quarta-feira, 16 de abril de 2008

Andar com fé a pé [070308]



Há uns 15 anos não moro em Natal. Um terço fora, do Estado e do país, e o resto do tempo entre Nísia Floresta e Parnamirim.

Há uns três, quatro meses, passo boa parte da semana na capital, e, aqui, particularmente no bairro de Petrópolis.

Petrópolis é o bairro da minha infância – o que já significa muita coisa. Mas não apenas: aqui nasci, me criei e vivi até os 17 anos. Praticamente no mesmo endereço, uma ruazinha estreita entre a Mossoró e a Mipibu.

Até os quatro anos morei numa casa vizinha à casa da minha avó. Depois, numa casa em frente, projeto do arquiteto Ubirajara Galvão.

Nos meus sonhos mais importantes, aqueles que ao despertar reconheço importância simbólica, ainda que misteriosa, é lá que vivo uma outra vida onírica, no surrealismo típico dos sonhos.

Como todos da minha geração, não tive portas nem portões fechados, nem limites claros que não deveria ultrapassar.

Quando chovia, a ordem implícita era pegar a bicicleta e tomar banho de biqueira.

Em meados dos 70, veio a febrícula do skate, então apenas uma tábua adaptada às rodas dos patins. Numa cidade quase analfabeta do piche escuro do asfalto, a solução eram as calçadas largas do bairro.

Desde os 11 anos acostumei-me a andar a pé, da Ribeira a Petrópolis, de Petrópolis à Cidade Alta. Um labirinto facilmente desvelado em rotas invisíveis: Juvino Barreto, Potengi, Rodrigues Alves, Mipibu – a rota 1; Junqueira Aires, Rio Branco, João Pessoa, Deodoro, Açu, Rodrigues Alves, Mossoró – a rota 2. Os centros da vida eram a casa e o colégio. E, por extensão, o lazer da “cidade”, o centro comercial, shopping center da época, fechando o triângulo: lá estavam as butiques de surf, os cinemas, as casas de lanche, as lojas de discos, as livrarias.

Um quarto de século depois, quando reencontro Petrópolis, agora travestida de Quinta Avenida, vejo com prazer o que ainda resiste daquela época. Nem as mudanças radicais me desanimam, apesar de visível e agressivamente suplantarem a permanência do tempo.

E volto a caminhar a pé, a remontar os fios invisíveis daquelas rotas da infância, numa saudade revigorante.

Agora, me dizem que não é mais aconselhável o pedestrianismo, mesmo que no início da noite calma. As novas lojas há muito mantêm a chave na fechadura das portas envidraçadas. Os clientes do café na calçada foram assaltados. O dono da cigarreira pensa em fechar. A farmácia já fecha apenas a noite cai. Os outros pedestres quando cruzam por mim, trocamos olhares desconfiados. A família de minha cunhada foi assaltada, faca na garganta, na Potengi, próximo à Biblioteca Câmara Cascudo, sete da noite dominical.

As opções também não são das mais confiáveis: atenção ao se aproximar do veículo, olhar se alguém espreita, não acionar o controle automático senão quando já bem próximo, entrar rapidamente, travar portas e janelas, partir imediatamente.

Revejo e reviso o título dessa crônica, citação de um Gil que não acreditava nas “fáia” da fé. Não, crianças: a possibilidade de andar com segurança não deveria desaparecer assim tão naturalmente com o crescimento das cidades, como sina da qual não se possa escapar. Tampouco é questão de fé, religião ou esperança – é questão de cidadania. E vergonha.
Item ausente em governos e administrações omissas, coniventes, cúmplices mesmo, do crime que se organiza enquanto o caos se instala.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Arthur [140408]



Basta poucos minutos na companhia de Arthur Moreira Lima para espontaneamente chamá-lo de Arthur – embora o tratamento íntimo provoque em nós, paupérrimos mortais, um quê de constrangimento: afinal, o homem é uma lenda viva e um monstro sagrado e consagrado ao piano, num país de poucas lendas vivas e poucos monstros sagrados e consagrados, ainda mais num instrumento que, paradoxalmente, pode ser mais fácil carregar do que tocar. E, ao tocá-lo, soar mal que o contrário – o que faz lembrar a máxima de Oscar Wilde: “Por favor, não atirem no pianista. Ele está fazendo o melhor que pode.”

Arthur – com o perdão do Moreira e do Lima – faz o melhor que pode. Convidado por Diógenes da Cunha Lima, o pianista chega, acompanhado por Chico Cortez, num restaurante à beira-mar. Está em Natal para acertar detalhes e datas do seu projeto “Um piano pela estrada”, que tem, quase como um subtítulo, a explicação objetiva: “Um projeto de inclusão social e musical”.

Não é conversa fora. Arthur entendeu a exata e poética dimensão do que fazia, há alguns anos, quando – em pleno sertão mineiro, depois do concerto que normalmente realiza em cima de um caminhão Scania de 14 metros de comprimento – o prefeito de Januária lhe disse sobre o projeto: “Eu sabia que era importante, só não sabia que era bonito.”

Mas essa história ele conta depois. Antes, pra quebrar o gelo ele dispara: “Vim aqui anônimo, como olheiro do Fluminense.” E sorri. E quando sorri, se transforma. Tem um rosto marcado, um olhar triste e pensativo, e o corpo encurvado como se procurasse eternamente as teclas bicolores sob o nariz adunco.

Sua paixão declarada a três por quatro pelo Fluminense faz pensar que seria mais feliz se o teclado do piano fosse tricolor, como o seu time. Por isso fala sempre no Flu, por que, quando cita uma escalação famosa, ou quando cita outro torcedor apaixonado como ele, sorri. E quando sorri, o rosto continua marcado, o nariz continua adunco, mas rosto e nariz são um só riso e os olhos um par de brilhos.

Quando sorri, deixa de ser Arthur Moreira Lima, para ser, simplesmente, Arthur.

Um cara curioso, com um sotaque discretamente carioca, que puxa do bolso uma cadernetinha para anotar algo que seu interlocutor falou – e, adivinhem qual escudo se vê impresso em três cores no couro da agenda?

A mesa se anima. Se solta, relaxa: além dos já citados, estão ali o poeta Paulo de Tarso Correia de Melo e o cronista social Paulo Macedo, que chegou por último, e logo sacou do bolso, não uma caderneta tricolor, mas um poema contra Lula, supostamente de Affonso Romano de Sant’anna, diz. Arthur ouve, discreto: não se sabe se é contra ou a favor do poema contra. Macedo pede desculpas, não pode ficar para o almoço, a coluna deve sair no dia seguinte. Arthur pede água com gás e guaraná zero, o garçom oferece diet, ele dá de ombros. Diógenes conta eventos históricos, descreve como o primeiro prato consumido no Brasil recém-descoberto foi o próprio descobridor luso, assado. Surpreende-se com o conhecimento do pianista sobre História – ele explica seu interesse, que vem de família. A República, com erre maiúsculo, lhe é particularmente interessante. Em plena ditadura militar, Arthur um dia vai conversar com um militar: propõe um “mapeamento musical” do país. O oficial salta da cadeira: “Mapeamento é um termo de milico!” Arthur sorri, naquela ocasião sorriu, sorri agora, também. Foi aluno do Colégio Militar, no Rio, estudou piano na União Soviética, onde morou por oito anos. Diverte-se ao recordar um encontro de artistas em Brasília: Marco Maciel chega e interrompe as reivindicações ao puxar Arthur num canto para falar sobre o Fluminense.

Sorri quando fala da sua amizade com Millôr Fernandes, sorri quando cita, exaustivamente, histórias e frases de Don Rossé Cavaca, pseudônimo de José Martins de Araújo Júnior (1924-1965), jornalista, publicitário e humorista, autor de – olha só – “Um riso em decúbito”.

Todos gostam quando diz uma frase do Cavaca – tanto, que ele é obrigado a repetir e eu, a transcrever: “Já está na hora de a geração mais jovem aprender com a geração madura que pirâmide já foi bossa nova em matéria de sepultura.”

É a chave para entender o cara que se despede de nós quase tão íntimo e sem o glamour empoado das celebridades (ninguém pareceu reconhecê-lo no restaurante lotado). Por pouco não dou um tapinha nas costas ou encosto o punho fechado contra o ombro, esquecendo que é o mesmo Arthur – agora com o Moreira e o Lima – que já se apresentou com Filarmônicas e Sinfônicas de Leningrado, Moscou, Varsóvia, Berlim, Viena, Praga, Londres, Paris, sob a direção de nomes pra lá de esquisitos (pesco todos do seu sítio na internet): Kurt Sanderling, KiriIl Kondrashin, Mariss Jansons, Jesus Lopez-Cobos, Rudolf Barshai, Serge Baudo, Sir Charles Groves, Vladimir Fedosseyev.

Melhor apertar a mão e dar tchau.

E esperar que a governadora cumpra o prometido e o mais popular dos eruditos volte ao Ryo Grande. Quem sabe um vereador ache que ele está à altura de nossa Claudinha Leitte e faça-o cidadão natalense. O nosso Arthur.

sábado, 12 de abril de 2008

Drauzio Varela, confortando minhas aflições:


"Mal desembarquei no aeroporto Santos Dumont, dei de cara com uma jibóia contorcida que avançava em passo de procissão. Era uma fila longa e grossa constituída por mulheres com trajes formais e homens de terno escuro, ejetados pelos aviões que aterrissavam no primeiro horário da manhã.Usuário contumaz da ponte aérea que liga São Paulo ao Rio, jamais havia me deparado com aquela aglomeração ordeira.Assim que a jibóia fez a curva, saí de lado para enxergar a origem do congestionamento. Não pude acreditar: a fila desembocava na boca da escada rolante. Ao lado dela, a escada comum, deserta como o Saara.Imaginei que houvesse alguma razão para tanta espera, quem sabe a escada mecânica estivesse obstruída; mas, como não percebi nenhum obstáculo, caminhei em direção a ela. Não fosse a companhia de um rapaz de mochila nas costas, dois degraus à minha frente, eu teria descido no desamparo.Se ainda fosse para subir a escada rolante, o esforço maior e a transpiração àquela hora da manhã talvez justificassem a falta de iniciativa. Os enfileirados, no entanto, berrando em seus celulares, em pleno vigor da atividade profissional, recusavam-se a movimentar as pernas mesmo para descer.Se perguntássemos para aquele povo se a vida sedentária faz bem à saúde, todos responderiam que não. Pessoas instruídas estão cansadas de ler a respeito dos benefícios que a atividade física traz para o corpo humano: melhora as condições cardiorrespiratórias, reduz o risco de doenças cardiovasculares, reumatismo, diabetes, hipertensão arterial, câncer, degenerações neurológicas etc.Por que, então, preferem aguardar pacientemente a descer um lance de degraus às custas das próprias pernas?Por uma razão simples: o exercício físico vai contra a natureza humana. Que outra explicação existiria para o fato de o sedentarismo ser praticamente universal entre os que conseguem ganhar a vida no conforto das cadeiras?A preguiça para movimentar o esqueleto não é privilégio de nossa espécie: nenhum animal adulto gasta energia à toa. No zoológico, leitor, você jamais encontrará uma onça dando um pique aeróbico, um gorila levantando peso, uma girafa galopando para melhorar a forma física. A escassez milenar de alimentos na natureza fez com que os animais adotassem a estratégia de reduzir o desperdício energético ao mínimo.A necessidade de poupar energia moldou o metabolismo de nossa espécie de maneira tal que toda caloria ingerida em excesso será armazenada sob a forma de gordura, defesa do organismo para enfrentar as agruras dos dias de jejuns prolongados que porventura possam ocorrer.Por causa dessas limitações biológicas, se você é daquelas pessoas que esperam a visita da disposição física para começar a fazer exercícios com regularidade, desista. Ela jamais virá. Disposição para sair da cama todos os dias, calçar o tênis e andar até o suor escorrer pelo rosto nenhum mortal tem.Encare a atividade física com disciplina militar ou esqueça-se dela. Na base do "quando der, eu faço", nunca dará.Falo por experiência própria. Sou corredor de distâncias longas há muitos anos. Às seis da manhã, chego no parque, abro a porta do carro e saio correndo. Não faço alongamento antes, como deveria, porque, se ficar parado, esticando os músculos, volto para a cama. Durante todo o percurso do primeiro quilômetro, meu cérebro é refém de um pensamento recorrente: não há o que justifique um homem passar por esse suplício.Daí em diante, as endorfinas liberadas na corrente sangüínea tornam o sofrimento mais suportável. Mas o exercício só fica bom, de fato, quando termina. Que sensação de paz e tranqüilidade! Que prazer traz a certeza de que posso passar o resto do dia sentado, sem o menor sentimento de culpa.Se eu perguntasse às pessoas daquela fila por que razão levam vidas sedentárias, todas apresentariam justificativas convincentes: excesso de trabalho, filhos que precisam ir para a escola, obrigações familiares, trânsito, falta de dinheiro, violência urbana.No passado, diante desses argumentos, eu ficava condoído e me calava. Os anos de profissão mudaram minha atitude, entretanto: escuto as explicações em silêncio, mas não me comovo com elas. O coração vira uma pedra de gelo. No final, quando meu interlocutor pergunta como poderia encontrar tempo para a atividade física regular, respondo: 'Isso é problema seu.'"

[Na Folha de hoje - grifos meus]

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cidade do Amor


Isto sim é que é uma candidata a vereadora!


Milly D’Abbraccio (née Emilia Cucciniello) colou sete mil cartazes com a foto de sua bunda e a frase Basta com estes cara-de-cu, referência explícita aos colegas da política tradicional.

Há quem fale em ereções ao posto de eleições.

Eleita, Milly vai transformar Roma na Cidade do Amor.

Não vai precisar de muito esforço pra cumprir a promessa de campanha: nas avenidas da capital italiana, com o cair da noite, prostitutas e travestis provocam filas e congestionam o tráfego.

Pela manhã, as camisinhas espalham-se sobre o asfalto. O jornal La Repubblica, de ontem, informa que as cores da moda para os preservativos são o amarelo-elétrico e o celeste-shokking.


Já entre os travestis abundam a presença verdamarela: o periódico entrevistou Vanessa, 38 anos, do Rio de Janeiro – o repórter ficou impressionado com a surpreendente cortesia da moça (ou do rapaz, ou dos dois, enfim). Muitas das minhas colegas são loucas, fazem bagunça e pronto. Eu trabalho em casa, mas se as coisas não vão muito bem e de dia os clientes são poucos, vou pra rua. Os moradores não gostam, compreendo, mas que podemos fazer? Precisamos ganhar a vida – explicou Vanessa.

Milly e os candidatos, também.


Da inutilidade dos outros dias ditos igualmente úteis


As segundas-feiras são terríveis. As terças, quartas, quintas, sextas, também.
Quando não é o tempo externo, é a temperatura interior.
Fastio. Chatura. Gastura. Tédio. Sensabor. Azia. Constipação. Alergia. Coriza. Agonia.
Este último item nem vale citar: lembra Oswaldo Montenegro. E é cruel falar em Oswaldo Montenegro, digitar o nome O-s-w-a-l-d-o M-o-n-t-e-n-e-g-r-o (ainda que com a artimanha do copiar&colar).
Ninguém merece escrever ou falar sobre OM.
Pronto: estraguei o que tinha a dizer.
Inútil.
A semana.
Inútil.
A paisagem.


segunda-feira, 7 de abril de 2008

Da inutilidade do primeiro dia útil [070408]


[Crepax]


As segundas-feiras são terríveis, já o sabiam Garfield e Bob Geldof. Ainda mais debaixo de chuva. E nós, debaixo do cobertor.

As goteiras se multiplicam nos ouvidos. São como nina-nana, acalanto, dose cavalar de preguiça na veia.

Com o que chamam “rabo-do-olho”, espiamos o tempo lá fora: bruto, bruto, bruto. Um cinza só. Nada de cores vibrantes, alegres, pueris. Nada de tons fashion que fazem a felicidade dos rapazes e moças das semanas da moda. Em Paris, Milano e na Capital do Ryo Grande.
Mas, o tempo não está para frescuras. Melhor: está. E debaixo do lençol fica bem melhor, agarrados ao travesseiro que restamos, os pés encolhidos, as mãos escondidas debaixo do peito, onde um coração pulsante se recusa à posição que nos fez famosos entre os primatas.

Eretos não ficaremos jamais, enquanto o sol não der as caras e afugentar cumulus, nimbus, cirros e stratus e outras palavrinhas difíceis que traduzem o lugar-comum das nuvenzinhas cor de chumbo.

É verdade que o frio provoca outros efeitos nos corpos ditos cavernosos – mas isso é outro papo e o horário é impróprio a menores.

E nem sempre acordamos acompanhados, enfatize-se. Quase sempre a cara-metade, contrariando nossas pulsões e instintos animalescos, já se levantou. Os pivetes (ou o pivete, ou a pirralha – marque a opção que melhor se enquadra à sua prole) têm de ir à escola. Para desasnarem e nos deixarem um pouquinho em paz. Sem escola, nenhum pai agüentaria muito os filhos. Mas este também é outro papo, e impróprio às cabeças bem pensantes e sentimentais, todas água-com-açúcar.

Então, voltemos ao leito, de onde nunca saímos e de onde só sairemos quando o tempo melhorar.

De preferência, na terça.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Um tapinha não dói


Assim falou Supla-pai sobre a erva maldita:

De fato... quando moço... em algumas ocasiões... ãhn... pouquíssimas... eu... experimentei... assim como também... fumei alguns cigarros... mas... não me fez bem. Recomendo a... todos, inclusive... aquelas pessoas que trabalham comigo... de não... fumarem.

Mais pra frente Supla-ex-Marta acrescentou:

Eu agora vou lhe mostrar o que você vai ver.

E mais, a uma assessora, para presentear a equipe de jornalistas brasileiros (do CQC, da Band, de Marcelo Tas):

Grace: preciso... providenciar pra eles... o DVD, com... com as legendas em português!

É.

Os efeitos, parece, continuam.

É claro que já está no YouTube.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O caçador da menina que roubava pipas do livreiro de Cabul [010408]


Parece que foi ontem, e foi ontem mesmo, eu contava a aventura de assistir, no escurinho do cinemão, a transposição para as telas de um best-seller: “O caçador de pipas”. Sala cheia, sentou-se ao meu lado a figura rechonchuda de um Botero tropical. Famélica ou gulosa, tinha lido, era o que parecia, o livro inspirador de cabo a rabo. E logo durante os minutos iniciais atendeu prontamente o celular...

A conversa durou todo o tempo dos títulos de abertura. Assim, fiquei sabendo de toda a sua agenda para a manhã seguinte.

Fiquei calado: eu estava ali não pra ver o filme, mas para uma interessante experiência sociológica, uma descida aos infernos dos ditos gostos populares.

Assim, que por obra e graça da minha vizinha soube exatamente onde o diretor (do filme) tinha deturpado o autor (do livro) – com a vantagem da descrição das cenas como deveriam realmente ter acontecido. Por exemplo, quando o bocó mete a barba postiça e vai em busca do sobrinho no Afeganistão, saibam vocês que assistiram o filme mas não leram o livro, que o automóvel que o conduz está e-r-r-a-d-o: era um jeep, senhor diretor! Lástima.

Resumo da ópera: se você leu o original, não vai gostar de “O caçador de pipas – o filme”. Se você não leu, esqueça.

O mais engraçado é que, filmado na China, a reconstituição de Cabul parece – ao menos para nós que nunca estivemos lá – das mais fidedignas. O filme se esmera, também, na língua falada: boa parte em dari, dialeto da maioria afegã. Ao contrário do cinemão, onde já nos habituamos até com astecas, incas e brasileiros falando inglês.

Mas tem algo errado no filme, que se arrasta como se tivesse paradoxalmente pressa em transpor cada capítulo literário – ou o resumo dele – para as telas, para evitar justamente comentários como os da gordinha ao meu lado.

Os efeitos especiais e sonoros – nas cenas onde as pipas ondeiam e volteiam nos céus “de Cabul” – também incomodam. Não combinam com a reconstrução de rostos supostamente afegãos e prédios idem. É como querer dar um toque “Matrix” a “Lawrence da Arábia”.

Pra comer com pipocão kingão saizão, enfim.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

O caçador da menina que roubava pipas do livreiro de Cabul [310308]


Como promessa é dívida, e como prometi semana passada dar um pitaco qualquer sobre o tal caçador de pipas, vou logo me livrando do compromisso.

Se você leu a “crítica” de sexta, fique logo sabendo que assistir a “Onde os fracos não têm vez” e a “O caçador de pipas” são duas experiências, embora naturalmente diversas, bastante comuns.
Pra começo de conversa, casa cheia nos dois. Os motivos são os Oscar conquistados, pelo primeiro, e os livros vendidos que nem pão quente, pelo segundo. La même chose, enfim. Mais: imagino que uma minoria da patuléia foi ver “Os fracos” pra bater palminhas pros irmãos Coen.
Ao contrário, apenas uma minoria foi assistir “As pipas” porque ouviu falar do sucesso do livreco – a maioria, mesmo, foi conferir se a versão celulóide era fidedigna ao original gutenberguiano.

Já deu pra sentir que vou espinafrar livro, filme, autor, diretor, e, por tabela, os leitores fãs de carteirinha, né? Então, vamos parar por aqui, vocês adoradores de ídolos falsos. Eu continuo, vocês passam pra página dos esportes.

Pra ilustrar, jornalismo-verdade, crônica da banalidade: me arrumo, em meio ao mundaréu de gente, em duas poltronas lá pelas fileiras centrais e do alto. Todo crente que, como era um filmão bem popular, o barulho da tela se confundiria com o barulho da platéia.

Olha que sujeito preconceituoso às massas: 99% da sala se comportou direitinho – até mastigaram as pipocas com parcimônia e esmero e a fineza com que dobraram as embalagens vazias dava gosto de se ouvir.

O problema foi o 1% restante. Que se aboletou justo ao meu lado. E justo na figura rechonchuda de uma gordinha faladeira. Dane-se o politicamente correto! Se fosse uma loira platinada, ainda que burra, eu soltaria os cachorros na loirice belzebu. Mas a danada era uma gorda, e, justificando todos os estereótipos do physique du role, começou abrindo uma embalagem tipo pizza pra viagem: não, não era pizza. Devia ser algo mais gosmento e pegajoso, porque a filha de uma mãe raspava o fundo chato e cartonado com um garfinho de plástico. Depois, abriu um saco plástico onde, pelos rumores emitidos, continha ainda mais coisinhas plásticas e comestíveis. No intervalo entre uma ação e outra, a gourmet atendeu, numa boa, o celular.

Amanhã eu conto o resto.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Levante de leopardos | Combinações



Ler não apenas deformou sua imaginação; mas já não era o mesmo jumento que.


Como sabê-lo inteiramente, mais que os outros jumentos sem nenhum vislumbre de memória, sem nenhuma intromissão dos seres que já havia contado e que provavelmente haviam profanado sua alma com miniaturas fulvas de furor?


Pois entre as botas, ereto, pendia um bastão enorme. Era mais rijo que o membro com que o ameaçavam.


Não sei o que ele viu. Não sei o que lhe passou pela cabeça, ouviu ou farejou.


Ele não saíra do lugar, seqüestrou-a na noite anterior. Na fração de tempo em que eu lhe dera as costas, sem carnes, sem forças, quase sem pele, uma natureza facilmente excitável, meio nervoso, meio bilioso, total na sua força e na sua masculinidade, menos do que nada, quando eu já não via nada, dera-se nele uma visão.


E foi só a este sentimento de desejo em meio à miséria que eu compreendi que se achava definitivamente extinto o que em mim existia de cruel e sórdido, como um animal que repontasse de selvas primitivas.


Penso nele com freqüência. Penso em quanto dele ainda estava no meu íntimo, ali iremos, se ainda quiserem, até um lugar em que todos os dias pessoas morrem entre a gentileza e a eficiência, guardados e engordados para a morte.


Quisera o ponto de Marrakech e.


Somos, todos nós, fundas marcas de estranhos e.


E acrescentemos um espírito culto, agressivo e imperioso, cheio de fome e de sede de absoluto, habituado aos estudos da forma e da cor assombrosa; um coração terno, fatigado pela embriaguez, mas ainda pronto para o rejuvenescimento; é uma grande coisa morrer em nossa própria cama ou em hospital, embora seja melhor ainda morrer de semelhante infelicidade; vara de porcos, levante de leopardos nos trucidam sem razão.


Por maior que seja aquela criatura miserável, que só servia para diálogos obstinados, mais favorável às patas traseiras, aquele ser que era amado ainda guardava sua miséria.


Mas mal se agüentava em si tanto desejo, e possuí-la enxovalhada velha e fraca me livrou da imagem de que a mera alteração daquilo começava a se erguer.


Um ser de temperamento algum, talvez pequeno demais para ser mal-empregado, despede algo; mas deixa da pressa uma impessoalidade, em cada detalhe que haverá.


Outro assim é o admitir que todos os flagelados preservassem o tempo da aglomeração, da faísca de boca numinosa: surgem antigas recordações, evoluções, culpas terrivelmente dolorosas, remorsos positivos, o que deve resultar em senão toda morte ao menos o arrependimento do ciúme infantil lacerado nas pernas.



O texto acima foi reescrito usando os textos da postagem abaixo. Reescrito, talvez, não seja o termo adequado: foi remanejado, sem acréscimo ou supressão de nenhuma palavra ou sinal de pontuação.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Levante de leopardos | Extractos




Ler não apenas deformou sua imaginação; seqüestrou-a.
[Susan Sontag DQ Questão de ênfase tradução de Rubens Figueiredo São Paulo: Companhia das Letras, 2005]


Ele não saíra do lugar, mas já não era o mesmo jumento. Pois entre as patas traseiras, ereto, pendia um membro enorme. Era mais rijo que o bastão com que o ameaçavam na noite anterior. Na fração de tempo em que eu lhe dera as costas, dera-se nele uma alteração assombrosa. Não sei o que ele viu, ouviu ou farejou. Não sei o que lhe passou pela cabeça. Mas aquela criatura miserável, velha e fraca, que mal se agüentava nas pernas e só servia para diálogos obstinados, mais enxovalhada que os outros jumentos de Marrakech, aquele ser que era menos do que nada, sem carnes, sem forças, quase sem pele, ainda guardava em si tanto desejo, que a mera visão daquilo me livrou da imagem de sua miséria. Penso nele com freqüência. Penso em quanto dele ainda estava ali quando eu já não via nada. Quisera que todos os flagelados preservassem o desejo em meio à miséria.
[Elias Canetti As vozes de Marrakech tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2006]


Como sabê-lo inteiramente, e possuí-la sem nenhum vislumbre de memória, sem nenhuma intromissão dos seres que já havia amado e que provavelmente haviam lacerado sua alma com fundas marcas? E foi só a este sentimento de ciúme, total na sua força e na sua masculinidade, que eu compreendi que se achava definitivamente extinto o que em mim existia de infantil. Outro ser começava a se erguer no meu íntimo, agressivo, imperioso, cheio de fome e de sede de absoluto, como um animal que repontasse de selvas primitivas.
[Lúcio Cardoso Crônica da casa assassinada Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000]


Um temperamento meio nervoso, meio bilioso, assim é o mais favorável às evoluções de semelhante embriaguez; acrescentemos um espírito culto, habituado aos estudos da forma e da cor; um coração terno, fatigado pela infelicidade, mas ainda pronto para o rejuvenescimento; iremos, se ainda quiserem, até o ponto de admitir antigas culpas e, o que deve resultar em uma natureza facilmente excitável, senão remorsos positivos, ao menos o arrependimento do tempo profanado e mal-empregado.
[Charles Baudelaire Poema do haxixe tradução de Alexandre Ribondi Os paraísos artificiais O ópio e Poema do haxixe Porto Alegre: L&PM, 1986]


Somos, todos nós, guardados e engordados para a morte;
vara de porcos, nos trucidam sem razão.
[Paladas Poemas da antologia grega ou palatina tradução de José Paulo Paes São Paulo: Companhia das Letras, 1995]


E é uma grande coisa morrer em nossa própria cama, embora seja melhor ainda morrer de botas. Por maior que seja a gentileza e a eficiência, em toda morte em hospital haverá algum detalhe cruel e sórdido, algo talvez pequeno demais para ser contado, mas que deixa recordações terrivelmente dolorosas, que surgem da pressa, da aglomeração, da impessoalidade de um lugar em que todos os dias pessoas morrem entre estranhos.
[George Orwell Como morrem os pobre Dentro da baleia e outros ensaios tradução de José Antonio Arantes São Paulo: Companhia das Letras, 2005]


ou: levante de leopardos
fulvas miniaturas de furor
cada faísca despede uma
boca numinosa
[Haroldo de Campos aproximações ao topázio Signatia quase coelum São Paulo: Perspectiva, 1979]

terça-feira, 18 de março de 2008

Nunca mais




É depois de um tempo que começa a doer de verdade.

Não que antes não fosse dor.

Mas era dor de percurso lógico, de rumo certo, de rota controlada, de estágios mais ou menos definidos.

É depois de um tempo que tudo começa a embaralhar, em caos, em surpresa, em tocaia traiçoeira e covarde.

É depois de um tempo que – uma imagem: a pia por fazer, a louça por lavar, a cama por forrar, a casa por varrer, e, um dia inteiro por viver. Cinco imagens.

É depois de um tempo que começamos a nos perder na casa vazia, no vazio da casa, na solidão do fim-de-tarde. Cai a noite como um manto escuro e pesado. Cai a noite em conta-gotas: uma buzina leve, luzinhas que acendem, pára-raios parados, céu estático, céu sem nuvens, sem guias, sem estrelas, astros, constelações.

Cai a noite e o céu se tinge de um azul-escuro. Um motor ronca e se perde numa esquina qualquer. Gritos. Um cão que late. Sirene. Borracha de pneus mastigando pedras. A sirene continua, não se cansa. O cão ladra mais forte.

A casa se enche de vazio. De promessas não cumpridas. Não é preciso relógio para marcar as horas: envelhecemos a cada instante. E o que incomoda não são os cabelos que se encanecem, nem as rugas que se comprimem sobre o rosto outrora imberbe, nem os músculos que se flabelam ao sabor da gravidade.

Poderia deixar uma maçã no parapeito e assistir sua ruína. Os escombros das cores.

Não.

O que incomoda é a perda das palavras, a maceração das frases, a dislexia do tempo.

A perda da memória.

O que incomoda é a ausência. O reencontro para sempre adiado.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Carta ao poeta João Gualberto Aguiar [140308]






João, andei sumido, sei. Nunca mais voltei ao seu palácio mastodôntico às margens da BR-101, promessa de fuga e viagens ao Sol, Sul Maravilha.

Nunca mais deixei minhas sandálias na soleira da porta, para em sua casa entrar descalço como vim ao mundo, sem o pó deste na sola dos pés calçados.

Nunca mais me coloquei no centro da sala, meio de banda para colher seu olhar-sorriso enviesado de contentamento com a visita inesperada.

Por que sumi, João?

Não, não fui abduzido por nenhum disco voador, nem disco pirata, nem disco de prata, nem disco compacto. Nenhum mp3 me conquistou.

Não: tampouco naufraguei numa chalupa mambembe em costas d’África, devorado pelo Leviatã, tentando entrecruzar e decifrar as pistas enigmáticas deixadas nas migalhas de pão por Daniel Defoe e Arthur Rimbaud.

Se fui ao Juazeiro pagar promessa?

Não, João. A sombra do padre Cícero Romão Batista passou sobre minha cabeça numa procissão de nuvens esgarçadas. Nenhum sinal de chuva.

Então, foi um seqüestro-relâmpago, estroboscópico, psicodélico, que durou mais que devia, impedindo-me a visita?

Tsc-tsc. Tenho escapado imune e impune dessas pequenas violências que tecem nossas manhãs como uma vez as teciam os galos.

Tampouco me deram cargo em Palácio, de despachante do Poder.

Meu ofício continua o de matar as horas e enterrar os dias no ramerrame eterno que nos guia os passos e as contas a vencer.

Basta de perguntas prenhes de interrogações, João.

Sumi, porque, dias depois de ter subido ao seu apartamento levando embrulhado em papel prateado o livrinho do Nick Tosches, “A última casa de ópio”, entrei com o meu pai no hospital – do qual, quarenta dias depois, só um de nós saiu vivo.

E não tenho certeza se fui eu.

Eis o mistério da fé, João.

Em verdade, em verdade, vou falar procê: acho que quis poupá-lo de mais uma má notícia. A você, que de maus eventos a vida tem se revelado pródiga. Tantos você já perdeu, não é justo invadir sua cotidianidade com perdas alheias.

Parece uma desculpa, bem sei, e talvez seja, bem sei.

Talvez seja o medo de também perdê-lo, eu, que em breve convivência já vi João Gualberto, Gual, Jogal, perder-se em si mesmo e em seus múltiplos, um pouquinho a cada vez. Como se a vida jorrasse de si, prodigamente, como uma represa arfante, sem fôlego, incapaz de conter tanto volume, de sólidos, líquidos, gasosos; de tipos tipográficos; de anos de chumbo; de metal retorcido e ferrugem de prêmios e plumagem de pássaros; de teclas apagadas e ninhos de passarinhos.

De tanta bondade, João.

Essa mesma bondade que ainda há de matá-lo. Sem tocaia, olho no olho. Que o fere, aprisiona, devora, um pouquinho por dia, sol posto, sol nascente.

Tem também muito de covardia na raiz do meu sumiço. De covardia, de impotência, de desânimo. Por saber que você é apenas um a mais na legião de nomes que a esta cidade convêm mais mortos que vivos.

Pois, se aos primeiros lhes basta a efemeridade das celebrações fúlgidas, os segundos são só estorvo – sempre a reger com gestos invisíveis e inábeis o coro dos descontentes. Sempre atravancando o tráfego. Sempre destoando da mobília decorativa, insípida, inodora, anódina e asséptica. Sempre exigindo brioches ao posto do pão ázimo.

Sempre ameaçando o vômito à mesa do café-da-manhã. Sempre levando aos banquetes a companhia dos mendigos, sempre o colarinho sujo, os dentes desgastados, os dedos maquiados de nanquim, a barba por fazer, os cabelos desgrenhados ao vento, bandeira de uma liberdade incômoda.

Desculpe o lugar-comum, João, a escrita banal, mas a esta cidade lhe interessa mais os cifrões que as letras. As letras são um estorvo, ainda mais encarreiradas sobre o espelho embaçado ou no mármore polido do lavabo.

Os cifrões são redenção & religião.

E de nada vale lembrar que o dinheiro não se come. Como não? Estamos empanturrados, nos fartamos dia após dia em 30, 35, 300, 350 moedas de ouro. Esta é a Cidade dos Reis, João, la Ciudad de Los Reyes, dos historiadores d’antão, a perspectiva indefinida, de Cascudo.

E aos Reis não lhes é permitida a existência sem a vassalagem e tampouco sem a porção podre da corda – os mendigos. Aqui, mais que em qualquer outro lugar do mundo, a mendicância é a serventia da poesia.

E aos dragões da maldade interessam apenas a domesticação – da poesia e, por conseguinte, dos poetas. Como você. Seja Marginal, Seja Herói, é o dístico de sempre. Lembre-se do fraque esverdeado de Itajubá, de seu colete “entre lilás e vermelho, sua mania pelos pastoris, seus discursos nos circos de cavalinhos, seus poemas nas Rocas, na Rua da Lua, na travessa Paraense, no beco do caju, seu violão de folhas de flandres (para a chuva não descolar)”, como lembrou sua sombra, seu doppelgänger, Luís da Câmara.

Será verdade mesmo que “um homem com uma dor é muito mais elegante”?

Lembra quando você me contou sua experiência com LSD? Ninguém quis publicar que você escreveu a “Máquina de lavar poemas” após uma viagem de São Paulo ao Rio. O fornecedor lhe deu um “pingo londrino”, recomendou que partisse em quatro, como o sinal da cruz. Inábeis, seus dedos deixaram a gota cair na pia. Velozes, correram a colhê-lo e depositá-lo na boca sob a língua. Quando o dia amanheceu, a primeira coisa que você viu foi um raio de sol. Até hoje você procura pegar aquele raio. Ainda não se tocou que ele era você mesmo.


quarta-feira, 12 de março de 2008

Satyricon [100308]



Quero envelhecer como Woden Madruga e Nei Leandro de Castro. Se preciso for, lavro esta crônica, texto, declaração, ata, em cartório. Com as testemunhas juramentadas que o serviço exige, com as despesas pagas sem titubear ou regateio.

Sexta-feira passada os meninos estavam lado a lado nas páginas da Tribuna do Norte. Aliás, na mesma página. Woden em sua coluna de praxe, Nei, em seu artigo idem.


Por trás de sua barba branca, o primeiro, por trás de sua barba branca, o segundo. Woden, com seus olhinhos míopes, é um encanto. Normalmente, parece brabo, para quem o lê. Não é. É quase uma moça de fino trato, no trato pessoal. Nei, por trás dos óculos de fundo de garrafa, é bem mais agressivo, em texto e especialmente ao vivo, verbeloqüente. Se Woden é a metáfora da bondade e da pureza, Nei é a mão suja conspurcando bondade e pureza – um é o galante, fala mansa, gestos contidos, timidez arcaica; o outro é o bruto a desvirginar a moça.

Um, se esconde normalmente por trás da aridez da crônica cotidiana diária, mas termina revelando uma poesia sutil e enamorada; o outro, revela em poemas avassaladores, ou naquilo que pode ser definido como crônica poética, a aridez do desejo impaciente dos machos, mais que enamorados, sedentos.

É isso: enquanto um limpa educadamente os beiços à mesa, o outro faz questão de manchar o guardanapo e exibi-lo aos comensais.

É isso, também: um é sutil, o outro, matador. No país de Nei Leandro, os fracos como Woden não têm vez.

Vez por outra se embaralham, o que vale para um passa a valer pro outro, que as fronteiras a isso servem: para ser sacaneadas.

Mas, sexta-feira passada, se mostraram, ambos, faunos, sátiros, caprinos. No bom sentido, claro, se é que possa existir seu oposto (algumas mulheres podem detestar a devoção que emprestam ao gênero feminino – mas no final até mesmo essa minoria se rende conto do quão necessário e urgente é, sermos assim). Uma espécie de novo alvorecer do macho moderno, que, dizia-se, há muito adentrou na sombra obscura do crepúsculo.

Duvidam? Não entendem? Eu explico, usando as palavras dum, e doutro.


WODEN:
“Lá pras tantas houve, de
repente, uma visão que fez silenciar a mesa. Uma bela jovem atravessa o pátio
ensolarado do Iate - estava de biquíni - e entra na piscina. Foi uma entrada
calma, como se estivesse experimentando a temperatura da água. Deu duas, três,
quatro braçadas. Deixou-se se molhar bem devagarinho e a partir daí, ficou
praticando, em pé, projetando o dorso (que dorso!) para fora, uma série de
pulos, pulinhos, harmoniosos, um, dois, três. Desconfio que pisava com as pontas
dos pezinhos o piso raso da piscina. Aqui e acolá, repetia: duas, três, quatro
braçadas, um nado suave. De novo, os pulinhos. Um, dois, três. Graciosos. Que
dorso! Quer cor. Sol, sal, bronze. E nesse ritmo se passaram duas horas
cronometradas pela distinta platéia. Assim como chegou, saiu. Perguntei para a
mordoma do Iate quem era a princesa grega. Não soube informar.”



NEI:
“Numa tarde de solidão quase infinita, a
poesia surgiu diante de mim, me pegou pela mão e saímos juntos. Levou-me
correndo para as falésias manchadas com o vermelho desbotado do anticrepúsculo,
e eu percebi claramente que a poesia tinha corpo de mulher, ternura de mulher,
magia de mulher. Beijou-me na boca, despiu-se e disse que queria ser amada não
como usualmente se ama a poesia, mas como se ama uma mulher cheia de desejos. A
poesia tinha uma cabeleira escura, os seios apontando para o infinito e os seus
lábios tremiam. Começamos a trocar carícias e eu jamais poderia imaginar que a
poesia fosse tão bela, tão deslumbrante, quando se despe totalmente. A poesia me
lançou nardos e dardos de doçura, gemeu e os seus gemidos foram tão fortes que,
a muitas léguas dali, um homem à beira do suicídio despertou para a vida e
escreveu uma ode ao amor.”


CONCLUSÃO

O sátiro Nei, o fauno Woden: não os conheço intimamente, nem um nem outro. Se me atrevo a escrever sobre eles é porque cresci acompanhando suas trajetórias, na imprensa e na vida social da província – que há pouco mais de uma década era ainda mais provinciana, e os ares, mais frescos, mais limpos, o céu com mais estrelas, as várzeas com mais flores, os bosques com mais vida, e a vida, claro, bem mais pródiga de amores.

Voltando da digressão poética e resumindo: se me atrevo a abordá-los é porque são celebridades. Muito antes da Caras e do neo-colunismo social. E enquanto tal, nada podem reclamar dos paparazzi-de-letras feito eu. Quanto aos seus perfis – e para livrar-me de possível responsabilidade penal – qualquer semelhança com a realidade é mera licença poética.

Daí que eu, na minha meia-idade, declaro, em sã consciência e com um tiquinho de inveja e esperança (e sem pingo de ironia), que desejo envelhecer como eles: admirando as moças na piscina, cavalgando musas, deixando-me trespassar por nardos e dardos de doçura. E escrevendo – que, desde sempre, para outra coisa somos inúteis.









PROSA
“As três meninas que me visitam ficaram todo o tempo puxando as reduzidas mini-saias, atraindo, pelo gesto insistente, meu olhar distraído para a palpitante topografia exibida.”
Câmara Cascudo
Na ronda do tempo
VERSO
“A beleza da menina
Chamou a minha atenção”

Moysés Sesyom

segunda-feira, 10 de março de 2008

O Selo


[Robert Crumb]



Tive um sonho estranho.

Lembram que os Long Plays vinham com um selinho impresso na contracapa dentro dum retângulo onde se lia DISCO É CULTURA – ?

Pois, no meu sonho, tudo, absolutamente tudo que pode ser negociável e comercializado, vinha com o mesmo selinho – só que em vez do DISCO É CULTURA, lia-se:

SEXO É BOM.

Foi na quitanda comprar banana pacovan?

- No selo azul, contraste com o amarelão da banana: SEXO É BOM.

A seda azul do papel que envolve a maçã argentina?

- A marca d’água multiplicada em tons clarinhos: SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM É BOM É BOM É BOM É BOM É BOM É BOM

Nos brinquedos, ao lado do selo do Inmetro e daqueles alertas terríveis, desaconselhado para menores de tais anos porque contém partes comestíveis?

- A mesma marquinha, admoestação para o futuro da espécie.

Até nos jornaizinhos das missas, da santa madre igreja católica apostólica romana, finalzinho lá do pé de página, o dístico, beatificado, hosanado, consagrado e abençoado, décimo-primeiro mandamento da lei de deus:

- SEXO É BOM.

Seria uma maravilha.

Bom mesmo.

sexta-feira, 7 de março de 2008

quinta-feira, 6 de março de 2008

Traduções, II


Na verdade, há veios de onde se extrai a prata, e lugar onde se refina o ouro.
O ferro tira-se da terra, e da pedra se funde o cobre.
Ele põe fim às trevas, e toda a extremidade ele esquadrinha, a pedra da escuridão e a da sombra da morte.
Abre um poço de mina longe dos homens, em lugares esquecidos do pé; ficando pendentes longe dos homens, oscilam de um lado para outro.
Da terra procede o pão, mas por baixo é revolvida como por fogo.
As suas pedras são o lugar da safira, e tem pó de ouro.
Essa vereda a ave de rapina a ignora, e não a viram os olhos da gralha.
Nunca a pisaram filhos de animais altivos, nem o feroz leão passou por ela.
Ele estende a sua mão contra o rochedo, e revolve os montes desde as suas raízes.
Dos rochedos faz sair rios, e o seu olho vê tudo o que há de precioso.
Os rios tapa, e nem uma gota sai deles, e tira à luz o que estava escondido.

Porém, onde se achará a sabedoria, e onde está o lugar da inteligência?
O homem não conhece o seu valor, e nem ela se acha na terra dos viventes.
O abismo diz: Não está em mim; e o mar diz: Ela não está comigo.
Não se dará por ela ouro fino, nem se pesará prata em troca dela.
Nem se pode comprar por ouro fino de Ofir, nem pelo precioso ônix, nem pela safira.
Com ela não se pode comparar o ouro nem o cristal; nem se trocará por jóia de ouro fino.
Não se fará menção de coral nem de pérolas; porque o valor da sabedoria é melhor do que o dos rubis.
Não se igualará ao topázio da Etiópia, nem se pode avaliar por ouro puro.
Donde, pois, vem a sabedoria, e onde está o lugar da inteligência?
Pois está encoberta aos olhos de todo o vivente, e oculta às aves do céu.
A perdição e a morte dizem: Ouvimos com os nossos ouvidos a sua fama.
Deus entende o seu caminho, e ele sabe o seu lugar.
Porque ele vê as extremidades da terra; e vê tudo o que há debaixo dos céus.
Quando deu peso ao vento, e tomou a medida das águas;
Quando prescreveu leis para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões;
Então a viu e relatou; estabeleceu-a, e também a esquadrinhou.
E disse ao homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal é a inteligência.


[Livro de , Capítulo 28, Versículos 1-28 – Tradução de João Ferreira de Almeida]


quarta-feira, 5 de março de 2008

Traduções, I


Há lugares de onde se tira a prata,
lugares onde o ouro é apurado;
o ferro é extraído do solo,
o cobre é extraído de uma pedra fundida.
Foi posto um fim às trevas,
escavaram-se as últimas profundidades da rocha escura e sombria.

Longe dos lugares habitados, [o mineiro] abre galerias
que são ignoradas pelos pés dos transeuntes;
suspenso, vacila longe dos humanos.
A terra, que produz o pão,
é sacudida em suas entranhas como se fosse pelo fogo.
As rochas encerram a safira,
assim como o pó do ouro.
A águia não conhece a vereda,
o olho do abutre não a viu;
os altivos animais não a pisaram,
o leão não passou por ela.
O homem põe a mão no sílex,
derruba as montanhas pela base;
fura galerias nos rochedos,
o olho pode ver neles todos os tesouros.
Explora as nascentes dos rios,
e põe a descoberto o que estava escondido.

Mas a sabedoria, de onde sai ela?
Onde o jazigo da inteligência?
O homem ignora o caminho dela,
ninguém a encontra na terra dos vivos.
O abismo diz: “Ela não está em mim”.
“Não está comigo”, diz o mar.
Não pode ser adquirida com ouro maciço,
não pode ser comprada a peso de prata.
Não pode ser posta em balança com o ouro de Ofir,
com o ônix precioso ou a safira.
Não pode ser comparada nem ao ouro nem ao vidro,
ninguém a troca por vaso de ouro fino.
Quanto ao coral e ao cristal, nem se fala,
a sabedoria vale mais do que as pérolas.
Não pode ser igualada ao topázio da Etiópia,
não pode ser equiparada ao mais puro ouro.

De onde vem, pois, a sabedoria?
Onde está o jazigo da inteligência?
Um véu a oculta a todos os viventes,
até às aves do céu ela se esconde.
Dizem o inferno e a morte:
“Apenas ouvimos falar dela”.
Deus conhece o caminho para encontrá-la,
é Ele quem sabe o seu lugar.
Porque Ele vê até aos confins da terra,
e enxerga tudo o que há debaixo do céu.
Quando Ele se ocupava em pesar os ventos,
e em regular a medida das águas,
quando fixava as leis da chuva,
e traçava uma rota aos relâmpagos,
então a viu e a descreveu,
penetrou-a e escrutou-a,
depois disse ao homem: “O temor do Senhor, eis a sabedoria;
fugir do mal, eis a inteligência.”


[Livro de , Capítulo 28, Versículos 1-28]

terça-feira, 4 de março de 2008

Uma mulher no espelho


[Fernanda Takai mira-se em Fernanda Takai: alguns enxergam Nara, mas é Takai jogando olhares pra Takai, mesmo - Foto de Fabiana Figueiredo e Pierre Devin]





Nunca fui muito com a cara de Fernanda Takai.

Sempre achei meio ridículo e bobo o tal do Pato Fu, a começar do batismo.

Nunca acreditei muito no jeito swingin’ london brejeiro da moça – a qualquer hora parecia que ela poderia sacar do bolso um fiapo de capim e começar a mascá-lo enquanto soltava aquelas lacônicas expressões que estereotipam a roça das Geraes.

Sempre achei que era uma forçação de barra tentar levar as pedras geométricas de Copacabana para as ladeiras infinitas de Beagá.

Recém-converso ao Takaismo (não praticante), não renego nada do que pensei.

Apenas ouço e ouço Onde brilhem os olhos seus.

E ouço e ouço.





segunda-feira, 3 de março de 2008

crep-úsculo sci-fi



Deixou a casa afundar nas trevas, deixou a escuridão ocupar cada ângulo, deixou-se.

Veio a solidão, e devorou-o.

Veio a tristeza e mordeu seus pulsos.

Veio o silêncio e cavou sulcos profundos na face.

Veio a desesperança e atou-lhe as mãos às costas, os pés voltados contra as nádegas. E meteu-lhe um capuz escuro e a cabeça perdida no interior do capuz negro num barril de água de chuvas.

Veio a melancolia e sua boca ficou seca, o estômago árido, a pele desértica.

Vieram os sonhos e lhes fustigaram os músculos miúdos.

Através da porta ouviu o caminhão da imundície estacionar.

Se arrastou até os cotovelos tocarem os ladrilhos gelados do banheiro. Ouviu o coro negro dos anjos, como uma nuvem de pássaros ondeando o céu, volteando curvas infinitas, arabescos e espirais, coleando o pasto celeste.

Abriu os olhos uma última vez e entreviu uma chama miúda, entre o azul e o vermelho.

O relógio bateu as horas contra o reboco úmido da parede.

Quando cessou a última badalada, eles entraram.

E dele se serviram. E se refestelaram.

*

Quando acordou, cada pedaço de seu corpo espalhava-se pela sala recém-desperta, o sol aconchegando-se sobre a manta do sofá e entre as pétalas do vaso da mesa.

Cada pedaço na boca de um deles, cada osso, cada tendão, músculo e gordura, as vísceras estendidas através do soalho do corredor rumo à porta dos fundos e às sombras mornas do quintal de frutas.

Ele apenas sorriu.



sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Cloverfield de agave [290208]

Em Cidade dos Reis as damas não perdem a cabeça por pouca coisa













Eu juro que esperava mais.

Um vento, vendaval, um terremoto, um maremoto, uma revolução.

Telefones congestionados, trânsito caótico, os pais buscando desesperados os filhos mais cedo nas escolas, a cúpula do governo reunida em palácio, a PM e o exército acionados, assessores se descabelando, garçons servindo, pressurosos, jarras e mais jarras de maracujina.

Eu esperava ver o povo polindo as lâminas de centenas de guilhotinas nos quatro cantos da cidade, e, no interior, retirando do punho das redes as cordas para enforcar os poderosos de sempre, os suspeitos de sempre, como em Casablanca – e junto com eles a corrupção, velha senhora pairando sob os céus luminosos do Ryo Grande, com seus dias contados.

Eu juro. Eu esperava mais. Blecaute. TVs fora do ar. Barricadas nas portas dos jornais. Celulares fervendo. Carros freando bruscamente nas portas das livrarias e nas cigarreiras. E homens de preto, óculos escuros e queixo quadrado abrindo porta-malas e apreendendo a primeira edição de um livro de 346 páginas com subversivo título.

Eu esperava que o 27 de fevereiro fosse o nosso 11 de setembro. Que a Manhattan de “Cloverfield” migrasse das telas para a Afonso Pena, nossa Manhattan local.

Desilusão, meu bem.

Me sentindo o próprio coelho de Alice, desembarco, sol posto, na banca de Tota – marco zero do Plano Palumbo, como entoam os cronistas da cidade. Corro os olhos pelas prateleiras e sem dificuldade encontro a mina atômica, com suposto potencial para derrubar governos e mudar o curso da história política do Erre-Ene. A distribuição tinha começado na calada da noite anterior. Pergunto quantos ainda tem em estoque. Cinco, me diz o balconista. Quantos vieram. Cinco, repete a primeira resposta.

Sem nada a fazer, pago os 40 reais pelo livro e vou pra Pasárgada, onde não sou amigo de ninguém. Ler meu livrinho sossegado. O faço, de uma tirada só, na noite calma e serena, céu descoberto, estrelas brilhando, e o mar, ali bem perto, marulhando, marulhando.

Descubro que “Alças de agave”, o livro prometido de François Silvestre não revela muito mais do que já se sabia. Sobre o folioduto – que eu prefiro como foliaduto. François nomeia algumas reses, mas omite também alguns nomes do rebanho. O saldo, embora positivo, termina enfraquecido por essas ausências. Ao pisar em ovos, naturalmente quebra alguns. E mostra-se, ao longo das três centenas e meia de páginas, tão desiludido quanto enganado. Enganado pela governadora Wilma de Faria, pelos assessores diretos – alguns deles amigos pessoais –, mas enganado, principalmente, por ele mesmo, caçador de abelhas, criador de preás, servidor de pato na bandeja político-eleitoral. “O pato é um dos poucos animais que anda, corre, nada e voa”, escreveu, relembrando a campanha que levou Dona Wilma ao governo.

Pois, à frente da Fundação Zé Augusto, François andou, correu, nadou e avoou. Foi derrubado em pleno vôo, pretensamente livre das burocracias que rejeita, mas acorrentado nas armadilhas de um governo que, à imagem da governadora, “não gosta de cultura”, mas de “cultura de festejo e diversão, que é o lado secundário da cultura”. E refém do wilmismo, mais afeito à “sabujice” e à “bajulação” que ao trabalho profissional e desinteressado.

Derrubado mas não abatido, o pato escapou da panela e escreveu um livro. Que não provocou ventos nem tempestades etc. E que, apesar disso, já nasce como um clássico.

Daqui a meio século provavelmente vai ser o único registro em papel, a única versão sobre o atual governo, que, no andar da carruagem e ao dar as costas para a cultura, ignorando, entre outros, a literatura, termina apagando sua própria história. Sem deixar rastro.





PROSA
Se o poder fosse honesto, franco, limpo, conviveria muito bem com a cultura.
François Silvestre
Alças de agave
VERSO
Calei também de tristeza
de cansaço e desencanto.
François Silvestre
“Arquivo”



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Mahatma e o elefante sem memória [100108]




“Natal é uma mocinha do interior – hipócrita, safada, e que se prostitui à noite, barato!”

Marcelo Gandhi não tem papas na língua, percebe-se logo, quase de cara ou em ao menos cinco minutos numa conversa onde não procura agradar nem tão pouco cuspir no prato em que comeu. Gandhi nasceu em Natal, foi pra Parnamirim bem cedo, filho de militar e professora. Se lhe perguntam onde quer gravar um depoimento em vídeo sobre sua carreira artística, responde quase de supetão: “Em Parnamirim, na praça, tomando sorvete”. Pra Marcelo Gandhi parece não existir muita diferença entre a arte que produz e seu maior prazer: “Tomar sorvete é a minha cara”, explica, repete. Não à toa pichou na parede do Salão Newton Navarro da Fundação Zé Augusto: “Sorvete é bom demais”. Pichou também: “Depois da era vitoriana, o grande elefante se desmaterializa-se, a gênese do conformismo em Natal”. A redundância do pronome “se”, faz questão de explicar, é proposital. Não a mim, mas aos visitantes da sua exposição Site specific – lugar específico: a explicação redundante é também pichação na parede.

Eu escrevi pichação? Pode ser, mas também grafite ou grafito – a segunda expressão já remetendo à arqueologia. Caverna. Cela de prisão. Galeria de Arte. Ante-sala e anti-sala de uma Fundação que parece em vias de extinção.

O lugar específico de Gandhi é romper com o banal e os lugares-comuns. A exposição provocou polêmica e mal-entendidos ainda antes da abertura, na semana que passou: um funcionário da Fundação, ao dar de cara com as pichações, desenhos, carimbos nas paredes do Salão Nobre, o retrato de Navarro num canto, pensou tratar-se de obras de vândalos.

Gandhi parece se equilibrar entre o incômodo pessoal de não ser compreendido e o incômodo que provoca nos outros, inclusive nos setores culturais. Quanto a isso, está bem contente com a exposição de despedida: há dez anos procura com sua arte discutir o espaço, discutir o padrão de beleza vigente, discutir o suporte tradicional da arte (incomoda-se particularmente com as molduras limitantes) e a rigidez das instituições.

Vai para São Paulo, diz, em busca da grana. Repete a palavra grana, uma, duas, dez vezes, como um disco de Zappa enganchado na faixa “We’re only in it for the Money”. Palmas para ele, que não tem medo de ser mal entendido, que não se enquadra na tradição – mais velha que a Serra do Cabugi – de um falso romantismo que prefere enquadrar arte e artista na velha tríade – marginal+pobre+louco. Lembra que passou a vida entre Parnamirim e Natal sentindo-se fora do prumo, fora do eixo, estranho no ninho. Até na UFRN, onde formou-se em Educação Artística. Em São Paulo sentiu-se em casa, percebeu que o que fazia não era estranho, e, melhor, que podia ser pago por isso. Encontrou a sua turma, o coletivo Ação Multiplicadora: sete paulistas, um cearense, um potiguar.

Cansou. “A política no estado ocupou tudo, caderno cultural é coluna social. Mas saio de Natal sem nenhuma raiva. Adoro isso aqui. Natal é belíssima mas vou buscar em São Paulo a tampa pra cobrir minha panela”.

Eu pergunto o porquê dos carimbos dos patos que repetem-se nas quatro paredes do salão, tão minúsculos e tão sonoros. Explica que vem de Björk, a cantora islandesa, que usou a ave numa logo e que ele adora. “É também um bicho que nós comemos, e quase ignoramos”. Se Marcel Duchamp pintou o famoso Nu descendo a escada, Gandhi substitui a figura feminina (que em Duchamp mal se percebe sexo e nudez) pela imagem do pato.

Alguém pode pensar que é ironia do artista com o público – quem é o pato que cai nessa que isso é arte? Alguém pode pensar que é uma homenagem a João Gilberto. Alguém pode pensar que é pelo jeito cadenciado, malemolente da ave, ainda mais ridícula ao descer eternamente degraus sem fim acreditando ser uma mulher, nua e bela. Alguém pode nem ter visto os patinhos, cruzado o hall de entrada e comentado com indignação: “Vândalos!”


Retrato do artista segundo outros
“Marcelo Gandhi foi o primeiro potiguar a ser selecionado pelo Itaú Rumos Visuais – isso, historicamente, foi muito importante, e também permitiu que ele tivesse acesso a um grande número de profissionais das artes, inclusive curadores. Ele está abrindo a casca do ovo agora, comete alguns excessos – e deve cometê-los – graças à própria juventude.” [Flávio Freitas]


“Ao transportar o cotidiano urbano para dentro de uma galeria, ainda mais numa instituição pública, Gandhi chocou as pessoas – e se há esse choque é simplesmente porque as pessoas não querem ver o próprio cotidiano. O que falta em Natal é repertório para absorver o que é produzido de boa qualidade aqui.” [Sayonara Pinheiro]


“A entrada de Marcelo Gandhi na cena cultural potiguar, no inicio dos anos 00, personifica, pra mim, a entrada em cena de uma nova geração nas artes visuais do estado, depois de uma década de 90 um tanto estagnada nesse setor, uma década sem uma renovação aparente de talentos e propostas artísticas.” [Afonso Martins]







PROSA
... se você está decidido a ser pintor, tem também de estar decidido a não ter medo de bancar o idiota.
Francis Bacon
Entrevistas com
VERSO
Que da furna se desgarre a argila, que o cutelo talhe a pedra
Que o fogo não vacile em vossa forja.
T. S. Eliot
“A rocha”

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Au revoir, Levino [030108]


O titular desta coluna – até ontem – não será nem o primeiro nem o último a pegar um pau-de-arara e se mandar, malas e cuias, pro Sul Maravilha. Enfant terrible do jornalismo cultural potiguar, ainda mais no ano que findou graças ao qüiproquó com Madame Hilneth Correia, Levino parte, deixa saudades e porta deste novo titular, egresso do banco de reservas, os melhores votos de um futuro alvissareiro longe das pendengas paroquiais.

“Plus ça change, plus c’est la même chose”, na cartilha de um autor francês que aqui pouco importa o nome mas a tradução: “Isso quanto mais muda, mais fica a mesma coisa”. Só para lembrar uns muitos que de aqui também partiram em busca da terra prometida, a começar pelo mossoroense Dorian Jorge Freire: “Sou um jovem. Vacinado, reservista, datilógrafo e sem qualquer religião ou dependência política. Não possuo nada além de uma vontade obsessiva de vencer, de fazer alguma coisa, de empregar minha vida em algo útil”, escreveu Jorge Freire a Edmar Morel, jornalista da Última Hora, de Samuel Wainer.

“Tenho meu nome respeitado”, prossegue missiva e missivista. “Embora moço, sabem todos que não temo dizer a verdade, que não me vendo a qualquer interesse, que, pobre, sei ser independente à custa dos maiores sacrifícios. Já tive a felicidade de ver meus trabalhos aplaudidos e atacados violentamente”.

A carta tem mais de meio século de vida mas preserva os mesmos lugares comuns do migrante – reconhecimento, aplausos, apupos? “Infelizmente, isso não é tudo e eu quero mais. Estou resolvido a sair de Mossoró, a emigrar. São Paulo. É uma aventura, bem o sei. Mas preciso o salto. Do contrário viverei sempre aqui, aqui casarei, aqui terei uma mulher muito bondosa, filhos remelentos, um ordenado ‘compensador’ e só. Paz campesina que não me interessa. Ramerrão que me entendia. Prefiro a luta. Os embates. Por isso pretendo arribar ainda este ano. Lá por dezembro”, quase conclui Dorian – que voltaria anos depois, entrando para a história do jornalismo nacional.

Também dez anos depois da carta do mossoroense, arribava mais um jornalista, desta vez num navio cargueiro: Sanderson Negreiros. Deu com os costados na Cidade Maravilhosa, trabalhou nas revistas Manchete e Visão. Voltou.

Um dos amigos presentes na despedida do cais era Berilo Wanderley, que chegou a viver em Madri, na Espanha, e voltou: “E vendo quanto o meio marca o espírito de um homem, desde que voltei, procuro sair de Natal”. Não saiu. Vez por outra fugia dos ossos do ofício. De Berilo, Luís Carlos Guimarães ouviu o comentário na redação do jornal, anos 60: “Um dia desses não se pode entregar ao patrão”. Era um sábado, o porre foi daqueles, monumentais, a ressaca durou até a serem despedidos, na segunda-feira, por Woden Madruga. “Passada sua ira, voltamos ao trabalho, uma semana depois”, recordaria Luís Carlos, anos depois com Berilo já morto.
Dos que foram e ficaram, Homero Homem e Moacy Cirne. Dos que nunca desejaram partir, Luís da Câmara Cascudo, provinciano incurável, maior-de-todos, como um dos dedos da mão que acena saudades.

AVE DE ARRIBAÇÃO
Todas essas lembranças, espanar da poeira passada, não tem a intenção do desânimo à nova ave de arribação, asa emigrante em fuga pelos ares. Como já diagnosticava João Batista de Morais Neto em Temporada de Ingênios e outros, de 2006, o “que faz o moço do interior, de dentro da caatinga, bendizer o sol e, ao vislumbrar a rala vegetação em volta, imaginar e viver os lugares grandes e populosos, lugares diferentes que estão além de sua morada” é o desejo, ânsia cosmopolita de partir, como por sua vez cantava Ferreira Itajubá cem anos atrás, “em busca do calor do sol de um clima alheio”. Ou Othoniel Menezes, fazendo da Jamaica sua Pasárgada, para onde parte num “pau-de-arara analfabeto”. Tudo que vai, volta, resume Morais Neto: “ele ganha chão, ganha pão entra e sai, pergunta, responde, circula e volta para o seu lugar seco de pedra. É o círculo, natural. Ciclo cósmico e telúrico.”

Nem adianta desejar a Rodrigo Levino a benção do anjo torto drummondiano ou do louco torquatonetiano. Gauche ele já é. Gauche ele não é. As ilusões, provavelmente, não se perderam simplesmente por nunca terem existido. Levino é de uma geração além de Drummond e de Torquato Neto, ledora dos dois. Não cabe, tampouco, o recado piegas, lacrimogêneo, do filme Cinema Paradiso – “Nunca volte, nunca volte”, como o corvo de Poe numa adaptação para os exilados.

Rodrigo Levino – é indiscutível – foi responsável por um dos acontecimentos marcantes do ano que passou: ao denunciar o patrocínio estadual a uma festa privada provou que o patinho feio do jornalismo e das administrações governamentais, a Cultura, pode e, muitas vezes deve ser analisada por um viés político. Daí que muita gente provavelmente deve respirar aliviada com sua partida, e, por motivos opostos, outros desejem seu breve regresso. Ou seja, tem lugar garantido, aqui e alhures.

Quanto a mim, só me resta desejar que seja feliz, lá ou cá, e que cumpra o preceito de Horácio: “Mudam de céu, não de alma, os que correm além do mar.”



PROSA
A geometria tem mistérios: o mundo é redondo mas seus habitantes são chatos.
Alex Nascimento
A última estação
VERSO
Que saudade, sem fim, de outras terras me veio!
Que ânsia de me esquecer por estranhos lugares!...
Ferreira Itajubá
“Ave de arribação”

Canto do Mangue



Desde o início do ano da graça de dois mil e oito escrevo uma coluna no jota agá primeira edição.

Como o jhfirstedition não tem publicação na rede mundial de computadores, publico, a partir d’hoje, aqui, algumas coisas publicadas ali – eu deveria dizer, atendendo a pedidos. Mas ninguém me pediu. Apenas algumas pessoas reclamaram, porque não tem no mundo virtual, porque não encontram na banca mais próxima de casa, porque não querem desembolsar setenta e cinco cents. Publico assim mesmo.

Canto do Mangue para lembrar as páginas de ontem, embrulho do peixe de hoje.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Amy y los huaraches

Vi pela primeira vez Amy Winehouse. Quero dizer, assisti, for the first time, um vídeo seu. Me chamou atenção as pernas finas da moça, quero dizer, os gambitos da moça. Tão magra. Ainda mais metida numa sainha balão, o que deixava o par de gâmbias em pose explícita. Tinha um quê de Eros percorrendo aqueles ossinhos caminhantes, escalando os vinte metros esquálidos e se metendo no ar mais rarefeito que imagino ser o interior da saia-balão. Mais acima, os braços ondeavam, flanando um milhão de tatoos, pra lá, e pra cá – como na musiquinha infantil. Mais ainda pra cima – estamos já nas nuvens – uma boca indecisa em ser carnuda ou apenas bocão; olhos negros cruéis tentadores; cílios postiços que bailavam ao som de um jazz quase samba quase bluegrass quase cool quase guantanamera quase swingin’ london. Depois, uma cabeleira mais alta que um bolo de noiva, mais negra que uma cumulus nimbus escondida no quarto do casal.


Não a ouvi chorar o marido encarcerado, como nas notícias jornaleiras.


A câmera se deteve em seus dedos enrolando as pontas da cabeleira negra. Os fios tensionados. Se moveu um pouco para a esquerda, encontrou o volume macio de um seio, brincando de esconder no decote geométrico.


As batatas das pernas são dois musclinhos chochos. Tem uma energia enorme acumulada ali, potência nuclear. Amy Winehouse é o Papa-léguas em letargia alcoólica. Não vai dali praqui em cima do palco.


Não a vi chorar e desfazer a maquiagem, como nas fotos paparazzi.


Eu estava no café, em Spring Street. Ouvi quando perguntou ao moço:


– deseja alguma coisa?


Ele pediu café com creme. Não levantou os olhos, nem eu os meus. Eu estava lendo um livro de John Fante, eu tinha vinte e uma merreca de um ano incompleto no qual eu aprendia a beber e a fazer sexo com meninas virgens. Depois, eu soube do entrevero entre os dois: que ele não gostou do café – sabia a cinzas e trapos fervidos. Que a raiva o fez observar de longe a maciez firme dos ombros, o leve traço de músculo nos braços, a espessura dos cabelos negros e luzidios, o brilho dos dentes, o nariz maia, o batom vermelho, os olhos oblíquos, os seios firmes, o caminhar dançante.


Então ele notou, o que ninguém mais viu, os velhos do Café em Spring Street bebendo cerveja e passando o dia, o que eu também vi:


Os huaraches.


Alguns dias depois ele voltou. Ela escarneceu dele. Depois, pediu desculpas. Fizeram as pazes. Ela pediu que ele voltasse, à noite. Ele não resistiu, e disse, saboreando o frescor do prato frio:


– esses huaraches você tem de usá-los, Camilla? Tem de enfatizar o fato de que sempre foi e sempre será uma latina suja e sebenta?


No palco, Amy Winehouse lembrou a cena, os olhos soltos entre a platéia. E correu para o bar, gemendo:


– oh, oh, oh.