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard.

Bertolucci recebeu anteontem o Leone d’oro speciale da 75ª mostra internacional de cinema. “Melhor que receber o Leão pela carreira”, disse ao jornal italiano La Repubblica, insinuando que aquele outro Leão (concedido a Nikita Mikhálkov) poderia ser o atestado de uma aposentadoria da qual ele faz questão de manter-se ainda longe. As filmagens de seu novo filme começam tão logo sejam concluídos acordos de produção. O diretor da mostra, Marco Muelle, já avisou a Bertolucci do interesse de produtores chineses em financiar a obra, que deverá ter o título, talvez provisório, de Condizione umanà al 60%.

O diretor italiano é habitué da laguna – a primeira vez que participou do festival tinha apenas 21 anos e um só filme: La commare secca (1962). Quarenta e cinco anos depois, Veneza apresentou ao público duas obras suas, restauradas: o documentário La via del petrolio e o longa, de 70, Strategia del ragno (este, inspirado num conto de Borges).

“Estreei no cinema como assistente de direção de Accattone, o primeiro filme de Pasolini”, lembrou, recordando um dos “pais”.

Sobre Godard, rememorou um episódio, quando foi presidente do júri em Veneza 83: “No começo, um pouco embriagados, eu e os outros diretores do júri (Bob Rafelson, Agnes Varda) decidimos conferir-lhe sete prêmios... depois, aceitamos alguns conselhos mais racionais e lhe demos ‘apenas’ três ou quatro!”

O pai “verdadeiro” de Bertolucci também foi uma grande inspiração para o diretor: Attilio Bertolucci era poeta, professor de história da arte e crítico cinematográfico. A mãe, Ninetta Giovanardi, era professora de letras, filha de um italiano emigrado na Austrália por motivos políticos e de uma irlandesa.

Não deve ter sido um acaso que o cãozinho que o menino Bernardo teve na infância chamava-se Flush – homônimo do cão da poeta Elizabeth Barret Browning, retratado, biografado e ironizado por Virginia Woolf em Flush: memórias de um cão (1933). Este Flush original nasceu e viveu na Inglaterra, morou alguns meses em Pisa, e veio a falecer em Florença.

Já Bertolucci nasceu em Parma, e aos 11 anos muda-se com a família para Roma, quinto andar de um prédio na Via Giacinto Carini, número 45, Monteverde Vecchio, bairro de casas elegantes. No primeiro andar morava um rapaz um tanto esquisito, vestido às vezes como um proletário, como um “ragazzo di vita”: era Pier Paolo.

Morei próximo a Monteverde, em Via di Donna Olimpia, número 30, justamente nas “casas populares” onde Pasolini ambientou seus Meninos da vida (no Brasil publicado apenas pelo Círculo do Livro). As tais casas populares na verdade são conjuntos de prédios cedidos pelo governo italiano às famílias de baixa renda. Foram construídas durante o fascismo, e eram referidas ironicamente pelos próprios moradores como “arranha-céus”.

Bastava subir uma ladeira e sair do proletariado para o mundo pequeno burguês. Ou, para Pasolini, descer uma ladeira e sair do mundo pequeno burguês para o proletariado. Os contrastes, enfatize-se, não são nem eram os extremos brasileiros, entre alta favela e baixa elite branca, topologicamente às avessas.

A primeira vez que viu Pasolini, Bertolucci fechou-lhe a porta. “Numa tarde de domingo, às três, batem à porta, vou abrir e vejo um jovem vestido de azul, terno de festa e um grande tufo de cabelos negros. Me perguntou se podia ver meu pai. Eu pensei que fosse um ladrão. [...] Meu pai estava dormindo e eu deixei Pier Paolo fora de casa. Sem uma palavra. Evidentemente eu sentia qualquer coisa de muito forte nele, qualquer coisa excepcional.” [in Stefano Socci, Bernardo Bertolucci, Milano: Editrice Il Castoro, 1995]

Attilio Bertolucci ajudaria o poeta friulano a publicar Ragazzi di vita, seu primeiro romance.

O poeta friulano convidaria o jovem parmigiano a ser seu assistente no primeiro filme.

O produtor Tonino Cervi convidaria o primogênito de Attilio para dirigir a seqüência de Accattone, La commare secca.

“A minha maior preocupação era fazer um filme diferente de Accattone, que parecesse mais comigo. De conseguir que fossem meus, os rostos, as paisagens, e um dialeto que no princípio não eram.”

Com o filme de estréia, Bertolucci considera-se mais francês que italiano. Godard e Truffaut eram suas referências na época, justamente pelos questionamentos sobre o que era o processo de fazer filmes – “finalmente o cinema tinha chegado ao ponto de olhar-se no espelho”.

É de Bertolucci – junto com Dario Argento e Sergio Leone – o roteiro de Era uma vez no Oeste (68).

É de Bertolucci um dos grandes escândalos do cinema – O último tango em Paris – quase sempre infelizmente lembrado apenas pelo episódio da manteiga do que por uma infinidade de méritos outros, à escolha dos fãs e críticos. Eu citaria a música de Gato Barbieri, as imagens de Francis Bacon, o próprio apartamento onde se enclausuram Brando e Maria Schneider.

Tango foi censurado. Durante quase quinze anos foi proibida sua exibição em grande parte do mundo. Impossível não encontrar um paralelo com as infinitas perseguições à obra de um dos seus pais, Pasolini.

Na Espanha, as donas de casa cruzavam a fronteira do regime de Franco para assistir O último tango, esperando aprender alguma lição sexual.

Bertolucci volta à carga “escandalosa” com La luna (79), onde uma mãe americana tenta salvar o filho adolescente da droga, aceitando suas insinuações incestuosas. O roteiro tem a colaboração de Clare Peploe, então companheira do diretor. A mesma Peploe de Antonioni.

Se Michelangelo é sempre lembrado pelo seu discurso da incomunicabilidade, quase nunca comenta-se sobre o mesmo enfoque na obra de Bertolucci – talvez por ter uma temática mais ampla em sua também ampla filmografia. A impossibilidade das relações, presente nO último tango, permanece como pano de fundo de O céu que nos protege (ou O chá no deserto), inspirado no romance de Paul Bowles. É quase o mesmo casal, transferido da claustrofobia do apartamento parisiense para a claustrofobia do deserto marroquino. Dos anos setenta para os anos quarenta. Dos anos setenta para os anos noventa.

“Não é um filme sobre a impossibilidade do amor, mas sobre a impossibilidade de ser feliz no amor”, comentou. E:

“Os casais modernos são uma espécie em perigo. São tão constantemente atacados pelo mundo exterior que criam um tipo de fusão, uma simbiose. E tudo isso os leva logicamente a uma crise.”

Não posso falar sobre o último filme de Bertolucci, que não vi, mas sobre o último que vi: L’asssedio, quase dez anos atrás. Bertolucci retorna às relações tempestuosas entre um homem e uma mulher; e a Roma, uma Roma turística e ao mesmo tempo intimamente pessoal: os protagonistas, um músico inglês e uma estudante africana, convivem num apartamento vizinho às escadarias de Trinità dei Monti. Embora aparentemente “menor”, sem a grandiloqüência das paisagens as quais estávamos nos acostumando (O último imperador, O pequeno Buda), é um filme impressionante.

Toda a antipatia do inglês vai se diluindo pouco a pouco. E nós, que começamos odiando intensamente o personagem, terminamos por amá-lo. Intensamente.

2 comentários:

Anônimo disse...

...bertolucci in the sky with diamonds... o último tango sempre bem no nosso nariz, além de paris, em vias de osfato: todos os carinhos levam aroma...

Moacy Cirne disse...

O seu conhecimento do cinema é muito bom, meu caro. "Assédio" é um belo filme - sem falar em algumas de suas principais obras. "Os sonhadores" - o último filme dele que vi (já saiu em dvd, parece-me -, mesmo sem figurar entre seus trabalhos mais expressivos, é uma generosa homenagem ao próprio cinema. Um abraço.