quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Enterrem meu coração na curva do Rio Grande


O alemão Jacob Rabbi é uma das figuras mais execradas pela patuléia potiguar.

É descrito como um tipo sanguinário, selvagem, cruel.

Pudera, era judeu.

Pudera, lutou ao lado dos índios (e holandeses) contra os portugueses.

No novo feriado estadual, comemorado ontem, cidadedosreis homenageia o gringo lembrando os massacres religiosos descritos pelo Frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566) e pelo próprio Hernan Cortez (1485-1547), ambos a serviço de Deus. Que, como se sabe, tem muitos rostos.

O Frei:

“Nesse reino [Iucatã], ou numa província da Nova Espanha, certo espanhol ia certa vez com seus cães a caça; não encontrando o que caçar e percebendo que os cães tinham fome, agarrou uma criancinha que agarrou dos braços da mãe e, cortando-lhe os braços e as pernas, fê-los em pedaços, que distribuiu aos cães; quando os cães acabaram de comer esses pedaços atirou também o resto do corpo, isto é, o tronco, a todos os cães juntos.”

O conquistador:

“Antes do amanhecer do dia seguinte, tornei a sair com cavalos, peões e índios e queimei dez povoados, onde havia mais de três mil casas. Como trazíamos a bandeira da cruz e lutávamos por nossa fé e por serviços de vossa sacra majestade, em sua real ventura nos deu Deus tanta vitória, posto que matamos muita gente sem que nenhum dos nossos sofresse dano.”

O Frei:

“[...] uma índia doente, vendo que não poderia fugir nem escapar dos cães que a dilacerariam, como faziam a todos os outros, apanhou duma corda e enforcou-se numa trave, tendo amarrado ao pé uma criança que tinha, de um ano de idade; nem apenas tinha acabado de fazê-lo eis que chegaram os cães para agarrar a criança, ao mesmo tempo em que, enquanto morria, um irmão religioso a batizava.”

O conquistador:

“De algumas medidas os espanhóis que nestas terras residem não estão muito satisfeitos. Especialmente a que os obriga a fixar-se nesta terra, porque a maioria pensa em fazer o que tem sido feito em outras terras conquistadas, especialmente ilhas, ou seja, saqueá-las, destruí-las e depois abandoná-las. Entendo que não podemos repetir erros do passado, especialmente sendo esta terra tão rica e nobre, onde Deus Nosso Senhor pode ser servido, assim como aumentadas as rendas de vossa majestade.”

No ano em que morreu Cortez, o Frei Bartolomé estava na Espanha, depois de quatro décadas entre o Novo e o Velho Mundo. Hernan em Sevilha, Bartolomé em Valladolid, pelejando nos tribunais com um historiador que acreditava que os índios não tinham alma e deveriam ser considerados como animais.

No ano em que morreu o Frei de Las Casas, as palavras Conquista e Conquistador foram proibidas. Por Lei. Em seu lugar os escribas deveriam usar Descobrimento e Colono.

460 anos depois da morte de Cortez, o Colono, o Rio Grande do Norte decreta feriado estadual o dia 3 de outubro: o Dia dos Bem-aventurados Mártires.

Choveu no molhado, ou, juntou Tomé com Bebé: ao menos dez eleições, diretas ou indiretas, para governador, não vos esqueceis, ímpios e impios, aconteceram no tal dia – em 1950, 54, 55, 58, 60, 65, 70, 74, 90 e 94. Em 2006, 2002 e 1998, revezaram-se entre os 1, 4 e 6 de outubro.

Ou seja, vai rolar o famoso feriadão, bem enforcadinho.

Bem-aventurados, pois.


[Frei Bartolomé de Las Casas, O paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América. Porto Alegre: L&PM, 2007]
[Hernan Cortez, A conquista do México. Porto Alegre: L&PM, 2007]

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