segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Os bestas | Piauí, RJ; Piauí, SP

Piauí: ambígua como o título, não consegue esconder a acidez com que investe contra os mitos de ontem pra chutar os vira-latas vivos de hoje. [foto do site da revistona]

Se não me entusiasmou, Baixio das bestas ao menos me serviu pra desenterrar um texto entravado na goela desde que li a Piauí número 8, maio de 2007, e que foi a gota d’água pra eu deixar de comprar a revistinha cu’l’t (não deixei de todo, nem esse foi o único motivo, mas, diminuí o ritmo).

A crônica (quase policial) da Piauí começa com ares de jornalismo-verdade:
“Na madrugada da última terça-feira do mês passado, Raquel Cristina, de 18 anos, foi morta a tiros quando voltava para casa com um amigo. Ela morava em Afogados da Ingazeira, no interior de Pernambuco. A polícia suspeitava de que a jovem tivesse sido assassinada pelo namorado ciumento, que matou também o amigo que a acompanhava. Pelas contas do Fórum de Mulheres de Pernambuco, Raquel foi a 96a mulher assassinada no Estado nos quatro primeiros meses de 2007. Como explicar que a violência contra mulheres bata recordes em Pernambuco? Como dar forma artística ao horror de sociedades patriarcais e machistas?”

Eu me apresso em retrucar: e que diacho Baixio tem a ver com isso? O articulista da Piauí apressa-se em responder: “Baixio das bestas lida com as duas questões. O filme, que se passa na Zona da Mata pernambucana, mostra o horror com agrado e crueza.”

Não me passou pela cabeça que o diretor pernambucano desejasse “lidar com as duas questões” – nem comentar a violência contra as mulheres, em PE ou alhures, nem tampouco enfatizar o machismo das sociedades patriarcais (tem um “nordestinas” enfaticamente implícito no termo adotado, como se a turma do café fosse mais civilizada). Tampouco vi agrado nenhum em sua representação do “horror”.

O preconceito da revista sul-maravilhosa contra os nordestinos é descarado. A começar do nome adotado, em tom pretensamente engraçadinho e inócuo. Depois de contar o enredo, o autor (anônimo) do artigo continua:
“O filme é tão repulsivo, tão estúpido, tão abjeto, que dá até vontade de interpelar quem o concebeu, o auteur pernambucano Cláudio Assis, diretor de Amarelo manga.”

Notem o uso irônico do francês, desejando um contraste gritante com a origem nordestina do diretor. Mais pra frente o texto ainda refere-se ao filme de Assis como “sua oeuvre”.

A revista, e seu representante, são desde o inicio mal-intencionados: “Marcou-se um almoço na Casa da Suíça, restaurante antigo e simpático no decadente bairro da Glória, no Rio.” Tipo: vamos levar o nordestino, “auteur”, ao Primeiro Mundo. Ora, sem essa aranha: os repórteres andam vendo muito filminhos tipo Pretty woman, e queriam, mesmo, dar uma lição nos paraíbas, levar a classe baixa ao paraíso para que se apercebam do devido lugar. Os adjetivos pululam, como sapinhos na lagoa, nem um deles à toa: “antigo”, “simpático”, “decadente”.

Texto original, sem subtítulos: “Assis chegou um pouco atrasado. Com 46 anos, vestia o uniforme dos adolescentes filhinhos-de-papai: jeans, camiseta estampada fora da calça e boné enterrado na testa. Demonstrou também os modos (estudadamente) mal-educados de um púbere mimado, pois almoçou sem tirar o boné e pontuou todas as frases com palavrões. Pediu um steak tartare, que nunca havia provado.”

Querem os subtítulos? “Nordestino mal-educado pobre desejoso de ser quem não é não apenas em relação à idade mas também à classe social comporta-se naturalmente mal cagando já na entrada enquanto dos pretos espera-se ao menos que aguardem a saída para justificar suas origens territoriais”.

Aliás, que merda é steak tartare? Eu nunca provei. Abaixo-assinado aí nos comentários pra quem também não provou.

Ah, mas a revista não dá ponto sem nó – a explicação do prato vem sutilmente no parágrafo seguinte, acompanhada da bandeira hasteada do preconceito:
“Como era de se prever (em se tratando de um pernambucano macho paca) adorou o prato de carne crua.”

A explicação, para os desvarios do ingnorante cineasta, é lógica – além de nordestino, tem idéias esquerdistas: “Como também era de se imaginar, Assis se disse um artista de esquerda. Na juventude, chegou a freqüentar uma organização comunista. ‘Saí do partido porque não queriam que eu fumasse maconha, bebesse e falasse palavrão’, afirmou. ‘Ora, eu sou um homem do povo, bebo e falo palavrões.’”

Destaco, ainda, outros fragmentos do texto do legítimo auteur piauiense dos baixios do Leblon e Gávea:
“Foi com amolação que ouviu o argumento de que Baixio das bestas se compraz em mostrar a nudez da garota Auxiliadora, interpretada pela atriz Mariah Teixeira (que é maior de idade, mas parece uma adolescente). O cineasta não se agüentou, e interrompeu: ‘Mas eu quis mostrar o que é a exploração!’ Mas, então, por que a câmera se deleita em exibi-la, durante um tempão, tomando banho de rio, só de calcinha? ‘Porque eu precisava mostrá-la no espaço dela’, respondeu. Ficou definitivamente agastado quando lhe foi dito que a cena é uma exploração, é manipulativa, baixa e resvala na pornografia de inspiração pedófila. ‘A pedofilia está em você’, atacou. Assim, não há debate intelectual que vá adiante. Briga de homem cheira a sangue.

Não, meninos, não. Haverá quem se excite com a adulta com ares púberes. Eu, inclusive. Não por parecer uma menina, mas por ser uma mulher nua, e a nudez é excitante, inútil dizer que não é. E não é a mesma editora Abril, que comercializa e distribui a Piauí, a redentora de centenas de mães brasileiras cujas filhinhas expõem suas vergonhas na cara de milhares de leitores e assinantes ao custo de dez, doze reais, preço de capa?

Mas a tal da cena, na opinião do subscrito, é totalmente inserida no roteiro: ela acontece quando a menina começa a despertar, ainda mais conscientemente, sua própria sexualidade, antes um mero objeto do prazer voyeurístico da macharia. E antecipa a ruptura que acontecerá na seqüência, quando ela se livra do avô sacana, pra cair na vida de puta de beira de estrada – uma independência obviamente discutível, mas natural. Ou alguém acredita que mulher bulida, em Nazaré das Farinhas, Sorocaba ou Copacabana pode ainda encontrar um príncipe encantado?

Ainda: debate intelectual? O dândi sulista, jornalista refinado, contra o brucutu pau-de-arara, caga-lona? (A propósito e em tempo: no sítio da Piauí a matéria vem assinada, ao contrário da edição impressa, por Mario Sergio Conti).

“O cineasta, que tomou duas taças de vinho, parecia feliz da vida com o que tinha a dizer, no filme e no almoço.” Opa. Recado a quem ouse denunciar os males do país: nada de vinho, nada de sorriso na cara, nada que contrarie o discurso engajado.

Piauí ainda tem tempo de denunciar o macho pernambucano, que teve a ousadia de vencer no estrangeiro conquistando prêmios para o tal Cinema Nacional (que recusa-se a sair do eixo Rio-Sp), acusando-o de refocilar-se (tragam-me o Houaiss, please) “no sadismo misógino”, sintonizado que está “com o imaginário perverso dos tempos que correm”.

E conclui, com a pretensa chave-de-ouro do jornalismo-verdade, este, sim, legitimamente engajée: “Pobre Raquel Cristina, que vivia na realidade.”

Raquel Cristina é a coitada lá de cima, que entrou no texto de gaiata, na tentativa nobre do articulista anônimo de mostrar a Cláudio Assis como se faz jornalismo-denúncia.

A propósito: o país já acabou com as saúvas?


Revista Piauí. Editora Alvinegra. Rua do Russel 270 4º andar Rio de Janeiro. Avenida 9 de julho 5966 cj 21 São Paulo. www.revistapiaui.com.br
Baixio das bestas. Filmado em Pernambuco.

6 comentários:

Moacy Cirne disse...

É, meu caro, a Piauí também me decepcionou; nunca mais a comprei. Um abraço.

Anônimo disse...

claudio assis deveria ter respondido o que pra mim foi um ataque desnecessário, deselegante e cheio de ranço. mas enfim, não se pode esperar coisa diferente de mario sergio conti, né?

midc disse...

bravo, levino! exatamente o contrário do seu comentário: necessário, elegante, sutil.

Anônimo disse...

desse jeito... só piauINDO, né?

Anônimo disse...

e cá pra nós, mario, eis um segredo insondável para eu e meus colegas piauienses, os que colaboram com a revista e têm o prazer de lidar com o fino trato de jm salles: o que faz ms conti ali? não casa imagem com som, proposta com texto, pessoa com carater. um desastre.

Anônimo disse...

rodrigo: é que você é de levino trato!