quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Tradição



Aos olhos da ciência nenhum desejo é inalcançável, nenhum segredo inviolável, nenhum mistério insondável, nenhuma conta imensurável. E poderíamos seguir nos adjetivos-áveis por léguas sem cansaço se eu não quisesse revelar logo a deixa para esse palavrório: pois, pigarro de quem limpa a garganta, nas páginas virtuais leio que os gays ganham 23% menos que os hetero. Vou investigar, que sou da turma do jornalismo investigativo (em Cidade dos Reis a coisa resume-se a navegar nos triplos dabliús): a manchete muda, de cara – são os homens gays, meninos, não as lésbicas, quem ganham menos.

E por que ganham menos? Por conta da discriminação dos patrões, ora bolas! O almocreve entra lá, todo lânguido e faceiro, o empregador o mantém à distância por trás do birô e tasca-lhe a língua ferina: quer dar o fiofó, meu rei? Queimar a rodela, a rosquinha? Pois, 23% a menos nos seus rendimentos.

Como os chatos dos patrões chegaram a esse valor não se explica. Se fosse no país do jogo do bicho (no masculino, por favor, que o blog é politicamente correto), 1% a mais e as contas bateriam.

Já os bissexuais não entraram na pesquisa, feita por uma universidade americana num período de dois anos. Suponho que ganhem menos, sim, mas noves fora os chutes, digamos, uns 11,5%.

Por falar em gays e preconceitos, semana passada mandei o carro pra lavar, que já estava pedindo o dedo dum daqueles meninos de antigamente a escrever na poeira do vidro: por favor me lavem! Limpa daqui, aspira dali, mexeram, os safados da equipe a jato, no amplificador do som – resultado: um barulho surdo e ininteligível de caixa estourada. Uma semana depois, que o tempo urge infelizmente pra outras melodias e notas que não as musicais, levo o som, carro e tudo obviamente, ao técnico. Mexe daqui, bole dacolá, o som explode, pra vizinhança toda ouvir, o cd que estava, pois, no cd player – que eu já nem lembrava qual fosse.

Era Realce, de Gil.

Era a faixa 3, Super-Homem, A Canção, justo no trecho, o super bass, mega bass, bom the bass, ativadíssimo:

Que nada / Minha porção mulher, que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora...

Confesso que fiquei encabulado.

Senti-me como um gay a quem, de repente, no meio da rua, lhe tolhem, não do armário, mas o armário inteiro, vupt. O danado do armário onde até então ele, justamente, se resguardara.

Confesso que, eu, que não me considero um cara preconceituoso, tenho amigos que, agora sei, ganham vinte e três por cento menos etc, enfim, confesso que me perguntei a mim mesmo, entredentes: que porra esse disco tá fazendo aí?

O técnico, pelo visto e ouvido, também sentiu-se incomodado: apressou a pular a faixa, para, olha só, Tradição:

Conheci uma moça que era do Barbalho...

E respiramos todos aliviados. Em meio à potência viril de mil e tantos watts, nenhum por cento menos, nenhuma purpurina mais.

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