quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Fidel



[Poema visual do livro No aver paura, Lulù, de P J Gutiérrez, Edizioni Estemporanee, Roma: 2006]



Mamãe eu quero ir pra Cuba, mas perdi o timing.

E eu já sabia que isso ia acontecer, eu esperava por isso feito um tolo kamikaze da desesperança.

Sem o comandante-em-chefe, Cuba vai perder aquela aura de museu vivo, suspenso no tempo. Aquela decadência, malemolência de carrões antigos em meio a prédios em ruínas e mulatas de coxas fartas e vestidinho de algodão barato.

Mamãe, o que eu não daria para encoxar uma mulata no pé do tanque de lavar!

De fumar charutos e cuspir no chão.

De ouvir jazz entre negros e entre negros de óculos escuros como os óculos de Cartola.

Mamãe, Cuba era uma Lapa agigantada, uma Ribeira hiperbólica, uma Olinda esfuziante.

E agora? Que será de nós?

Michael Moore já foi lá.

Antonio Banderas e David Beckham já preparam seus passaportes, Cuba fica na metade da rota USA-Cidade dos Reis.

Ry Cooder está em prantos. Cry me a river, Ry!

E Pedro Juan Gutiérrez? Desconfio que a primeira de muitas brochadas de Dom Pedrão aconteceu por estes dias. Vejo-o no Malecón, as ondas em fúria lavando pedras e putas e varões com suas vergas doiradas. Vejo-o no Malecón, afagando os cabelos que não tem, o olho oblíquo desesperado.

As folhas de tabaco recém-consumidas, enroladas, gastas, apagadas, mortas, no canto de sua boca frankensteiniana. Uma puta aproxima-se. O travecão chega junto. Impossível dizer qual dos dois mais hermoso. Más hermoso. Dias atrás o traveco tinha ameaçado a puta com uma gilete enferrujada. Agora, unem-se em defesa de Dom Pedrito, querem afagá-lo, beijá-lo, chupá-lo, mimá-lo.

Necas.

Pedro Juan enluarado. Conversa com o fantasma de Rodrigo de Jerez, o espanhol que fumou o primeiro puro em Gibara, ali pelos idos de 1492. Quando o Mundo era realmente Novo e Christophorus Colonus fazia a corte à Isabel de Castela.

Taca uma punhalada nela, cara, Taca uma punhalada nela, cara – repete o capítulo homônimo, páginas 186-190 da tradução brasileira da trilogia suja ou do rei de havana, não lembro qual dos dois. Alguém há de estar lendo essas páginas, neste exato instante, alguém há de.

Pedro Juan despede-se de Rodrigo, de Jerez. Olha pro alto, como se a qualquer momento Fidel pudesse aparecer em um dos terraços abertos sobre a ilha no topo do mundo. E recitasse seus versos, os versos de Gutiérrez, lágrima no olho gasto, corazón denunciador:

Yo estoy construido con los colmillos

de la serpiente

y el aullido del lobo

y el brillo del pez

y la astucia del tigre

y la potencia del toro

Yo soy un relincho salvaje

de los dioses

y un corazón de cordero

de donde mana sangre roja y caliente

Yo soy ese hombre que atraviesa

la ciudad para mirarte a los ojos

y oler tu piel y respirar profundamente

y meterse dentro de ti

hasta tocar tus huesos

y decirte

esto es todo lo que puedo hacer

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Interlúdio


[Ulysse's Gaze, 1995]


Explicação desnecessária: meu pai morreu na quarta-feira de cinzas.

Não encontro outro modo para dizer o que não gostaria de dizer, ou o que nunca gostaria de dizer, embora impossível de nunca ser dito. Claro.

Escrevi as duas última cronaxias, na terça, e na quarta.

Não publiquei.

Me sinto em dívida comigo mesmo ou com os meus leitores? – Sim, eles existem, embora alguns façam questão de fingir que não me lêem. E eu, tô reclamando o quê, se às vezes finjo que eles não existem?

Enfim. Talvez seja eu mesmo, cobrando a mim mesmo uma crônica bonita sobre o meu pai. “Que é que cê quer?” – pergunto a mim mesmo. “Já escrevi, neste mesmo blog, e quando ele era vivo”. Não respondo. Não respondo a mim mesmo. Prefiro ignorar gente revoltada. Ih! Energia ruim, pédepatomangalô3x. Próxima vez que cruzar com esse cara, desvio da calçada, atravesso a rua, enviesado, nem olho pra trás – ou olho, com aquele ar espantado dos caretas diante dos loucos-varridos.

Eu, ou ele, sei lá eu – ou ele. Enfim, assumamos: eu, sem nada pra fazer neste sábado noite, night fever night fever, cantem comigo, já entrei e saí de uma infinidade de sítios, blóguis, portais. Tédio só. Ou Tóddyo – como dizia João Batista de Morais Neto, o Juan de la calle. De notícias nos sítios, blóguis, portais – o João da Rua entrou aí atrapalhando o tráfico – vi uma. Meia: Tropa de elite ganhou Berlim. Urso de ouro.

Ufa.

(Não, não é ufa de até quem enfim. Nem de ufanismo. É: que merda.)

Então: que merda.

Tropa de elite é um dos piores filmes que vi nos últimos anos.

A turma de Berlim deve estar numas de pior.

Conselho bom pros moços e moças e membros da giuria: vão ouvir Low. Ou Berlin.

Quanto mais, prefiro Theo Angelopoulos a Costa-Gravas. Agora, ainda mais.

Tropa de elite – bah!

Filminho pra passar na Globo, depois do Jornal da Noite, depois do Jô, depois do Sérgio Grossman. Na hora do Caldeirão do Hulk. Na hora do Xou da Xuxa. Ou do Show da Sasha. Só falta o diretor aparecer no Faustão. Vai ser a glória.

Neste momento eu deveria desovar uma crítica inteligentemente bem escrita, articulada, explicando meus porquês do filme ser uma merda.

Faz de conta que eu escrevi, que vocês leram, e entenderam, uma parte ficou contra, outra a favor. Então, a turma do contra pr’esse lado, a outra pro lado de lá. Vocês podem fazer um cabo-de-guerra. ou jogar Vai-Vem.






Manhã de sol com tódio.

[João da Rua. Temporada de ingênios. Natal: Nossa Editora/Timbredições. 1ª edição em junho de 1986. João Batista de Morais Neto. Temporada de ingênios e outros. Natal: Sebo Vermelho. 2ª edição, 2006.]

sábado, 16 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : quarta


Cinzas.










cronaxia de carnaval : superterça

ANTES DAS 06:30
Quebra da maldição dos antepassados:

Traga sua meia.

Variação:

Quebra da maldição dos ancestrais – trazer, qualquer modo, a meia, enrolada sobre si mesma, em nó górdio e espiritual.

Em casa normalmente ele é uma moça, diz o senhor de óculos e bigode branco – e continua, Mas, sob o efeito das drogas – micropausa pulsante – é um assassino em potencial.

A madrasta exibe um olho roxo, e, à sua esquerda, em primeiro plano, um retalho da carteira de trabalho do rapaz com um 3x4 onde não se enxerga qualquer traço do rosto maldito.

POR VOLTA DAS 08:00
Já comprou seu scái-vápi-master? Livre-se daqueles produtos químicos, que irritam a pele, irritam seus filhos e irritam sua mulher – livre-se de você mesmo! O scái-vápi-master usa água a 145 graus Celsius. Eu falei 145 graus Celsius.

POR VOLTA DO MEIO-DO-DIA
1ª parada cardíaca.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

remeço




e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem: não sou eu, claro, óbvio uivando pra lua – é um dos Brothers Fields Forever, Harold, Haroldo, apontando seu telescópio pra Galáxia, tempestade de estrelas e nebulosas.

Estive ausente, me ausentei.

Fui ali, na esquina, comprar cigarros, tomar uma laranjada, apanhar tomates.

Fui ali, no ângulo largo da noite, me despedir. Me perder. Me reencontrar.

Fui ali, os passos incertos, o corpo ébrio, a boca seca.

Fui ali.

Parece que voltei.

Ainda estou lá.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : segunda

“Acho que nem os franceses entenderam esse filme.”

“Nunca mais vejo um filme francês.”

“Muito ruim, muito ruim, mesmo.”

[Público de A professora de piano, de Michael Haneke, austríaco, filmado em Viena, lançado em 2001, exibido sete anos depois, hoje, no Midway Mall, em Cidade dos Reis - lá pras tantas a protagonista diz algo assim: "O amor é feito de coisas banais"]

domingo, 3 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : domingo

Manhã #
Limpeza


Entre a manhã e a tarde #
Almoço

Tarde #
Nádegas

Entre a tarde e a noite #
Jantar

Noite #
Cinema

sábado, 2 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : sábado

Eu acordo estendido na cama, em diagonal, a voz da minha filha me pergunta, que horas você vai se levantar, papai, eu me levanto não sei que horas, mas não durou muito tempo entre a sua pergunta e o xixi no vaso, e a água no rosto, e o capuccino e a TV ligada nos desenhos animados, e as conversas, e as discussões, e a minha partida, fuga do caos, carnevale, rota do sol, oitenta quilômetros por hora, em meia hora desemboco na Afonso Pena, viro à esquerda na Mipibu, o Oceano me espera, não o Atlântico, transbordando sobre o trapézio de Atlas, mas a academia de ginástica, de pesos, de máquinas de esculpir músculos sob a pele em tensão permanente, confesso agora que me rendi ao culto ao semideus Saúde, só me falta parar de fumar, não, meu deus, salvai-me desta blasfêmia, tenho ainda tantos camelos a tragar, por enquanto séries de doze a cumprir, doze levantamentos de halteres dos menores mais um de lambuja que o professor me envia a título de bolacha Maria, puta que pariu, a bolacha Maria é indigesta e eu tenho dificuldade de me concentrar nos números e na contagem dos números, mas sou aplicado, meus bíceps incham, meus tríceps se enrijecem, a batata da perna resta ainda chocha, no final foram algumas máquinas a me controlar corpo e mente, uma moça, gerente de um restaurante das vizinhanças me admoesta, cuidado, ele, o professor, vai fazer sua cabeça, você não vai conseguir se livrar desses exercícios, vai enlouquecer feito ele, enquanto isso eu suo, nem em bicas, nem em cântaros, nem porra nenhuma, é só um suor e não me paga ao menos o pão, brioche aziaga que masco como folha de coca a me livrar do mal da altura, faço um alongamento fast de olho no relógio, entro no banho, lavo a cabeça com shampoo chic, sabonete fake chic, algo como flor de maçã e erva cidreira, me enxugo, me penteio, meto uma camisa vermelha e vou ao hospital, assunto do qual me abstenho de falar aqui por demais íntimo, saio uns quarenta, quarenta e cinco, cinqüenta minutos depois, almoço com minha mãe, panquecas, banana, rocambole de sobremesa, estou meio puto e sem vontade de falar, fumo um, dois cigarros, leio um, dois jornais, não tem pó de café na casa da minha mãe, então, nada de café, só sofá, TV Globo, soneca, até as quatro, dezesseis horas sem a.m., p.m., de novo hospital, meio lerdo, meio tonto, outros quarenta, cinqüenta minutos, vou ao cinema, shopping, hospital dos solitários, admirar a manada, sorte, tem o gângster em meia hora, compro pipocas, uma coca cola pequena, me empoleiro entre os solitários e os casais solitários, sou um espectador privilegiado na New Jersey de fim dos anos sessenta, setenta, ufa, mergulho em águas profundas, saio do cinema doido pra matar alguém, encarar alguém, topar uma briga com alguém, em vez, saio ao estacionamento, pego o maço de camels no interior do carro, reentro até a livraria, flano entre as prateleiras, entre piza e castro opto pelas mil e uma noites na busca do original, nada de farsa, tragédia, ainda passo nas americanas, estranhamente quero um Diego Nogueira, um samba, será influência do carnaval.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

biguebangue


[Manara, detalhe, trabalhado por midc]

Eu agora olho praquela região acima do peito, acima dos seios, acima do seu batimento cardíaco e onde seu respiro é mais suave. Parece uma planície imensa, lisa e aveludada, de uma cor que remete a campos férteis de trigo e a pomares de jambos. Eu agora deslizo meu olhar indiscreto e ingênuo para a vasta paisagem que descortino, como um menino na sombra de uma calçada vestida da fúcsia intensa das flores, na frescura da manhã, no arremedo da fome que acaricia minh’outra fome alimentada de incógnitas. Eu agora olho pros lábios frutificando versos, cintilando prosas, domesticando minhas oiças, bulindo a menina dos meus olhos, estrela que caiu sob o sol do meio-do-dia. Eu agora tento descobrir o que o vestido esconde. Eu sei o que o vestido esconde: sol varando nuvens, explosão, bigue bangue.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

REFLEXO II


[Um cão andaluz: Buñuel]


Recordamos um olhar talvez melhor que uma palavra, porque não há em todo o vocabulário nenhuma que saiba desnudar uma mulher.


[Italo Svevo, A consciência de Zeno, São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003]

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

REFLEXO


[Man Ray, Tears]

ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ ME PERGUNTO SE ESSE OLHAR QUE MEUS OLHOS VÊEM É MESMO OLHAR OU SÃO APENAS SEUS OLHOS SE PERGUNTANDO O PORQUÊ DO MEU OLHAR MERGULHANDO SEM PEDIR LICENÇA NA VASTIDÃO DO SEU.

sábado, 26 de janeiro de 2008

solidão de sábado





Eu como, eu bebo, eu fumo.
Eu converso.
Eu trago, eu belisco, eu mastigo.
Eu olho ao redor.
Eu arrasto a língua nos dentes, eu estico as costas, eu estendo braço e antebraço no parapeito da janela.
Eu olho pro fundo do copo.
Eu como novamente, eu bebo novamente, eu fumo mais um cigarro.
Eu ouço.
Eu estiro os músculos do pescoço, eu sorrio, eu fico triste.
Eu lembro.
Eu peço mais uma cerveja, eu peço mais outra cerveja, eu peço ainda mais outra cerveja.
Eu olhos pras paredes.
Eu vejo as moças chegarem, eu ouço as moças falarem, eu enxergo o riso das moças no escuro.
Eu sinto um peso nos ombros.
Eu converso sobre cinema, eu converso sobre ex-amores, eu calo sobre futuros.
Eu vou-me.

II

Não pra Pasárgada.
Pro shopping.
Eu compro-me. Eu pago-me. Eu levo-me.
Eu, não: nós – Saramago, Bolaño, Austen.
Tá bom assim: alfabeto invertido.
Numa sacola de plástico.

III

O apartamento continua vazio. E eu entrei. Comigo, adentrou a solidão do sábado-noite. Instalou-se no sofá, ligou a TV, acendeu o computador, olhou a noite lá fora, fechou os olhos à noite cá dentro.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

estação



De ti, fujo, como a primavera do inclemente verão.

Descanso meus olhos do incêndio bruxo dos seus. Enrolo nuvens de farpas na junção lisa do seu colo. Anilho silêncios lá, ali, bem ali onde pulsa sublime su’alma cardiopata.

É uma luta desigual entre cílios. Eles me arrastam, me combatem, me viciam. Me ponho de lado, descortino os arcos alvos que sustentam sua voz. Uma a uma despojam-se de escamas o seu discurso. Desfolham-se de pétalas e de munição as palavras agora nuas.

Percorro os panos que tecem seu corpo e o escondem de mim e o apresentam a mim embora seja eu o que deve ser imolado. Dou de cara com os pés envolto em sandálias como as de Camila López. Os calcanhares como o de Aquiles e Gardner. Fico com o osso tremelicante de um Nabokov ancião.

Quero uma flecha, um arco! Não encontro.

É um labirinto sem ângulos a vizinhança que nossos corpos se batem. Uma estrada sinuosa nosso gaguejar de mãos e braços que avançam e recuam, mais que no espaço, no tempo.

Arena sem vencedores.

Atrás de si, correm minhas palavras.

Como cachorrinhos sôfregos.

Na outra direção, meu corpo exangue.

Passarão séculos sem que a beije, sem que me beije.

Passarão séculos sem que meus lábios umedeçam os seus, sua língua naufrague em minha.

Já passam séculos nesse breve instante em que fujo de si sem perceber que é a sua sombra que de mim desgarra.

E me expõe a um sol novamente inverno.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Os amigos do meu irmão são meus amigos também



Ser caçula é padecer no Paraíso.

A gente é mimado, adulado, passam a mão na nossa cabeça, mas ninguém nos chama pra sair.

Dois anos me separam do meu irmão mais próximo.

Na infância, pouco, ou quase nada: as camas restavam a poucos passos, as roupas mudavam apenas de cor ou desenho.

O dia em que o cordão fraternal foi rompido foi de dor: eu vinha do centro da cidade pela rua Açu e vi, na calçada oposta, meu irmão com uma nova turma – ironicamente era a turma de um bloco de carnaval chamado Jardim de Infância. Talvez tenha sido no mesmo ano em que ele chegou na hora do almoço, jogou de lado a bolsa colegial pra lá de puída, as alças escangalhadas, um quase arremedo punk e dirigiu-se vigoroso aos meus pais: Sou um pré-adolescente, disse.

Eu, calado, assustado, pensei: Que será isso? – e, seja o que for, não é ainda pra mim.

Aquele carnaval foi nossa primeira ruptura – amigável, mas ruptura, e, sendo assim, traumática. Pela primeira vez eu fiquei só, no carro, com meus pais, observando o trator, as carrocerias enfeitadas, os macacões coloridos.

Mas, bom mesmo foi quando ele fez o pré. Pra quem não sabe, fazer o pré significa cursar o pré-universitário, último ano do colégio. Os amigos iam estudar lá em casa, antes da aula que começava às 5 da tarde. Eu peruava pra lá e pra cá, enquanto não me mandavam embora. Até que um deles, que tinha a maior coleção de vinis que eu conhecia, começou a me emprestar: Jethro Tull, Crosby, Still, Nash & Young, Alan Parsons Project, Yes, Pink Floyd, Emerson, Lake & Palmer e um Andrew Lloyd Webber que nunca mais vi.

Na universidade eram dois, os amigos mais inseparáveis. Dele.

E quando meu irmão arrumou uma namorada, ficando eles órfãos, fui adotado.

Às vezes num fusquinha branco, às vezes num escort vermelho, eu adentrei cada vez mais intensamente no mundo light da tríade sex, drugs, rock’n’roll. Talvez foi a forma que ele encontrou para, nem me privar do que podia ser bom, nem ser irresponsável de me levar pela mão por territórios que eu naturalmente deveria desbravar sozinho.

Um dia a viagem acabou, desembarcamos todos, outras viagens tiveram início.
Mas quando a gente se reencontra – eu ainda sendo chamado como um caçula da turma – eu percebo que aquela estação continua viva, sem sombra de saudosismo desenfreado, apenas a certeza de que as verdadeiras amizades duram pra sempre.

É como um disco de vinil: às vezes só falta onde tocá-lo.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

aguazúl

[Guido Crepax]


De Turim me chega email da poeta Marinella Grosa. Conta que estava com um amigo arquiteto, os dois diante do computador, os dois diante do Google earth. Ela pede para ele digitar as cinco letras: n-a-t-a-l. Surge na tela casas baixas, jardins, piscinas. É a Cidade dos Reis Magos – um outro mundo, segundo Marinella, que me envia versos, que traduzirei assim que me desvencilhar do labirinto das casas baixas, dos jardins, das piscinas, aguazúl.
Cenerentola

così mi adopro
a cogliere i segnali:
gli scricchiolii del legno
nello stipite della porta.
così respiro l'aria della nebbia
come fosse rugiada.
e intendo danzare fino all'alba
(si presentasse l'occasione).
so che non c'è tempo
ma so che ho solo il tempo
per compiere
la grande trasformazione.
Marinella Grosa

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Alpendre



É uma das palavras mais bonitas da língua.

Nem vou ao Houaiss: conspurcar o que sinto, em imagens que cruzam os anos como uma nave de velas estendidas, com o que o dicionário disseca, em corte cirúrgico preciso – mas estéril, seco, impreciso.

Deve de ter seguramente raiz árabe, como tudo que inicia com “AL” – alambique, alcachofra, alcaçuz.

E é bom iludir-me que uma mínima parte de nós tem a ver com deserto, com escorpiões, camelos, oásis, tâmaras. E com mulheres de olhos negros e mãos tatuadas, tatuando na nossa pele a mágica do amor.

Mal não há, sonhar que algo em nós lutou em Alcácer-Quibi.

E, como num mapa de estrelas unidas em linhas imaginárias, nos une, liga, alinha e enlinha, a um oriente ao oriente do oriente. E que passa pelas terras áridas de Espanha, areias quentes de Portugal. E que atravessa o Atlântico no movimento elísio dos barcos, e dispara mais uma vez rumo ao coração das trevas d’África.

E eu, que de alpendres carrego comigo, na bagagem torta dos anos, apenas aqueles à beira-mar, posso sonhar com os alpendres-irmãos, no sertão, nos Sertões. Parede-meia com o infinito.

Atravessa em mim o passo curto das reses, o chocalho alquebrado badalando horas e séculos – e pancada do mar, engolindo e regurgitando a si mesmo, o oceano que ilude-se céu, mar de sargaços, mar de estrelas, astrolábios, bússolas, latadas, redes de pescar.

Foi num desses alpendres que minha mãe embalou seus filhos, xô, xô, pavão, sai de cima do telhado – e eu, antes de conhecer o cordel e Ednardo, já pressentia os mysterios da ave e do paraíso.

Foi num alpendre que meu pai apontou o horizonte pra nós, seus filhos, no abraço seguro de quem ama e protege, indicando na mão, balé ondulante, o horizonte ignoto: ondas volumosas, tortuosas, tenebrosas... Mal sabia eu que o horizonte distante era o futuro, e que no dia que chegássemos lá já não mais contaríamos com a força do seu braço, escudo das dores do mundo.

Inverteram-se os papéis, o alpendre restou vazio. É hora de espantar os pavões dos telhados, momento de acalmar as ondas.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Ladies & gentlemen: Fabrício Carpinejar


Como todos vocês sabem fiquei muito tempo numa câmara frigorífica e mais outro tanto num ermo qualquer do Afganistão - deve ser por isso que quase não sei nada sobre Carpinejar (apesar do nome de escritor). Mas o texto do cara me pareceu bom e este especialmente (cujo título é Sou a civilização antiga do meu irmão). Alguém me enviou e eu remeto procês - pra ler no original, clique aqui.

É um enigma como irmãos se distanciam quando
adultos. Não são as palavras que separam, mas o que deixamos em seu lugar. Uma
incompreensão que nunca é tirada a limpo e fica como verdade. As desavenças na
maturidade não são maiores do que as da infância. Brigávamos com igual
intensidade. O que mudou é que não moramos juntos para reatar. Se estivéssemos
dormindo no mesmo quarto, faríamos as pazes uma hora qualquer e pediríamos
desculpas. O medo de perder a companhia de brincadeira superava o orgulho.
Rodrigo, dois anos mais velho do que eu, mora em Porto Alegre. Não conheci seu
apartamento, apesar de um ano de sua mudança. Quem nos reúne é a mãe por tabela.
Vou visitá-la e ele passa por lá. É visível que não temos paciência um com o
outro. Partilhamos uma irritação ansiosa, sem capacidade para formular a frase
certa e conciliadora. A frase que poria todas as diferenças de lado. Deve
existir uma frase, mas não insistimos com os sons. Não cedemos tempo, logo
trocamos de assunto e os parentes entram na sala e dispersamos a direção da
conversa. Rodrigo tem gostos muito parecidos, é poeta, compõe e adora dançar
desgovernado, jurando que encontrou o ritmo da música. Na adolescência,
somávamos as mesadas para colecionar LPs. Eu era a esponja dele: tudo o que ele
ouvia tomava como meu. Rodava no recreio da escola como seu Lado B. Durante
tardes inteiras, explorávamos raridades nas lojas debaixo do viaduto da Borges.
Foi ele que me inspirou a ler poesia ao emprestar o livro "Uma estadia no
inferno", de Rimbaud. Na manhã seguinte à leitura, desabafei: "não entendi
nada". Ele me tranqüilizou: "É isso mesmo. Amanhã não vai também entender nada
até viver algo do livro, uma única imagem, e ele se abrirá". Foi o que
aconteceu. O guri sempre me interpretava. Participava de uma banda e me
carregava aos ensaios e apresentações noturnas. Segredava aos ouvidos que aquela
menina poderia ser interessante. Levava um puta fora. Não me permitia chorar,
recapitulava com paciência meus erros e me empurrava para que insistisse. "Ela
já sabe que é um chato, portanto seja chato, é o que tu 'faz' melhor". Filosofia
engraçada, que rendia paixões esquisitas. Às vezes, não sobrevivia. Ele batia
nos ombros e consolava: "Não há gafe que não vire uma grande história depois
para rir". Parti para vários acampamentos com seus amigos nas praias de Santa
Catarina. As primeiras noites em que dormi longe da família. Virei o caçula da
turma. Aprendi a montar barraca, a passar fome para gastar em bebida, a filar
cigarro, a pedir carona e confiar na generosidade de estranhos. Tomei porres
homéricos e ele me cuidando: - Vai passar, agüenta firme. Descobri o quanto
detesto escalar morros, que ele adorava. Três horas de caminhada para aproveitar
cinco minutos no topo e iniciar o regresso. Atuava como sindicalista dos irmãos
no momento de garantir os nossos direitos. Fazia o papel de segundo pai e se
ferrou. De interino terminou como figura masculina permanente, porque o pai
realmente saiu de casa. Abafou o divórcio com seu jeito prático de resolver os
problemas e assumir os desaforos. Fruta que amadureceu no chão, empurrado para a
responsabilidade cedo demais. Era um enigma como irmãos se distanciam até que vi
Rodrigo carregar meu filho Vicente no colo. O filhote sofria de cócegas nos
olhos. Tomaram um livro de dinossauros da estante e Rodrigo explicou a evolução.
Árvores convertidas em pedras, ossos reconstituídos de um punhado de pó. Eles se
confiavam. Confiar é melhor do que compreender. Eu me lembrei do que fui e do
que ele foi. Seu rosto de longa testa. Os exatos quatro vincos antecedendo os
cabelos. O menino sábio, colecionador de moedas e estudioso das antigas
civilizações. O menino rabugento com alguma injustiça. O menino que não aceitava
que os mais velhos zoassem de mim. O menino que andava de mãos dadas comigo para
atravessar a praia e a rua. Eu me lembrei de nosso contentamento telepático. Do
cheiro de nescau de nossa merendeira e de nossos uniformes suados. "Vamos
brincar" é a frase certa que largamos no pátio. A frase que dissiparia dúvidas e
rancores e nos encheria de fôlego e expectativa. Correr era se abraçar.
Esquecemos de brincar. Esquecemos a pressa dos apelidos. Quando ele me chamava
de Bito e eu o chamava simplesmente de Igo. Esquecemos que somos crianças
atrapalhadas. Antes o mundo era um inimigo comum e reservávamos nossas forças
secretas para nos proteger. Somos atualmente nossos inimigos, inimigos porque
crescemos carregados de razões. Cada um com suas razões. Mas, mano amado, ainda
assim não podemos parar de nos proteger.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Timeline


A primeira vez que eu li John Fante.
A primeira vez que eu vi O piano.
A primeira vez que eu li Paul Bowles.
A primeira vez que eu vi Era uma vez na América.
A primeira vez que eu li Julio Cortázar.
A primeira vez que eu vi Os vivos e os mortos.
A primeira vez que eu li Jorge Mautner.
A primeira vez que eu vi Cria cuervos.
A primeira vez que eu li Raduan Nassar.
A primeira vez que eu vi Limite.

A primeira vez que eu ouvi The Köln Concert.

A segunda vez que eu vi O piano.
A segunda vez que eu li Paul Bowles.
A segunda vez que eu vi Era uma vez na América.
A segunda vez que eu li Julio Cortázar.
A segunda vez que eu li Raduan Nassar.

A segunda vez que eu ouvi The Köln Concert.

A terceira vez que eu vi Era uma vez na América.
A terceira vez que eu li Julio Cortázar.

A terceira vez que eu ouvi The Köln Concert.

A oitava vez que eu vi Era uma vez na América.
A oitava vez que eu li Julio Cortázar.

A oitava vez que eu ouvi The Köln Concert.

A décima-terceira vez que eu vi Era uma vez na América.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

2008 começa assim




Andei sumido destas paragens.

Propositadamente.

Sem forças, cansado.

Esta Cidade dos Reis é prazer, menina dos olhos, ninfa, sereia, musa, mito.

Não dava pra misturar alhos com trabalhos, bugalhos com lazer, amor e dor.

Uma puta não beija cliente na boca. Só seu amor, amorzinho.

Ligo um rádio na minha cabeça, no meu caixote, como diz minha filha aos seis anos, sem cansaço. Itamar canta, Estou doente do peito, doente do coração, a minha cama já virou leito, disseram que eu perdi a razão.

Acendo um cigarro, o estômago faz ssschhhhhh, como o sol de bruços n’água.

Sintonizo o pretobrás: Estou maluco da idéia, guiando o carro na contramão. Saí do palco fui pra platéia.

No porão. Um pedaço de mim ficou lá, emparedado como o gato de Poe.

Debaixo do assoalho, debaixo das tábuas do assoalho, como o coração prestes a denunciar o vazio, o som, a fúria.

Andei circulando pelo Hospital. O Reino. Confundo os títulos de Duras, O homem sentado no corredor, A doença da morte.

Não é uma coisa nem outra. Me enfastio dessa intelectualidade, dessa poesia, desse romantismo sabor limão e frutas do bosque.

Não existe corredor sombrio, fantasmas despregando-se como papel nas paredes. Existe luz e fluorescência, débito mensal à companhia de força e luz.

Não existe doença que leve à morte. Ela esteve sempre ali, ao nosso lado, brincando entorno de nós, fitas e laços coloridos nas mãos, os braços batendo asas de borboleta.

Não sou eu naquele leito de hospital.

Sou eu.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

2007 finda assim



Daqui pra pouco o ano Zero-Sete da contagem cristã chegará aos seus estertores. Envelhecido, envilecido, destronado, cederá lugar, tempo e espaço ao novo rebento, o bebezinho rechonchudo, rosado e bonitinho – como todo bebê – que promete ser Zero-Oito, mesmo que ainda no útero do Universo Prenhe – de boas intenções como todo Inferno Que se Preza.

Retrospectivas, listas, listras, revivals, memórias – tudo se recauchuta a fim de celebrar, mais que o ano velho, o novo principezinho, futuro rei nu, futuro rei, rainha, príncipe, princesa, mortos e postos.

Quanto a mim, 2007 restará como o ano em que perdemos Oswaldo Lamartine de Faria. Na noite do 28 de março, Oswaldo saiu da vida sem entrar para a História – que estas coisas, com agá maiúsculo, não temos por aqui, bandas e ribeiras do Ryo pretensamente Grande (e de uma pequenez enorme e abnorme e inversamente proporcional à grandeza das obras escritas por meia dúzia de gatos pingados, OLF entre eles.)


É de Giovanni Sérgio as fotos que enriquecem estas linhas, tiradas na Fazenda Acauã – o pássaro de canto melancólico, verbete de Cascudo no Dicionário do folclore brasileiro, anunciando a visita de hóspedes: “É uma ave austera, cheia de gravidade e senso, que faz gosto vê-la. Andando devagar e compassadamente, como compete a um ente que tem direito ao culto dos homens, dá vontade de cumprimentá-la como a um desembargador”.

É de Oswaldo a resposta à Carlos Newton Júnior em Em alpendres d’Acauã, sobre a Natal de ontem e de hoje:


“A gente não renegava o chão. Morava-se melhor –
em casas com quintais. E menino que teve infância em quintais, com mangueiras e
cachorros, dispensa divã de analista. Vocês podem dizer que em apartamento
também pode se criar cachorro, e eu acrescento: só dois bichos, incluindo o
homem, podem ser criados em apartamento sem ficar neuróticos – barata e peixe de
aquário.
Não esqueçam. Vocês que se deixaram seduzir por essa arquitetura de
maribondo – uns sobre os outros. Vocês aí do último andar. Vocês que fizeram do
Potengi, onde se pescava tainha, essa cloaca fétida e nojenta. Vocês que
cortaram mangueiras para construir essas chocadeiras climatizadas. Vocês que
emporcalharam os horizontes da capital nordestina de mais bela topografia.
Lembrem-se do velho Braga em Ai de ti, Copacabana – pois em verdade é tarde para
a prece
...”

Em verdade, em verdade, é preciso não esquecer: Oswaldo morreu no alto de um flat, casa de maribondo, chocadeira climatizada. Da varanda, rede armada, última réstia do Seridó, assistia o sol se pôr por sobre a cloaca fétida e nojenta.

Sobre ele escrevi os dois textos que republico logo abaixo, coincidentemente escritos na distância de um ano – março de 2006, março de 2007 –, desejando à turma do último andar um 2008 terrível.

Ruim mesmo.

Pra que serve Oswaldo Lamartine?


Provavelmente no enterro de Oswaldo Lamartine vai dar mais gente pras alças do caixão do que no lançamento dos livros Apontamentos sobre a faca de ponta e Carta da seca, ontem, 20 de março de 2006, no Natal Shopping.

Injustiça? Ignorância? Descaso? Atire a primeira pedra aquele. Atire a primeira faca aquele.

Faltou mais gente do que foi. Nenhum jornalista. Nenhum quinta-colunista. Nenhum político. Nenhum estudante fardado, federal ou particular. Shopping alheio. Ausente. Descrente.

De Oswaldo Lamartine o cidadão mortal se aproxima na ponta dos pés, se esforça pra não gemer, só responde se for perguntado, só olha nos olhos se for olhado.

Assim deveria ser.

Um santo. Alinhado. Oswaldo se veste como hoje se vestiria o homem de ontem – ou seja: como Oswaldo mesmo. Sem cheirar a bolor. O figurino parece ter saído do armário do tempo, imaculado, sem uma prega, como se nunca usado. Não se encontra roupa igual no shopping. No mall. Paletó de veludo, sapatos de crocodilo – ou cobra ou qualquer bicho que rasteje diante do bicho-homem.

Oswaldo Lamartine no shopping: é judiação. Se atrapalha com os livros. Pede desculpas por dedicar na Carta da seca os ferros de ponta. Sem falsa modéstia pelo acúmulo desempoeirado dos anos, sem sombra de importância maior que o caso mereça. Sem encabulamento. Também Oswaldo Lamartine alheia-se do mundo. Daquele mundinho de gente que veio, sem ouro, incenso ou mirra, se deixar ferrar pela brasa turva do seu desassossego.

Cospe num copo de plástico. Um lenço nos dedos desconcertados. O caçula dos dez irmãos. Resto de seca. Pra que serve Oswaldo Lamartine? Pra nada, como na resposta de Serejo sobre a poesia. Oswaldo Lamartine é poesia. Definha sem esmorecer. De pé, dialogando com a noite sertaneja, com o agregado anônimo, com a Moça Caetana.

No saguão as mulheres vêm e vão sem falar de Miguel Ângelo. Prufrock. Lamartine lhes beija a mão.

Ant’ontem, ABC contra Flamengo. Doze mil pagantes. Pra que serve Oswaldo Lamartine?

O que encabula é que os entendidos confessam que a ciência moderna, com toda a sua soberba parafernália, ainda não conseguiu produzir exemplares semelhantes aos do passado. Acrescentem-se aspas, no início e fim da frase anterior: é Lamartine, escrevendo, no alcance do braço, sobre a espada japonesa.

Livres, enfim


Morto e enterrado Oswaldo Lamartine, a cidade pode respirar agora aliviada.

Foi-se o último, o derradeiro, o sobejo da seca, como gostava de biografar-se.

Não resta mais nenhum. Ou muito poucos.

Pode já esta metrópole, sem luto ou bandeira a meio-pau, seguir seu rumo beradeiro, sua agenda do crescimento, seu destino internacional. Pode continuar tranqüilamente a receber selinhos de Hebe Camargo e propostas irrecusáveis de cafetões internacionais.

Está livre, agora e para sempre, da obrigação medonha de deitar os olhos num livro seu.

Vivo, era um constrangimento só, ainda que quase esquecido e empoleirado no décimo segundo andar de um prédio com nome de rio e alcunha de flat.

Vivo, era a prova indubitável da possibilidade de vida inteligente às margens do Potengi. Exemplo claro de uma dedicação que não buscava nem o poder nem a glória nem o pavonear grotesco nos salões e ante-salas. Modelo de um cavalheirismo de bela figura suspenso no tempo, como se a Câmara dos Lordes inglesa e a caatinga potiguar fossem vizinhas de cerca.

Tudo, enfim, que não somos.

Oswaldo Lamartine era uma pedra no sapato desse estado, sempre recordando com sua presença discreta e paradoxalmente exuberante que não sabemos escrever, que não sabemos falar, que não sabemos ser educados, que não sabemos tanger nem gado nem abelha nem rastrear destinos nem manejar um punhal. Que não sabemos, principalmente, ler.

A morte de Oswaldo é página virada em livro não lido, abandonado de propósito na estante mais alta, pra não cair na tentação da leitura, pra esquecer, mesmo, de uma vez por todas, do que não sabemos e não somos capazes de apreender.

sábado, 29 de dezembro de 2007

4x4: Jesus Christ Superstar



[Que Robert Plant que nada – barba pouca é bobagem...
Gual e o subscrito – a quem ainda falta muito para encanecer como se deve – vésperas de Natal 07.]

porque eu acredito em papai noel [II] e em 2008 [I]




Ao fim destas noites de olhos e risos claros
restarão um corpo indolente
e o clarão do sol
o carão do mundo
e o cheiro da manhã
em esplendor

[João Gualberto Aguiar (Don Sancho), em Nuvem poema. Natal: Fundação José Augusto, 1990]

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

porque eu acredito em papai noel

Conto de Natal


18 anos


Véspera de Natal, antes da missa das oito, pediu emprestado o carro do pai. Prometeu que voltaria em tempo de acompanhar a família. Após a liturgia a ceia seria na casa dos tios e primos. Peru, filé, arroz com passas e uma torta coberta com fios de ovos na sobremesa. Apostaria neste menu, uma certeza nascida da experiência de tantos e tão poucos anos. Antes do ano-novo a maioridade lhe abriria as portas para um futuro no mínimo assustador: universidade, trabalho, responsabilidades.

Agora, na rua deserta de horas crepusculares, a namorada abria o seu presente – um perfume d’O Boticário – e ele abria o dela – uma camiseta esportiva sem marca. A namorada usava batom, era um palmo mais alta que ele, e tinha seios grandes, bem maiores que a palma de sua mão ansiosa e inexperiente. O batom era grudento, seus lábios ficavam exageradamente pegajosos, mas o pior era a dor aguda que lhe castigava os testículos durante esses encontros.

Tinha cílios grandes, a namorada.

Piscavam. Sorriam. Doces como mel.

Tinha seios grandes, a namorada.

Durinhos. Alegres. Doces como mel.

Ele já estava cansado daquela dor que lhe atravessava os ovos. Puto. Puta. Arrancou sem pensar a saia da namorada. Quando rasgou a calcinha, já pensava no que viria na seqüência – os pelos negros, os lábios sem batom.

Antes da missa das oito teria que devolver o carro ao pai. Acompanhar a família. O arroz com passas, o peru, o filé, os primos e tios esperavam por eles. Os fios de ovos. Bateu a porta do carro com força, a namorada restou desconsolada na calçada. Por um instante pareceu-lhe que suas coxas estavam cobertas de fios, fios de ovos.

Na missa, acompanhou a mãe na comunhão, a hóstia consagrando a véspera de sua maioridade.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Crônica de Natal





Supra-sumo do gênero, a Crônica de Natal renova-se a cada ano, infatigável como a árvore, os presentes, o papai Noel e, em menor escala, os presépios.

Leio nas folhas a banalidade da tristeza no período, normalmente efervescente. “O Natal é uma data diferente do restante do ano, em que alguns sentimentos são impostos, um discurso geral de amor e paz. E muitas vezes a pessoa não se sente assim, ou não está bem – com ela mesma ou a família – e constata que não pode mentir. É daí que surge a tristeza”, explica a psicanalista Odete Bezerra ao Jornal de Hoje, de 22 e 23 de dezembro.

O problema do Natal – segundo a (pouco) humilde (ora, vão se catar!) opinião do subscrito – é a sua proximidade com o fim do ano: réveillon e ceia natalina se atravancam, se sobrepõem, se engalfinham, numa proximidade que chega a ser promíscua com todo seu farfalhar de risos, guizos de renas, espocar de champanhas e consumismo febril embalado em papéis multicoloridos. No curto espaço de sete dias, o cidadão que não quer sentir-se marginalizado e tratado qual um chato de galochas, deve descalçar, pois, as ditas cujas e vestir, na seqüência, uma camisa encarnada e outra branca – de preferência com um dourado PAZ em letras garrafais brilhando no peito.

Deve encarar, também, uma despesa muito além do 13º, dando presentes (“lembrancinhas”) até para aqueles a quem não dignou olhares ou palavras durante todo ano – a começar pelo porteiro do prédio.

Para os brasileiros, terra onde, sabe-se, Deus nasceu, o qüiproquó aumenta com a chegada do verão, que por sua vez se interpõe ao carnaval (que nos honra com o título de “país do”) e coincide com as férias escolares. Resultado: finda-se mais um ano onde pouco fizemos, pouco ganhamos, pouco comemos e pouco amamos, para começar, só dois meses depois o tal do Ano Novo tão celebrado.

Não sei o que incomoda aos mais novos, nem se algum incômodo têm. Quanto aos mais ou menos velhos, entre os quais me incluo, bem na coluna do meio, zebrado, a ladainha é a mesma: bom mesmo eram os natais de antigamente, um presentinho singelo embaixo da cama (quase nunca o Forte Apache ou o Autorama), a Missa do Galo (que detestávamos ir, cabelinho repartido e roupas engalanadas pra ouvir o sermão literal do padre), a família reunida (a quem olhávamos estranhados e que nos retribuía com o mesmo olhar de desaprovação).

De famílias fizemos umas duas, três, alguns filhos espalhados pelo país e pelo mundo, o que complica o momento das apresentações para aquela velha tia que não se modernizou. De presentes esbanjamos o que temos e o que não temos graças às infinitas prestações, suaves no afã da compra, pesadas o resto do ano. Da Missa, do Galo, da Galinha, da Meia-Noite, do Meio-Dia, guardamos fiel e consagrada distância, mais preocupados com o menu e o rótulo do vinho, connaisseur que somos dos mistérios eternos que nos resumem: quem somos, de onde viemos, para aonde vamos.

E, ainda assim, um pouco hipócritas, um pouco sinceros, espalhamos lá e cá, como flores em festa pastoril as palavras que repito aqui, hipocritamente sincero: FELIZ NATAL A TODOS!

Cesta de Natal Cidade dos Reis






O jargão muito dinheiro no bolso não aconteceu neste 2007 – então, com o tridente na mão para superlotar ainda mais o Quinto dos Infernos, minha boa vontade elaborou a clássica lista dos dez mais deste ano, acrescida de um 11º e de um 12º e de um 13º, pra ser diferente e com medo de esquecer alguém, o que certamente aconteceu, e porque enfim é dezembro; alguns [livros] são do ano passado ou até de dois ou mais anos atrás, outros são relançamentos, mas todos, enfim, comprados e lidos em zero-sete; também não é certamente a lista dos dez (treze) mais: “longe” de casa, dividido entre o centro, downtown, e o litoral sul, foi o que a minha memória conseguiu arrebanhar, num quase-quasar improviso; como sou egoísta, seguiu-se ao objeto de desejo adquirido (do qual, não, não consigo cristianamente me desfazer) o nome de alguém a quem gostaria de ter presenteado – alguns dos meus interlocutores neste e em outros anos. (Nota: não existe nenhuma piadinha entre presente e presenteado.) Os carinhas citados, então, sintam meu eu virtual descendo pelas suas chaminés virtuais, colocando em suas meinhas virtuais ou embaixo de suas caminhas virtuais, meu sincero – e, reconheço, meio cafajeste – FELIZ NATAL!

1. Poemas, Kostantinos Kaváfis (José Olympio, 2006) – para Adriano de Sousa

2. La lunga strada di sabbia, Pier Paolo Pasolini e Philippe Séclier (Contrasto, 2005) – para Afonso Martins

3. A fera na selva, Henry James (Cosac Naify, 2007) – para Alex de Souza

4. 1001 discos para ouvir antes de morrer, Robert Dimery (Sextante, 2007) – para Carito

5. Fim de caso, Graham Greene (BestBolso, 2007) – para Carlão de Souza

6. História da feiúra, Umberto Eco (Record, 2007) – para Giovanni Sérgio

7. A última casa de ópio, Nick Tosches (Conrad, 2006) – para João Gualberto

8. Todos os corpos de Pasolini, Luiz Nazário (Perspectiva, 2007) – para Moacy Cirne

9. Lost girls meninas crescidas, Alan Moore (Devir, 2007) – para Napoleão de Paiva

10. Bom dia, tristeza, Françoise Sagan (BestBolso, 2007) – para Rodrigo Levino

11. Ética prática, Peter Singer (Martins Fontes, 2002) – para Vlamir Cruz

12. Os detetives selvagens, Roberto Bolaño (Companhia das Letras, 2006) – para Volonté

13. Em louvor da sombra, Junichiro Tanizaki (Companhia das Letras, 2007) – para todos os leitores de cidadedosreis

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Bom dia, Babilônia, bom dia, tristeza, bom dia Vietnã, bom dia varal, bom dia tão normal


[Dorothy Lamour em http://www.nndb.com/]

O blog, blogueiro, coluna, quinta coluna, enfim, o subscrito, recomenda ao despertar a audição de: Varal, faixa 5 de O Romance do Pavão Mysteriozo, Ednardo do pessoal do Ceará. 1974, BMG Brasil.

Procurem nas prateleiras empoeiradas, desarrumadas, desconjuntadas, cascavilhem nos sebos, baixem o santo náutico.

Ednardo, na rede, espiando a paisagem da janela. Esperando: se der o carneiro vamo’simbora pros rumos do rio de janeiro e nada, fevereiro e, sorte, fortuna e felicidade, pra província um pouco mais alargada, pras mentiras-sorrisos, pros sorrisos-choros, teu veneno blue viajando num trem do interior rumo ao abismo noturno, pros prumos de 73.

No varal a roupa ao vento

E no vento a voz da rua

E na rua o transitar

Gente apressada a passar

Na parede o calendário

No calendário outro dia

E no dia a mesma espera

De nada esperar um dia

No umbral da porta já torta

A sombra, o sombrio olhar

E no olhar coisas mortas

Que ninguém virá velar


O assovio, o assalto

O assunto a semana inteira

Na esquina, no bar, na feira

E a roupa no seu varal

E esse dia tão normal

Tão normal, tão normal


No umbral da porta já torta

A sombra, o sombrio olhar

E no olhar coisas mortas

Que ninguém virá velar


[Ednardo – Tânia Cabral]

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

saudade | s

E porque eu venho da exposição de Fernando Gurgel, e porque eu bebi vinho branco, fraco, mas o suficiente pra me fazer a cabeça, e porque eu vi Leda, sem os cisnes, e porque sem porquês, me deu uma saudade doida de Luís Carlos Guimarães, com quem eu gostaria de ter bebido hoje.

CANÇÃO URBANA
O que me chama atenção é um homem sozinho numa mesa,
nos seus cinqüenta anos bem morridos,
a entornar seu chope silenciosamente,
o homem de paletó cor de goiaba.
Necessariamente funcionário público,
na vizinhança da obesidade e do enfarte,
o homem de paletó cor de goiaba,
tem cinco filhos, três netos,
uma mulher de barriga caída e varizes nos braços e nas pernas,
um apartamento de dois quartos no 12º andar do Edifício Flor das Laranjeiras
(financiado em 25 anos, com correção monetária, pelo BNH),
calos na sola do pé direito,
dentes cariados,
fígado inchado,
acessos semanais de asma brônquica,
uma sogra que encarna o dragão vomitador de fogo,
uma acentuada hipermetropia na visão esquerda
e bolsos furados.
E mais:
no morrer de cada dia,
o homem de paletó cor de goiaba
tem os ouvidos rasgados pelo barulho do trânsito,
sua sangue poluído de asfalto na repartição,
nas filas de ônibus e do INPS.
Entornando silenciosamente o seu chope,
o homem de paletó cor de goiaba
parece um boi.
Um boi.
Não o boi que pasta no campo,
mas o boi que vão levando ao matadouro.

Luís Carlos Guimarães

Quando fui tiete de Carlão de Souza



Nos anos em que mais Carlão de Souza pintava, bordava e costurava pra fora e pra dentro da Cidadela dos Reis, eu flanava pra lá e pra cá, sem destino.

Me bastava uma cerveja, no início gelada, depois como viesse, e vários pares – a começar por um par de olhos, que, como se sabe, são a janela d’alma. Como alma sem corpo só pode ser assombração, os demais pares eram mais que necessários.

Eram também os anos em que eu fugia dos poetas potiguares como o capeta da cruz santificada. De esquisito, convenhamos, me bastava e avançava eu mermo.

De longe, longinho, eu acompanhava a trajetória gauche de Don Carlos. Nas páginas dos jornais de ontem e de antontem. Noite e madrugada.

Nosso último encontro anônimo, amacord, foi na soleira encarnada do sebo, ribeiras da Rio Branco, o sol castigando a espera na parada d’ônibus, as bundinhas da moças tecendo sombras na calçada enquanto subiam, pé ante pé, nos monstros de ferro e tíquetes estudantis.

Eram não sei quantas arrobas de malandragem paquidermicamente plantadas diante de mim. Ao alcance da mão. O cruzamento bem-sucedido de Bukowski com Macunaíma. Ele tinha de pegar o transporte pra Siara Minor, tão cordato estava, tão submisso à coleira amorosa de Sônia, que não foi ainda ali que fizemos o amor que os machos fazem – entornando litros e mais litros de cerveja.

Don Carlão “Carleone” de Souza ri com a barriga e com a miopia dos olhos – o riso mais gostoso aos olhos em que pese a recomendação enfastiada do doutor.

Depois, numa noite estranha, numa terra estranha... Não, não: a noite não era tão estranha, afinal, e a mansarda era doutro poeta, amigo daqueles entranhados que nem bicho no pé, cumichão e agonia, amor e dor, num-sei-o-quê e êxtase (encontrem aí algo pra contrapor ao êxtase que tô com preguiça). Pois... etc etc... ... nos deparamos, olho no olho, não dava mais pra esconder a timidez recíproca. E a conversa seguiu, dernentão, como se a gente nunca tivesse sido separado na maternidade de Areia Branca – se é que existia, à época, maternidade em Areia Branca.

Fez por outra Carlão ainda me olha desconfiado, com o rabo d’olho (que certamente Rêgo e de Sousa vão maldar), como se eu fosse um legítimo filho da civilização sucroalcooleira, indigno da sua confiança. Mal sabe ele o que o Augusto Imperador Adriano – de quem somos súditos infiéis – já descobriu há muito: que somos apenas uns animaizinhos esquisitos virando a esquina e assustando quem não nos conhece.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Ladyhawke


[Guido Crepax Acqua alta]


Ladyhawke tinha as mãos calejadas e olhos sonhadores.

Corpinho mignon.

Seios miúdos, na palma da mão em concha.

Uma boca devoradora de línguas, amor em pílulas.

Ladyhawke parou na cidade numa escala internacional. O que deveria durar algumas horas, demorou semanas. O aviãozinho que conduzia Ladyhawke era de uma companhia meia-boca, bandeira duma republiqueta sulamericana.

Ladyhawke ficou lá em casa, por uma piada de Deus, uma armadilha do destino, uma interpretação apressada do i-ching.

Não nos topamos de súbito. Ela tinha olhos sonhadores demais, olheiras minúsculas de quem quer amar com direito a casinha do Mickey Mouse e férias na Disneylândia. Eu estava mais para filtros amarelados e botelhas quentes na madrugada.

Além do mais a moça rescendia às plantations paulistas de quatro séculos – e tinha gravado nas retinas, impresso a ferro e fogo e água, o horror ao detergente lava-pratos que Paris obrigou-a a usar durante os anos em que os sonhos se estilhaçaram.

Ladyhawke voltava para casa. E não se deve confiar em quem está voltando para a casa – eu não sabia então.

Acompanhei-a à agência de turismo. Na calçada, o inverno agasalhava formigas. Ladyhawke usava um cachecol púrpura, emoldurando seus olhinhos sonhadores, de quem apenas findou um choro. As lágrimas são o melhor colírio e, se você quer seduzir alguém, dispense o abrigo das lentes escuras e ensaie um sorriso pipocando de dentes brancos, como um raio de sol depois da chuva. Ladyhawke e eu, na calçada da agência, um pôster de palmeiras recortadas na vitrine ao nosso lado: não, ainda não.

Os dias passavam. A velha fórmula: um após o outro.

No domingo fez sol. E fomos lagartear os corpos no parque às margens do rio X. Eu lhe passei um dos fones. Éramos jovens, o mundo todo era jovem e usava walkman com fitas cassetes. Eu tinha gravado um disco de Naná Vasconcelos, Saudades, pela ECM. Só ouvindo: um disco indescritível. Eu dum lado, ela doutro, os fios nos aproximando. As mãos sorrindo, ainda, cada um na sua. Um rebanho de ovelhas subiu a encosta, era um dia quente. Um ouvido mouco aos sons do universo, o outro mergulhado na comunhão dos sons do universo. Tínhamos de nos beijar. E nos beijamos.

Ela continuou com os olhinhos límpidos, sonhando nuvens.

Nos encontramos ainda uma vez, na Paulicéia. Ela me levou a um daqueles clubes quatrocentões, me deu de comer e beber, me abrigou num apartamento moderno, com lençóis brancos, móveis brancos e quadros brancos nas paredes.

Depois, nos separamos.

Semana passada me enviou uma carta – não era bem uma carta, mas. Dizia ter conhecido alguém: um mexicano. No início, pensei num sujeito de bigodes fartos e sombrero na cabeça, aquela casaca curta pregueada dos mariachis.

Ela escreveu:

– O mau humor de noites mal dormidas se transformou em dias com “areia” nos olhos e o tal sorrisinho no olhar.

Anos depois, eu fiquei feliz com a felicidade da moça. Mas não posso negar que, deitado no tapete de unhas, tive sonhos.

Que não posso revelar.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Minhas Aventuras Na Ponte



Querem saber?

Pouco se me dá o nome da ponte sobre o putigy. Cruzei-a duas vezes num espaço temporal de menos de 24 horas e não senti nenhum arrepio da espinha, nenhuma palpitação na caixa torácica, nenhuma vertigem feito a síndrome que Stendhal ajudou a batizar séculos atrás.

Achei-a muito chinfrim.

É uma gangorra sobre a fauce do rio, piscando um olho pro Atlântico e outro pra cidadezinha pronta a explodir.

Dum lado e doutro, a ponte começa e finda mal, em curvas desnecessárias – aliás, não é a desserventia que incomoda: também o velho Oscar, que inteirou um século sábado passado, adorava curvas, que o faziam recordar aquelas duma dona. Ou de muitas donas. As curvas da ponte tampouco são como as da estrada de Santos, onde tentávamos esquecer, um amor que tínhamos, espiando pelo retrovisor na distância se perder etc.

As curvas nas cabeceiras da ponte, rive gauche, rive droit, são o culto à imbecilidade humana e ao seu apogeu bólido sobre quatro rodas e quatro patas. Servem só pra atravancar, atrapalhar o tráfego, o público e o sábado – como aquele operário do Buarque d’Holanda.

É cômodo. Reconheço. Atravessá-la e cruzar o ryo grande num tempo inimaginável há alguns anos. Feito uma trepada rápida, jaculatória precoz: mal subimos, já estamos descendo.

Ah , sim, certo, tem a paisagem!

Visível só ao custo da contravenção: parar o carro mais da metade na pista, pois sem acostamento.

Ah, sim, certo, dá pra ir de pés!

Ainda assim, atrapalhando o tráfego de pedestres e ciclistas.

Não dava pra fazer um puxadinho por mirante? Um lugar pra descansar os pés, a magrela, sentar e curtir a paisagem que deus nos fez bonita por natureza?

Pruma obra pretensamente voltada pro futuro (sic) a ponte já nasceu defasada.
Coisas de Cidade dos Reis.

E como nem nome direito tem, vou chamá-la Ponte Walflan de Queiroz, e sugiro que vosmicês façam o mesmo: batizem-na com o nome da namorada, do marido, do cachorrinho da infância, do poeta preferido. Eu, já me decidi: em 2008, minha ponte vai se chamar Walflan de Queiroz – que amava Irene Porcel, Tereza, Annabel Lee, Francesca de Rímini, Denise, Tânia, Herna, Dinara. E Hart Crane – Walk high on the bridge of Estador, /No one has ever walked there before. //[…] How can you tell where beauty’s to be found? /I have heard hands praised for what they made; /I have heard hands praised for line on line; //[…] I do not know what you’ll see, – your vision /May slumber yet in the moon, awaiting /Far consummations of the tides to throw /Clean on the shore some wreck of dreams…

poema | Walflan de Queiroz


HART CRANE
Construamos uma ponte definitiva
Que sirva de ligação eterna entre o Ocidente e o Oriente.
Uma ponte universal, maior do que a de Brooklyn
Irmanando pretos e brancos, ricos e proletários,
No grande dia inesquecível
Da paz e do amor entre os povos.
Então o mar devolverá teu corpo ao mundo em alegria.


[Walflan de Queiroz, em O tempo da solidão. Natal: Edições Cactus, 1960]

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Cabra das Ribeiras


Pra quem estudou no Salesiano, de algumas décadas atrás, um poema de Carito, “nesses tempos de retinas fatigadas” e de fechar os olhos e encarar “a ferrugem das horas”.

O IMPÉRIO DAS PALMEIRAS

PROCURA-SE:
As palmeiras imperiais do Colégio Salesiano
O chão de areia riscado
Pelas bolinhas de gude chamadas por aqui de bilocas.

MAS NÃO SE ACHA:
Mais o campo de futebol e a casa
Do marceneiro Bigode que fazia
A Rosa dos Ventos para os trabalhos de Ciências.

SAUDADES:
Do hino nacional e a bandeira hasteada
Da sala de aula improvisada no alto, sobre a capela
Onde eu me encostava no silêncio.

ONDE ANDARÁ AGORA?
Aquele meu observar sentado
Nos batentes com vista para o pátio
Do tempo que não era passado.

AGORA SOU SÓ A ILUSÃO
Da memória que teima em me convidar
Para ver a moça se debruçar
Na janela que não quer fechar.

E A NATUREZA MÍTICA DAS COISAS
E os enigmas e outros absurdos
Florescem invisíveis sob as novas construções
Do colégio em flagrante sacrilégio.

HOJE O TEMPO NÃO PÁRA MAIS
Passa a galope como o Salesiano
Que cresce sem dono e padece
Da falta de espaço, onde me desfaço.

DOM BOSCO E SÃO DOMINGOS SÁVIO TAMBÉM ANDAM
Espremidos, deprimidos, pelos corredores
Sufocados, pelas minhas
Dores fantasmas.

ORO, CHORO, MORRO
Corro
Para o portão onde espero
Meu pai vir me buscar.

NO ENTANTO, NO ENCANTO
Nesses abismos sempre vou encontrar
Um lugar a embalar o pranto
Onde tudo ainda vai estar...

...COM O MESMO SANTO
Do mesmo jeito
Um doce canto
Dentro do peito.

Carito

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Selvageria & Barbárie


Rodrigo Levino, paladino das questões culturais e algoz das unanimidades asininas, encaminha email de Dona Cecilia Giannetti, colunista da Folha desde o início do ano e vítima da intentona da Sacra Família Brasileira por ter escrito o texto que republico abaixo – pra quem ninguém deixe de entender o absurdo de um país que venera Luciano Huck, solidariza-se com o Rolex do Luciano Huck, gostaria de botar no pulso o Rolex do Luciano Huck – e uma parte gostaria mesmo era botar a mão na senhora Luciano Huck. Com ou sem Rolex.

O Luciano Huck entrou nessa de gaiato, coitado (ou foi porque botou a mão numa repórter? talvez, inconscientemente, eu), mas foi a antítese mais à mão que encontrei pra contrapor ao obscurantismo intelectual da massa de leitores da Folha, que anda enviando e-mails aos borbotões chegando à redação da Ilustrada, em que sou chamada de "nazista", e acusada de querer acabar com a alegria da família brasileira, para usar as palavras da própria Giannetti.

Os italianos costumam dizer que tutto Il mondo è paese – numa tradução livre, todo lugar é provinciano. São Paulo – de onde suponho parte a maioria dos emails agressivos –, claro, é a quintessência desse provincianismo chulo com ares de poder econômico travestido de poder cultural.

Sem essa aranha: a visão da família ofertada por Cecilia é até sutil em comparação à realidade física. As manhas literárias da moça terminam afagando o quengo dos pretensos vilipendiados, tornando-os menos selvagens, menos bárbaros, mais simpáticos do que efetivamente são.

O único erro de Giannetti – a quem fui apresentado muito rapidamente no ENE, azafamada que estava com uma câmera digital e a proteção donzela de Levino – foi não ter lido antes o aviso:

“Não dê comida aos animais”.


Quem quiser dizer o que pensa do texto da moça, envie email para
ombudsman@uol.com.br

uma crônica familiar de cecilia gianetti


"É quase Natal e, principalmente nas metrópoles, as pessoas se organizam em violentas hordas para fazer compras. Quem acredita no fim da família nuclear deveria observar o fenômeno - seguramente à distância, como eu, acuada num banquinho da praça de alimentação de um shopping center. As gangues familiares percorrem os shopping como arrastões de classe média, aglutinações de gente ávida por crediários e embrulhos, parcelamentos e cadastros que requerem CPF. Incapazes de desviar de qualquer um que tente olhar as vitrines sozinho, formam uma corrente que não se parte, unida por laços de sangue e consumo. Roubam-nos tempo, paciência e, às vezes, até mesmo uma lasca de nosso dedinho do pé, quando passam pisoteando o que houver pela frente. Seguem como um imenso trator, sem desviar nem mesmo quando lançamos um inútil "dá licença?".

O paizão vai de mãos dadas com a filhinha mais nova, uma criança que atinge agudos na freqüência de 20 Khz. São duas peças-chave do arrastão consumista, caminhando quase sempre emparelhadas a uma quase sempre rotunda mãe. Esta, por sua vez, carrega um pacote junto aos quadris, adicionando pelo menos mais 15cm à parede humana.

O comprador solitário tenta furar o cerco inicial, imaginando que estará livre para andar em seu próprio ritmo ao ultrapassar a barreira criança + pai + mãe + pacote. Tal configuração é uma armadilha: é aí, justamente, que se vê impedido pela segunda camada da família-em-compras. Para locomover-se outra vez com desenvoltura, terá de passar também pela filha crescida do casal, abraçada a um mastodonte bombado em academia, ambos estrategicamente posicionados mais à frente. A voz da moça é a versão teen dos agudos da caçula, agora ajustados para conversar sobre tópicos que tornam preferíveis os gritos ininteligíveis da pirralha. Esse fator é uma arma importante no processo de fragilização da vítima: a insalubridade dos diálogos da dupla de adolescentes confunde seu raciocínio, imobolizando a presa enquanto dura o assunto do casal.

Se conseguir retomar a consciência e ultrapassar esse nível do arrastão, surgirá em seu caminho o obstáculo móvel: um guri de mais ou menos 5 anos de idade que se desprendeu da mão da mãe (lembre-se: ela está na retaguarda da operação, carregando um enorme pacote) e agora fica saracoteando lá na frente do grupo. Conforme o corpo estranho - comprador solitário - tenta retornar ao mundo exterior, indo para a esquerda, o guri vai para o mesmo lado; quando tenta escapar pela direita, ele acompanha seu movimento outra vez, ad nauseum.

Quem cai nesse redemoinho pode ser arrastado por quilômetros até que consiga terminar suas compras. Ou sem que jamais possa fazer o que pretendia no shopping. Há o caso de K., para citar apenas um exemplo, que, feito refém de uma família de consumidores selvagem e numerosa na semana do Natal passado, foi expelido de volta ao shopping tarde demais. Mais ou menos em abril deste ano, quando acabou novamente capturado por outra família, nas Lojas Americanas, durante uma promoção de ovos de Páscoa."

Cecília Gianetti

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Minha vida na prisão


Daí, que saí ontem ao sereno.

Um pouco de flanagem, um tanto de caminhada pra limpar os brônquios e bronquíolos do fumo fumaça e alcatrão.

Pra ter como teto, breve instante, o céu aberto e as estrelinhas piscando – que não as vi, porque nem olhei pra cima, confesso.

Tão acostumado que estou com o rés do asfalto.

Saí hoje também. Nesse ritmo virarei arroz de festa das calles amargas de Ciudad de los Reyes.

Embarquei numas de Mezzo cammin’ della nostra vita – modo erudito de chamar aquela caixa sem buraquinhos pra respirar que é o maior shopping da província, da região, das arábias.

Numa e noutra saída, me decepcionei com a falta de enfeites de Natal. Eles existem, sim, mas – e eu dizia isso outro dia – me parecem desproporcionais ao meu desejo de show, espetáculo, efervescência, estratosfera, brilho, glamour, paetês, luzes feéricas, broadway, níu-iórqui, níu-iórqui. Paris, que seja.

Não sei se foi a falta do açafrão no meu arroz, não sei se foram os camarõezinhos, tão miúdos, tão poucos, assim tímidos; não sei se foi como me postei, numa mesa de costas pra turba, de frente pro janelão da 15. O fato é que tudo me pareceu sem graça e sabor.

E me veio de esculhambar os conterrâneos, que pensam comer bem na tal Praça, no tal shopping. Ora, vamos! Aquilo é uma casa de pastos pra suínos esqueléticos! Mais: é um zoológico envidraçado, um simba-safári com ar enclausurado, bem protegido, reconheço. Se uma das feras que circulam por ali nos atacarem – ou, se vice-versa, dermos comida pros bichos – imagino que um dos guardas fardados os atacará – ou, nos atacará – com um bastãozinho elétrico de filme americano.

Pois, no tal zoo, a fauna é extensa: tem gorila, anta, zebra, rinoceronte, chimpanzé, avestruz, crocodilo, víbora, hiena, sagüi, rato, ratazana, camundongo, tem até – acreditem! – um par de veados desfilando e deslizando pelos corredores entre as mesas: e um deles vestido de oncinha!

Pois, uma camiseta sem mangas com estampa de oncinha! Simpáticos, esses veadinhos da periferia... Mais um pouco, passa um menino, com coroa de cartolina colorida, me encara, o encaro, se envergonha, tira a coroa.

A essa altura, mais da metade do arroz jaz frio diante de mim, perninha cruzada, olhar dândi enfastiado – voltem! voltem! onde vocês compraram a camisa de oncinha?

Não demora, não demora, passa o Papai Noel. Ele mesmo. Indisfarçável a roupa glacial encarnada, a barba de ilhéu náufrago, botas, cinto démodé. Olha pra mim por trás dos oclinhos de míope, eu olho pra ele por trás de óculo algum, conversamos não sei quê, nessa troca silenciosa de íris. Está acompanhado de uma mocinha vestida quase igual – digo: vermelho, branco, gorro, bota. Ao posto das calças, uma minissaia mal-ajambrada e pernocas idem. Não, não pode ser a Mamãe Noel. Uma filha temporã? Neta? Talvez, uma secretária, assistente, amásia, até os papais Noel sentem um comichão na virilha. Passam tão rápidos que não dá tempo nem de responder a mim mesmo. Devem andar à cata de curumins, se ainda existe algum crente.

Quanto a mim, o cárcere me espera.

13 Horas de


Não é que nem Jack Bauer, até porque não faltam 24, mas 13 horas pra encerrar a votação ao lado.

Coragem!

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Jingle Bell


Nunca o Natal me pareceu tão longe.

Enquanto perto.

Chegou dezembro e me parece que ainda estou em novembro, longe de acompanhar Alceu: “tenho dezembro e tenho janeiro e se não me engano tenho fevereiro se essa vida é um desmantelo me mate que eu estou muito vivo vivo”.

Chegou dezembro e não vejo a profusão esperada de luzes e rebuliço nas ruas. Ou serei eu que mal saio a elas porque não desejo buscar nem encontrar nada nem ninguéns.

Chegou dezembro e o Natal bate às portas que nem sino. Na matriz. Em Belém. Mas eu não ouço. Ou será porque eles não dobram por mim, que não amarro as alpercatas de Hemingway nem mergulho no rio com as pedras de Woolf.

No duro mesmo, me incomoda estar aqui, falando na primeira pessoa desse singular tão banal cotidiano comum.

No duro mesmo é porque o Natal deste ano me parece uma festa sem sabor, sem cheiro, sem papel de presente a ser rasgado com o prazer que só as melhores surpresas guardam – e aguardam.

Como se uma despedida indesejada projetasse sua sombra sobre a árvore de Natal que não montei, sobre o presépio que não construí, sobre as ruas de uma cidade que não mais verei – porque mudou a cidade e mudei eu, a cada dia, mês, ano, mais longe, distante daquele menino que ia ao centro da cidadezinha encantada apenas para ver as luzes tímidas, apenas para dar a mão ao pai, à mãe, e sentir-se alguém entre eles.


Jingle Bell 2



Um pouquinho de esperança: Flávio Freitas resgata a tradição de enviar cartões físicos no Natal. Não façam como eu, que provavelmente não conseguirei enviar nenhum, com a desculpa da falta de tempo etc.

Jingle Bell 3



E Pedro Pereira resgata a – também velha – tradição de dar presentes. Regalos autênticos, bem longe dos cartões de crédito que servem para quase tudo e dos shopping cê, empanturrados de uma pretensa alegria, protegidos do mundo real, triste demais para neles entrar.