quarta-feira, 10 de outubro de 2007

“Numa idade sombria e inquietante, temerário estrangeiro na terra dos homens...”


RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM
"Numa idade sombria e inquietante, temerário estrangeiro na terra dos homens, eu sentia o remorso das horas perdidas quando, vagando à noite pelas ruas desertas de minha cidade, pensava na escolha solene e irremissível que fizera em segredo – a de tornar-me escritor --, persuadido de que, pensando e escrevendo, me tornaria diferente dos muitos que se rendiam ao convencionalismo e à habitual cotidianidade. Era o meu segredo. O segredo que sabe ter todo adolescente, vivendo em seu mundo próprio, fustigado pelas incertezas que nos assediam.
Uma idade muito próxima daquela em que a minha avó me levara ao Grande Hotel para conhecer Glauce Rocha, que quis saber o que eu pretendia ser na vida e eu lhe respondi, num rompante de tímido, “escritor ou nada”, resposta que a surpreendera e que me fez merecedor de dois beijos da grande dama do teatro, que então se apresentava no Theatro Alberto Maranhão.
Notei sobre sua cama exemplares dos jornais “Tribuna do Norte” e “Diário de Natal” e dois ou três livros sobre uma mesa. “Escritor ou nada”, repetiu Glauce, numa voz rouca e lenta, sem disfarçar o seu aturdimento diante da convicção de um jovem inexperiente. Ao nos despedirmos ela me presenteou com um pequeno volume encadernado em couro, contendo em letras de ouro o nome de Vauvernagues, cujas máximas deliciavam a minha avó. Antes de entregá-lo ela rabiscou rapidamente uma dedicatória ao seu “valente escritor natalense...”
Empolgado pelos sentidos e ansioso por agir e realizar, via-me retratado especialmente em dois personagens de Thomas Mann, que eu adotara como modelo de escritor cônscio do que cria, desde que começara a ler sua obra que me fora emprestada por Dona Maria Eugênia [Maceira Montenegro], cuja biblioteca quase infinita me proporcionara o acesso a um mundo novo de idéias e experiência feito.
Desde os meus catorze anos eu já intuíra misteriosamente que os meus modelos seriam muito diversos daqueles que satisfaziam ao gosto literário comezinho e rotineiro dos meus companheiros com veleidades literárias. Embora ainda uma criança, em tudo ignorante da vida, horrorizava-me toda a forma de vulgaridade e de conformismo que via expandir-se entre meus colegas de escola que também sonhavam com as letras, sem perceberem minimamente o grau de responsabilidade e de compromisso que o ato de escrever acarreta para quem se atreve a fazê-lo. Tudo isso eu percebia de maneira confusa, subjetiva, misteriosa, sem explicações.
Aos dezesseis ou dezessete anos, dominado por uma espécie de obstinação viril que o obstáculo redobra, empenhava-me em ser diferente dos muitos que conformavam sua maneira de viver e pensar com o exemplo comum. Buscava, pois, o raro, o difícil, o contraditório, o que jaz sob camadas profundas, uma coisa ou algo enfim que não se deixa usufruir por todo mundo. Por isso, ao mesmo tempo em que cortejava a solidão, refletia numas palavras que lera em Tonio Kroger, tornadas como que para mim uma espécie de credo estético. Seria preciso morrer para o mundo, eu repetia em silêncio, para afinal tornar-me um perfeito criador... Mas, como?
Incerto quanto a melhor forma de alcançar o futuro, sabia com total segurança o que não desejava, como desperdiçar o Tempo, para mim, o bem mais precioso e irrecuperável, quando mal aproveitado em gratificações banais. Ao mesmo tempo intuía que de alguma forma imperceptível e sutil era trabalhado por ele. Fascinava-me, por isso mesmo, a metafísica, a busca da essência mesma da vida, a vertigem do nada, o gosto pelo existencialismo. Quantos tormentos para tão curta vida.
Em minha adolescência inquieta e fatigada, queria, pois, ser Hamlet, Hans Haller, Raskolnikov, Vinteuil, Stephen Dedalus, Julien Sorel, o escritor inominado de “Almas Mortas”, presciente da inutilidade de tudo e, no entanto, fiel ao dever de construir uma justificativa para a própria existência...Uma obra enfim que me justificasse no futuro... Em síntese, a prova concreta de que aproveitara bem o meu tempo. Um artista em processo, ávido de experiências, eu ignorava ainda que para descrever um crepúsculo, conforme a lição prodigada por Borges que eu ainda não lera, faz-se necessário ver mil crepúsculos e refletir sobre eles."
Franklin Jorge
[Escritor e jornalista]




Um comentário:

Mundano disse...

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