
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
BILHETES DE VERÃO

Não espero milagres. Apenas que o vento pare. E, parando, cesse o cisco no olho. Argueiro que faz chorar.
*
Tão cheinha você estava em seu biquíni amarelo-ouro (as irmãs Fendi sorrindo por trás do balcão) que as curvas azuis da piscina nele se enrolaram. Amanhã dispenso esse emprego de salva-vidas.
*
A lua banhava as ondas com um dourado barroco de quintais adormecidos. Sem nuvens, mesmo assim não aparecia. Estaria escondida por trás das telhas da cumeeira ou no palato de tua boca quente?
*
Eu pensei tantas coisas. Na saliva mergulhada em teu sexo. No indicador em minha boca. Nas palavras despejadas em teu ouvidinho miúdo, os brincos brincando de sino dos ventos em meus dentes.
*
No sonho, seis ou sete redemoinhos marinhos faziam evoluções no mar gigante. A vida era solar. O arranha-céu quase embicava dentro do oceano. E, não, aquele filho não era nosso.
*
No sonho, relembrado às oito, esquecido ao meio-dia, o pátio exalava um odor verde-molhado. Deixamos aberta a torneira, respingando no vaso de hortelã. Para que os ladrões não soubessem que subimos ao quarto.
*
Encontrei o velho professor na padaria. Os cabelos ainda brancos, o bigode sempre aparado. Impossível duvidar sua felicidade.
domingo, 8 de fevereiro de 2009
Quando fui cavalo
Os cavalos andam enquanto cagam. Não são todos os animais que conseguem andar e cagar ao mesmo tempo. É um excelente negócio, sem desperdício de tempo. A bosta dos cavalos confunde-se com suas pegadas. O casco dos cavalos deixa uma marca profunda e cuneiforme na areia. A bosta dos cavalos não tem a mesma forma, mas há certa semelhança poética entre elas, bosta e pegada. Siga o rastro de um cavalo na areia – como quem entra num yellow cab em Manhattan e diz, altaneiro: “siga aquele carro!” – e você encontrará, cedo ou tarde, bostas de cavalo esparsas. Os cabritos e as cabras, talvez, consigam cagar enquanto andam. As vacas, não. As vacas podem também cagar enquanto pascem, aquela lentidão de passos, o úbere pendente, o rabo a espanar moscas, o pescoço sempre inclinado, o olhar bovino de quem pasta. Mas o mais normal é que caguem paradas. A bosta da vaca é um emplastro pastoso e quase único, desaba de uma só vez e deixa uma marca inconfundível no pasto. A bosta do cavalo, não – é expelida em prestações. E já sai seca. A bosta da vaca precisa que o sol lhe seque, mas só a crosta. Por dentro a bosta da vaca continua mole. A bosta das cabras – dos cabritos, dos bodes – é bem menor que a bosta dos cavalos e das vacas. São bolotas. Bolotinhas. Negras como carvão. A bosta das vacas pode ter várias cores, nuances. A bosta dos cavalos – e dos cabritos, cabras e bodes – é sempre negra. Preta. Retinta. Desconfio que a bosta deles não tem cheiro. Enquanto a da vaca, sim. Cagar enquanto anda é um excelente negócio. Os animais que param para evacuar são ridículos. Pense no homem: se agacha, furtivo. Não sabe cagar enquanto anda. O cão é ainda mais ridículo, adquire uma pose estranha, se dobra sobre si mesmo, arrasta o ânus no chão. Os cavalos não perdem a pose quando cagam – podem cavalgar, saltar obstáculos, ou simplesmente acrescentar um passo depois do outro, enquanto expelem seu cocô bem torneado. A bosta dos cavalos é discreta e não tem cheiro. Não provocam asco, não assemelham à sujeira. O rabo dos cavalos é elegante e farto, diferente do rabo esquálido das vacas, diferente do rabinho minúsculo das cabras, diferente do rabo polishop dos cães servis. Um cavalo só tem medo no olhar, mas duvido que o manifeste enquanto caga. Observe o rastro dos cascos do cavalo na areia da praia. Aqui ele parou, ali ele seguiu em frente e apertou o passo, mais aculá ele refugou. Entre uma estação e outra ele cagou: bostas compactas como umas mangas enegrecidas. Pequenas e ainda verdes, de duras. Me aponte um rabo de cavalo sujo de merda e eu direi: “És um homem afortunado, um entre milhão”. Já o rabo pobre das vacas está sempre sujo de merda. E as moscas lhes volteam o lombo. A bosta do cavalo ignora as moscas. O que é um grande negócio ser indiferente às moscas. Os cavalos, quando morrem, podem apresentar o abdômen inchado. E pútrido e fétido. Mas estão mortos e não são mais cavalos. Um cavalo morto não é um cavalo. Pois os cavalos se caracterizam pela capacidade quase única de cagarem enquanto andam. As cabras, os bodes, especialmente os cabritos, são risonhos e felizes. Têm um quê de desenho animado. A vaca é novela das sete. Os cavalos são épicos – no cinema: Cecil B. de Mille. Na literatura: Homero. Ou Dante. Há cavalos na Divina Comédia? Essa é uma pergunta que um cavalo nunca fará, mas a resposta seguramente será dada por um homem, aquele que se agacha enquanto evacua, que não consegue cagar enquanto caminha. Na música: Bach. Os cavalos exigem órgãos sonoros em igrejas dolentes. Os cavalos merecem sepulcros em catedrais. Os cavalos podem ser góticos. Os cavalos têm reinos – um homem, aquele que caga agachado, pronunciou: “Meu reino por um cavalo”. Não sei se lhe deram cavalo ou reino. Os cavalos, quando dados, cedidos, emprestados, não têm os dentes analisados. Quando o negócio envolve moeda de troca, vinténs, ouro, incenso ou mirra, o negócio é outro. O cavalo vale mais que uma boa esposa. O cavalo se deixa selar, mas se não gostar do bicho em seu lombo, corcoveia e o põe ao chão. Os cavalos não têm ilusões. Ao contrário das vacas, estas por si alucinógenas. A bosta das vacas é uma droga mui desejada por alguns daqueles que cagam parados. Você nunca verá um cavalo passeando de banana bolt.
Disso tudo eu sei e dou fé porque já fui um cavalo.
sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009
pater nostrum
Invés.
Apóio-me na armação escura de seus óculos na tensão enérgica de seu braço no abraço quente do seu peito em chamas cálidas. Reencontro-o no fim do corredor, na soleira do seu quarto, aos pés da extensão do telefone vermelho, os pés plantados em chinelos macios, as mãos cruzadas diante dos joelhos, as costas curvas e toda atenção que um pai é capaz de dedicar ao filho. Reencontro-o entre os tijolos da construção, que ergueu, como a mim contra o céu azul, pedra fundamental das memórias vivas e em sonho sonhadas. Reencontro-o na alegria interna de automóveis pueris – um Fusca azul, uma Variant prata, uma Brasília branca, um Fiat 147 bege. Revejo-o sobre a areia molhada, solitário, os braços abertos abraçando nuvens. Procuro-o na palavra que conforta, no sorriso que revigora, no olhar tangerino de perspectivas, à cabeceira da mesa, oração, alimento, desjejum, busco-o na sua eterna presença.
Sou feliz.
sábado, 24 de janeiro de 2009
Explicação
O fato, crianças, é que estou sem inspiração alguma. Nem posso falar de tesão, pois que não falta. Carece, não. De pílulas imaginárias para ereções reais. Mas faltam palavras, dormidas, amanhecidas, sonâmbulas, docinhas, amargas, azedinhas, gordurosas, nicotinadas, faltam palavras que se arrumem em versos ou reversos, meias-nove e outras posições esdrúxulas no kama sutra literário. Falta, falta faz. O tal vazio. Vácuo. Despressurização. Escrever é uma aporrinhação, creiam-me. Espécie quando se tenta tirar leite de pedra, as mãos esfoladas, os dedos carcomidos, as unhas de dar pena. Sem cinzel. Sem martelo para a estocada final: – Parla! Dizem: ausência de útero. Dizem: saudade do peito materno. Dizem: nostalgia das horas. O que não dizem é como alinhar uma palavra após a outra, alinhavar o pano de fundo do cotidiano tentando edulcorar o banal. Tudo muito alinhado, pois. E alinhavado. Muito mais elegante, ele disse, o homem com uma dor. Empedernido, empertigado. Perdido no espaço, sem tábua de salvação, sem ventre de baleia onde tirar um cochilo. Sem índios canibais de quem correr na praia, à sombra dos coqueirais. Resta esse passar de uma calçada à outra, cruzar a rua para evitar o conhecido – que de desconhecenças granjeamos mais, bem mais, muito mais que essa vida dupla, quádrupla, sêxtupla, progressivamente geométrica, incapaz de régua e compasso cardíaco. Da vida que arrastamos sem pesar seu custo na balança, sem prantear mortos e feridos, morte e feridas que deixamos covardemente pra trás. Trezentos, trezentos e cincoenta, o outro disse. São como vozes de fantasmas, essas vozes, anelzinhos de uma corrente infinita. Perder a língua? Estar extasiado? Ele, mais outro, perguntou. E eu fiquei sem saber a resposta, envolvido que estava entre uma coxa e outra coxa, o triangulozinho glabro no meio, buscando com afinco e dedicação minha tábua, minha nave, a corda onde pendurar esse sonho partido, esse corpo dividido em cabeça, tronco, e membros, tudo muito desconjuntado, mesmo após ter sido, pois, alinhavado e alinhado. E, num tropel galáctico, fugiam-se de mim as palavras, como gazelas diante da fera de olhos luminosos, diante do arco de uma Diana caçadora, Acteão em retirada diante dos próprios cães. Entre um sonho e outro, o despertar tardio e fugaz, o virar-se na cama e encontrar um corpo e a sombra d’outro. Tábua, bóia, ventre da mãe-baleia. E, na queda, não encontrar palavra viva onde fincar as unhas, restar dependurado, entre a língua e o êxtase. Eu disse, eu falei, eu me confessei, aqui, neste confessionário sem padres sem freiras sem cilício sem báculo cajado ou bornal. Só o suceder-se de lamuriazinhas, de fezinhas, de alegrias comezinhas. Ah, ser crente e tão descrente. Estar à beira, sem queda ou salvação. Vendo as palavras, umas, em queda gravitacional; outras, no arrastar-se pesado pela areia fina da praia, exílio onde portamos nossas bagagens, a maré alta castigando baús e malas de couro, mochilas de viandantes e nécessaires plásticas. Ah, ser pobre e tão desprovido de glórias. Buscando fôlego onde fôlego não há. O pulmão tão contrito como um devoto ajoelhado sobre o milho em chamas. Perdida a língua, danificada a engrenagem mecânica do êxtase, sobra a dedicação de uma carta: então, prezada senhora, nós que nunca nos encontramos, até quando prolongaremos o desencanto? Então, cara, caríssima, tão improvável é a nossa convivência carnal que afastamos todos os móveis para o canto mais escuro da sala, deixando-a livre para o bailar das feras? Pois, dama, tão inútil atracar o barco ao madeirame escuro do cais se mostrou que fomos separados em camadas distintas de oxigenação, em alas distantes do mesmo sanatório, nossos lençóis maquiados de fluidos, sangue esperma lágrimas suor encontrando-se, ao fim, ao término, no final, na lavanderia subterrânea onde sepultaram-se as palavras, todas elas e mais os sinônimos os antônimos as divagações e explicações.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
rainsummer
Discover Manic Street Preachers!
Nessas tardes molhadas de agosto
Sinto a chuva lavando minha alma
Sinto o frio entrando pelos ossos
Como uma coisa um troço
Não sei explicar
Nessas tardes molhadas de agosto
Sinto a chuva lavando minha alma
Sinto o frio entrando pelos ossos
Como uma coisa um troço
Não sei explicar
Lavei as mágoas nos pingos da chuva
E aquela velha dúvida de te encontrar
Tô molhado como um passarinho
Perdi o ninho já nem sei voar
Eu tô molhado
Pingando chovendo
Chovendo pingando
Pingando tão só
Tô molhado
Chovendo doendo
Doendo sangrando
Sangrando de fazer dó
Tô chuviscando estou chovendo
Estou sofrendo de fazer dó
Chuviscando estou chovendo
Estou sofrendo tô causando dó
Mês de agosto é mês de chuva
Mês de agosto lava a alma
Mês de agosto é mês de chuva
Mês de agosto é mês de chuva
Mês de agosto lava a alma
A mágoa a mágoa
Alceu Valença
sábado, 17 de janeiro de 2009
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
domingo, 11 de janeiro de 2009
Solstício

Lá.
De onde vim.
Assustado, cabelos desgrenhados, sujeira debaixo das unhas, odor de lixo nas roupas.
Lá. Onde?
Lá.
Do outro lado da praia, de onde vem o vento, soprando areia, criando e desencontrando dunas.
Quando perceberam minha presença se assustaram. A mocinha de cabelo Chanel, a primeira. Olho mau. Parece que a vi, resmungando, blasfemando, agourando, enquanto se afastava por trás dos outros, espanando com os pés a areia alva e fina.
Vi quando um acendeu um cigarro. A brasa inchando, como o peito de um sapo. Ou de alguém doente, quem sabe moribundo.
Vi quando a garrafa – já pela metade – passou de mão em mão, se demorando no colo do que portava um violão de doze cordas.
Meus lábios, então, em carne viva, meus dedos marcados pelo fogo.
Sei que viram meus olhos. E a piedade que tremelicava ali, fundo do poço. Quase clemência. Perdão de quê?
Tentei falar, mas só consegui emitir grunhidos. Até eu fiquei assustado ao me ouvir.
A areia espanada pelos pés da moça de Chanel.
Tocou com a ponta dos dedos, as unhas bem-feitas e pintadas de um esmalte rosado, uma correntinha de ouro. Nosso Senhor Crucificado na ponta, pingente.
A garrafa deu mais uma rodada.
O cigarro foi apagado. Uma esteira de fumaça partiu do rapaz que parecia liderar o bando. Bem apessoado, jaqueta jeans, boné virado pra trás.
Quem é você – ouvi a pergunta. Que provocou um alerta súbito dos demais, todos tensos, mas mais fortes e seguros pelo comando implícito do chefe.
A moça de Chanel deu de costas.
Meus joelhos tocaram o chão, minhas mãos pediram água. Tão cansado estava. À minha direita estourou uma onda, levantando uma nuvem fina de sal.
Os rapazes se aproximaram. As moças ficaram pra trás, um bando de gazelas assustadas. Em torno dela.
Daonde você apareceu – nova pergunta. Desta vez num tom raivoso, entre dentes.
Os sotaques eram fortes, arrastados. A miséria absoluta. A garrafa já vazia.
Um deles me empurrou, senti a areia fina de encontro ao peito, o outro apoiou o joelho ossudo contra minhas costelas, um terceiro quebrou a garrafa numa pedra próxima, enfiou o gargalho na altura dos rins.
Ela só olhava.
Por cima do ombro.
quinta-feira, 8 de janeiro de 2009
Chucho
Discover Chucho Valdes!
Pra ouvir
fim de tarde
uísque e gelo
ao lado
Ou
vinho e balde de gelo
sempre ao lado
de alguém, claro
terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Cartola
Evite meu amor
quinta-feira, 1 de janeiro de 2009
quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
último post do ano
Eu tinha começado a escrever umas divagações com medo possivelmente de parecer objetivo demais triste demais pessimista demais. Um ano se passou desde a última véspera de ano novo em que estivemos metidos, todos nós, homens e mulheres aí pela casa dos enta, quase todos com o mesmo padrão de vida, o que inclui problemas, traumas, inquietações. Quase todos ou todos metidos em réveillons diferentes mas que seguiam o mesmo padrão de fogos de artifício, espumantes estourando rolhas, augúrios de sei-lá-o-quê. Eu devo ainda acrescentar antes de seguir adiante: véspera de ano novo em que estivemos metidos como se metidos estivéssemos numa briga sem rivais, sem contendores, sem sangue, suor, lágrimas. Eu tive que me forçar a ser menos metafórico menos suposta e pretensamente poético menos surrealista incolor. Não sou definitivamente um cara que usa sapatos bicolores. Não sou definitivamente um cara que usa sapatos. Essa foi, aliás, uma das mudanças não programadas, não elencadas em rol, lista de coisas a fazer no ano novo: bem antes de dezembro estender seus cordões coloridos e seus papais noéis encarnados sobre nossas cabecinhas infantis eu já tinha quebrado um padrão assumido no ano anterior – de usar apenas sandálias, fosse aonde fosse, na companhia de qual lobo ou hiena ou pantera que me ladeasse, em mesa de trabalho, de bar, ou de sarjeta. Ali pelo décimo mês do ano, pois, eu passei a usar meias e a cobri-las com sapatos, um tênis de longos cadarços e aspecto rústico, um social-envernizado que calcei na formatura da minha filha. Ganhei um terceiro de presente, o que significa que vocês me verão decididamente bem posto sobre a terra neste dois mil e nove. (E aqui abro e escavo parêntesis para comentar que, historicamente, este ano que se encerra velho, hoje, pode ser resumido numa imagem sem imagens – a do jornalista oriental rebolando seus sapatos, um após o outro, contra o suprassumo do mundo ocidental, o senhor George Dábliu.) Posso dizer, então, que os meus já os tinha atirado mais um ano atrás – contra a humanidade? Posso dizer, então, que capitulei, e voltei atrás, sobre meus passos, antes desnudos, agora cobertos pelo couro tratado e costurado da vergonha e da seriedade? Ainda ontem, véspera da véspera, tentei descolar um celular novo, legalmente, esclareço, ainda não roubei nenhum aparelho eletrônico (pura falta e senso de oportunidade – houve um tempo em que andei afanando livros em supermercados). Pois, prossigo, tateando, tropeçando nas letras e nas vírgulas, fui à cata de um novo celular e o consultor da companhia ao olhar a camiseta comentou: é impossível não cantarolar a música. Eu vestia uma camiseta com uns versos dos Beatles – she loves you yeah yeah yeah – explico. Em letras garrafais, não neste ridículo minúsculas-minúsculas anterior. Daí. Daí que me lembrei que foi com essa camiseta que cruzei o tempo regulamentar que separou dois mil e sete de dois mil e oito, trezentos e sessenta e cinco dias atrás. Noite tristonha. De luzes baixas. De taças sem repique. Sem tinir cristal a não ser timidamente. O primeiro dia do ano eu passei (nós passamos) em ambiente hospitalar. Uma grande enfermaria a céu aberto em que vivemos. Manhã, tarde, às vezes noite. Depois, uma enorme unidade de tratamento intensivo. Parece que tanto tempo já passou, bem mais que um mísero ano. Este, que dividi em peças de vestuário – uma camiseta de algodão, uns sapatos de couro, curvim. Como princípio, e fim. No meio, no meio, arriscaria uma lista sem ordem prévia, sem mergulho longo que o meu fôlego, neste instante, é curto – uma lista de coisas que fiz: - uma coluna escrita diariamente, e que veio substituir enquanto falta de tempo a minha disponibilidade para este blog; - uma campanha política derrotada, e que veio substituir por alguns meses a minha disponibilidade para a tal coluna; - um livro quase forçadamente publicado e do qual não dou muitas notícias porque o rebento já estava mais que grandinho ao nascer e dispensa a ajuda do pai desajeitado; - alguns bons novos amigos e o reforço de uns velhos. Não comprei a cama que queria e passei boa parte do ano dormindo no chão. E, quando dormi, dormi poucas horas ao dia. Comprei mais livros do que os li. Meu carro que me acompanhava há dez anos foi trocado – literalmente um branco por um preto. Fiz alguns meses de musculação. Continuei a fumar, às vezes desbragadamente. Fui ao pneumologista pela primeira vez, sem grandes prejuízos para o meu indeciso futuro. Bebi muito, bebi pouco, nas duas situações às vezes em excesso. Me senti livre, me fiz sentir-me livre. Estive ao ponto de enlouquecer (houve um dia que sim). Vi poucas vezes a lua cheia. Poucas alvoradas, alguns crepúsculos. Quase não me banhei no Atlântico. Estive mais fechado, em liberdade aprisionada. E para você que me lê, que me aparece aqui, vez em quando ou sempre, meu desejo que os próximos dias, meses, ano, sejam melhores – melhores de quê? Não sei, mas que sejam melhores, definitivamente melhores. Feliz 2009.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
Uma crônica de hoje, uma música de ontem
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Amazing Natal
Me desculpem, mas este Natal nem Natal parece.
Eu sei, eu sei. As luzes coloridas continuam balançando nas árvores, noite ou madrugada adentro, o vento passeando ondas luminosas entre os galhos e as folhas.
Eu sei, eu sei. Nos corredores dos shoppings, as sacolas seguem, ondulando pra lá e pra cá, pra frente e pra trás das pernas dos passantes, pendulando desejos insaciáveis, e muitas vezes inconciliáveis, entre almas e corpos. Ou entre os corpos e os bolsos que os vestem.
Eu sei – eu ainda sei. Seus filhos já escreveram para o Papai Noel no Pólo Norte (e alguns já trocaram os hemisférios e garrancharam um “Pólo Sul” no dorso do envelope), pedindo a boneca, o trenzinho, o carrinho de rolimã.
Ah, eu já não sei. Não. Aqueles eram outros meninos, de outros tempos e lugares-comuns, quando havia ainda carrinho de rolimã, trenzinho e boneca.
É certo que as bonecas ainda resistem – mas como evoluíram, em todos os sentidos: as meninas de hoje, por exemplo, querem a boneca Ananda, aliás Amazing Ananda, ou seja, Ananda “Maravilhosa”, setecentos reais a unidade (R$ 699,99, pra ser exato), acompanhada dos seguintes acessórios: “um lindo vestido e sapatos, camisola, prato de espaguete, macarrão e cereal, todos com um lugarzinho para encaixar a colher, caixa de suco, biscoito, tortinha, pizza, escova de dentes, escova de cabelo e peniquinho.”
Bueno, depois de menu tão farto, não poderia faltar o peniquinho.
A descrição do brinquedo segue, detalhada, acompanhada de instruções e conselhos para o uso: “Nenhuma outra boneca é capaz de interagir tanto quanto Ananda. Ela reconhece a voz de sua ‘mãe’, envolvendo-a na brincadeira de forma inovadora e divertida! Ela ri, fala, chora, brinca e pede abracinhos. É uma brincadeira de mamãe e filhinha que você nunca viu! Ela reconhece a voz da ‘mamãe’!”
Uau! O “monstrinho” cibernético não parece sua própria filha? Ou nós mesmos? Afinal, rir, falar, chorar, brincar e clamar por abraços não é nossa lida diária?
Deixando a Amazing Ananda de lado – ou melhor: dormindo um soninho sossegado, um ronquinho quase inaudível acompanhando o inflar e desinflar do peito –, por que o sobrescrito continua achando que esse Natal nem Natal parece?
Não sei. Falta eletricidade no ar. Falta alegria, mesmo aquela travestida em consumismo desenfreado. Será a crise mundial espraiando seus tentáculos. Será aquele verso final, frase-síntese de Machado de Assis, tão antiga, sempre atual: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”
*
SONETO
Na íntegra, o soneto machadiano: Um homem, – era aquela noite amiga,/ Noite cristã, berço no Nazareno, –/ Ao relembrar os dias de pequeno,/ E a viva dança, e a lépida cantiga,// Quis transportar ao verso doce e ameno/ As sensações da sua idade antiga,/ Naquela mesma velha noite amiga,/ Noite cristã, berço do Nazareno.// Escolheu o soneto... A folha branca/ Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,/ A pena não acode ao gesto seu.// E, em vão lutando contra o metro adverso,/ Só lhe saiu este pequeno verso:/ "Mudaria o Natal ou mudei eu?"
MAIS DO MESMO
Ou seja, depois de tal soneto, qualquer crônica sobre o Natal torna-se inútil e redundante – e haja perturbar o velho bruxo na sua tumba, citando sua célebre questão.
NHEN
Mas outros poetas também merecer ser perturbados em épocas natalinas, todos batendo na mesma tecla com outros versos – Fernando Pessoa: Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade/ Nem veio, nem se foi: o Erro mudou./ Temos agora outra Eternidade,/ E era sempre melhor o que passou.
-NHEN-
O velho Drummond: Menino, peço-te a graça/ de não fazer mais poema/ de Natal./ Uns dois ou três, inda passa.../ Industrializar o tema,/ eis o mal.
-NHÉM
Nei Leandro (de Castro), por tabela e fugindo do nhenhenhém e cutucando a ferida: As meninas da Rua 25 de Dezembro,/ expostas ao odor e à fúria da maresia,/ expõem seus corpos em plantão permanente./ Não querem piedade. Querem foda./ Querem vinte, trinta dinheiros,/ em troca do corpo infantil que a maresia/ está corroendo até a morte prematura.
Lembrai-vos das meninas da 25 de Dezembro quando quebrarem as castanhas e erguerem as taças.
ZUNZUNZUM
Intervalo para notícias da Funcarte: além de Bob Pai e Bob Filho, aka Carlos e Alex de Souza, há um terceiro nome cotado para a Brouhaha: Hayssa Pacheco, do DN, o que seguiria a estratégia instaurada por Dácio Galvão de “um pé lá, outro cá”.
FINAL
Por derradeiro, mas nem por isso menos importante, me aproprio do “Poema para o Natal”, de Bosco Lopes, para seguir retribuindo, a todos, os votos que por aqui chegaram:
AMIGO, SOMENTE O FINAL DO POEMA/ COLORIDO ESTRELADO/ MANEIRA ÚNICA DE LHE DIZER/ FELIZ NATAL.
“Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam.”
São João
O evangelho segundo João
VERSO
“Fui ser feliz.”
Lisbeth Lima
“The end”
sábado, 20 de dezembro de 2008
VERSO
efêmero é o amor sem corpo.
Napoleão de Paiva Souza, amor veneris in Apenas chegaram, Alexandria: Barriguda, 1999
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Trastevere, Rome, 5:15 a. M.
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[Guido Crepax, Acqua Alta – com intervenção besta de midc]
foi então ontem que ele teve notícias dela, um muezim louco no passeio de Trastevere, canteiro central entre as luzes vermelhas dos cadillacs, a barba longa e negra e negra e longa, a mão elevada ao alto, abençoada e o dedo em riste, foi ele, ele quem falou da mulher estrangeira, descrevendo como em transe, com detalhes, em detalhes, cada fio rubro do seu cabelo à altura dos ombros, onde um dia, houve, sim, um dia, descansou sua mão enquanto alimentavam os patos no lago do parque sul, ele falou pro outro, seu dedo curvo apontando o zênite, os carros passando rasteiros ao longo de suas pantalonas azul-cobalto, esperança e glória, glória e liberdade, salvação e redenção, tanto havia por fazer que ao fim e ao cabo vocês nada fizeram, ou se fizeram foi muito pouco, um filho cego, outro surdo e retardado, um terceiro, uma menina, a mais bela de todos, porque azul-turmalina nos olhos, dentes brancos e o ursinho marrom de pelúcia a tiracolo, a vitrola zunzunando, tocando um Talking Heads de velha figura, era então inverno entre as margens do Tevere, um pouco de neve na ilha, um pouco de óleo nos dedos para abençoar o recém-nato, a menina, a terceira a nascer, o cordão cortado e ressecado, Massimo, sempre Massimo, a percorrer as ruas com sua Vespa branco-encardida, e ele, a assoprar as mãos buscando calor e fuga do frio que rondava as orelhas, ele sempre dizia para ela que tinha as orelhas frias, mas o coração quente e pulsante no lado esquerdo do peito, dizia sempre da vontade de partir, uma vez Málaga, outra Cabo Verde, porque ilha, porque arquipélago, porque corrente atlântica, foi quando subiram ao apartamento, o carrossel já com as luzes apagadas, subiram e não encontraram alguma resistência na porta de ferro batido, na circunferência do cadeado a sete chaves, na trava de segurança, abriram a bendita porta, arrastaram o cadáver pelo corredor, deixando as luzes acesas, as janelas abertas, veio o vento, e quando vinha o vento, àquela época, trazia odores do cemitério do Verano, ao fim e ao cabo, pouca coisa teve ele a dizer para ela, quando ela, sempre ela, decidiu embarcar naquele avião rumo às Baleares, o muezim, repito, insisto, não era da mesma classe dos que levaram Alfredo embora, derramando fogo, primeiro gasolina, depois querosene, sobre o amontoado de mapas e projetos e planos e figurações da nave central da igreja, sarça ardente, então, quando ele descobriu que era você quem enviava as cartas, que havia pagado o aluguel do quarto central, número onze, onze, anote aí, porque necessário, talvez, comparecer e enviar relatório devidamente autorizado e autenticado em cartório, enfim, quando ele descobriu que era você, já era tarde, confortavelmente tarde, ele evitou fazer qualquer tipo de acusação, optou pelo silêncio e pelo silêncio sucumbiu, tão triste como tristes foram os dias de sua vida.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
A última flor de laço
Olavo Bilac me escreveu. Postou um comentário aí abaixo. O décimo-primeiro, como uma bonus track excedendo os dez mandamentos. Chateou-se com as declarações de uma – aparentemente – estrangeira. Afirmou que os comentários estão parecendo uma “troca de afagos virtuais” – e o que, segundo o poeta, seria pior: “em vários idiomas”. Depois, diz que me acho e faço estilo latin lover.
“Mas o fã-clube anda exagerando”, continua, “este post é do dia 10 e ainda rende comments”.
Por fim, se lamenta: “Ah, se eu tivesse um fã-clube desses.”
Meu bilaquinho de meia-tigela: liberei os comentários pra não ter que ficar filtrando nada (inclusive o seu, que assina com pseudônimo ou é filho natural de algum parnasiano atrasado). Como este blog não é bem uma casa-de-mãe-joana, achei mais simples, especialmente pra mim mesmo, pra não ter que ficar me preocupando em não deixar nenhum comentário no atraso do meu próprio ritmo em checar emails.
Não há troca de afagos virtuais. Uma certa senhora anda treinando seu portunhol por aqui. Acha que me conhece doutra encarnação, inclusive em outras praias longe desta Ciudad de los reyes e reinas.
Não sou eu, claro, o mancebo a quem ela se dirige tão impetuosamente.
Mas fazer o quê?
Não vou censurar ninguém, a menos que use o espaço para execrar outro alguém que não eu mesmo.
Quanto ao fã-clube, crie o seu, ouça estrelas.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Sumiu sem deixar vestígio

[Olga Baclanova, in A dangerous woman, 1929]
Sumiu sem deixar vestígio, a moça. Não foi encanto, tampouco desencanto houve. Escadaria de mármore, sapatinho de cristal. Houve uma noite, perto da meia-noite, em que ela ligou, a voz rouca ao telephon, tecendo redes, armadilhas pra peixes estrelas hipocampos.
Me enredei. Enrodilhado até o pescoço. Ainda posso exibir as marcas, arrumei emprego num Luna Park, entro antes da mulher-macaco. Monga. Foi ela quem de mim cuidou. Methiolate. Ardia, ardia a tarde com mil sóis, mil raios, mil folhas de outono, mil peixes sem ar.
Ao sumir, sumimos nós, que no deserto andávamos. Sumiu o lago as palmeiras o cesto de tâmaras. Sumiu nossa sombra, enrodilhada na areia quente, pastorada pelos escorpiões e por homens-azuis. Vez por outra a procuro, não ouço mais a sua voz.
Não existe vida após o silêncio.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
Níu-láife | 10 fins – segundo T. S. Eliot
I
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um gemido
[Os homens ocos]
II
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
[Burnt Norton]
III
As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo; mas só o que vive
Pode morrer. As palavras, após a fala, alcançam
O silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma.
As palavras ou a música podem alcançar
O repouso, como um vaso chinês que ainda se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota perdura,
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio sempre estiveram lá
Antes do princípio e depois do fim.
[Burnt Norton]
IV
Em meu princípio está meu fim.
[East Coker]
V
Não era (para recomeçar) o que antecipadamente se aguardava.
[East Coker]
VI
O conhecimento impõe um modelo, e falsifica,
Porque o modelo é vário para cada instante,
E cada instante uma nova e penosa
Avaliação de tudo quanto fomos. Apenas não nos decepcionaremos
Com tudo o que, decepcionando, já não causa mais dano.
[East Coker]
VII
Em meu fim está meu princípio.
[East Coker]
VIII
Onde o fim para isso tudo, para o surdo lamento,
Para a silente agonia das flores outonais
Que as pétalas gotejam e imóveis permanecem;
Onde fim que ponha termo ao torvelinho do naufrágio,
A súplica do osso nas areias, à insuplicável
Súplica para a calamitosa anunciação?
[The Dry Salvages]
XIX
Fim é o lugar de onde partimos.
[Little Gidding]
X
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegar ao ponto de partida
[Little Gidding]
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
rubi

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
síndrome de abstinência | sétimo dia | as nuvens coloridas pelo sol poente
“Pois quem pode calcular o impacto e a repercussão de um incidente qualquer na vida de um sonhador?”
Charles Baudelaire > Torturas do ópio > O ópio > Os paraísos artificiais – Porto Alegre: L&PM Editores, Primavera de 1986
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
síndrome de abstinência | dia 6 | o esplendor inquietante
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“Por que não diminuir a dose de uma gota por dia, ou atenuar seu poder adicionando água? Calculou que seriam necessários vários anos para obter por esse meio uma vitória incerta. Aliás, todos os amadores de ópio sabem que, antes que se atinja um certo grau, sempre se pode reduzir a dose sem dificuldades, e até mesmo com prazer, mas que, uma vez ultrapassada essa dose, toda redução causa dores intensas.”
Charles Baudelaire > Torturas do ópio > O ópio > Os paraísos artificiais – Porto Alegre: L&PM Editores, Primavera de 1986
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
Alto-falante
Pra Claudinha, que achou triste e desnecessário o último vídeo:
Discover Talking Heads!
Ouça bem alto. Shake-it-up dream!
síndrome de abstinência | dia 5 | a impotência para escapar ao suplício
“Assim, a coisa está clara; aliás, ele nos suplica que acreditemos nele: quando começou a tomar ópio todos os dias, havia uma urgência, uma necessidade, uma fatalidade; viver de outra maneira era então impossível.”
Charles Baudelaire > Torturas do ópio > O ópio > Os paraísos artificiais – Porto Alegre: L&PM Editores, Primavera de 1986
terça-feira, 25 de novembro de 2008
síndrome de abstinência | dia 4 | a obscuridade do terremoto e do eclipse
“E depois, serão assim tão numerosos, os bravos que sabem afrontar pacientemente, com uma energia renovada de minuto em minuto, a dor, a tortura, sempre presente, que não se cansa, em vista de um benefício vago e longínquo?”
Charles Baudelaire > Torturas do ópio > O ópio > Os paraísos artificiais – Porto Alegre: L&PM Editores, Primavera de 1986
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
síndrome de abstinência | dia 3 | o inverno enfurecendo-se na montanha
“Uma bela habitação não torna o inverno mais poético, e o inverno não aumenta a poesia da habitação?”
Charles Baudelaire > Torturas do ópio > O ópio > Os paraísos artificiais – Porto Alegre: L&PM Editores, Primavera de 1986
domingo, 23 de novembro de 2008
Proficiência dos domingos
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sexta-feira, 21 de novembro de 2008
anos a fio

anos a fio
ele tece flores para mim
divide meu corpo em partes
Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
eu aparo suas bordas seu rabo seus chifres
O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado
O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre
O teu demônio vai embora hoje
ou fujo dentro dele a galope
eu vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda
Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma
desde o início

[Ouka Lele, Autorretrato (herida como la niebla por el sol), 1987]
O amor chega tarde
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos
[Iracema Macedo, DANDARA, in Lance de dardos. Rio de Janeiro: Edições Estúdio 53, 2000]
thanx
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
Femme fatale [191108]
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Foi uma de minhas paixões juvenis. E, como toda paixão juvenil, obviamente não correspondida. Independente da distância e da contemporaneidade.
Aliás, volto atrás: paixão amplamente correspondida, que paixão nem sempre pressupõe resposta. E Nico correspondia, creio eu, aos sonhos, desejos, devaneios, de um porrilhão de gente espalhada pelo mundo – a começar pela sua imagem, exótica, misteriosa, de uma beleza, pra dizer o mínimo, “diferente”.
A carreira de modelo foi o início, ainda na década de 50, posando para fotos de moda e para as capas de revistas européias – Jardin des Modes, Jours de France, Elle, Der Stern – e americanas – Esquire –, mais uma dúzia de capas de LPs (entre elas, “Moon beams”, do Bill Evans Trio).
Em 1959, Federico Fellini a encontra flanando por Roma e a convida para o mais-que-perfeito retrato da vida boêmia e bon-vivant de então, supra-sumo da decadência com muita elegância: “A doce vida”.
Papel secundário, mas, num mutirão de mulheres bonitas – que incluía Anouk Aimée, Anita Ekberg, Laura Betti, Yvonne Forneaux –, nenhum papel pode ser secundário.
Na edição brasileira do livro, seu nome está lá, como Nico Otzak, e sua personagem, sem nome, descrita apenas como “Garota sofisticada da Via Veneto”.
Todo mundo conhece a história de “A doce vida”. Se não conhece, deveria conhecer. A começar pela seqüência inicial, um helicóptero carregando uma estátua de Jesus Cristo e sobrevoando os telhados de Roma e do Vaticano, e, claro, a clássica cena da Fontana di Trevi, com Marcello Mastroianni e Anita Ekberg.
Mas, já que eu não estou aqui para trair Nico com Anita, vamos voltar ao que interessa: dos braços de Fellini, Nico cai nos braços de Andy Warhol e comparece, com caras, bocas e tudo mais de direito na composição do Velvet Underground, cult entre os cults, ao lado de Lou Reed e John Cale.
Isso, em New York City – mas antes a moça já percorria a Swingin’ London (onde se relacionou com Brian Jones, dos Stones, e Jimmy Page, então nos Yardbirds) e Paris (onde teve um filho com Alain Delon, e conheceu Bob Dylan, que lhe dedicou uma música no álbum “Blonde on blonde”).
Dona de uma voz grave, quase máscula, Nico cantava em inglês com um forte sotaque alemão. Depois do Velvet, gravou uma dezena de discos, onde abusava dos teclados, mas sempre de um modo experimental. Tenho um LP duplo pra lá de precioso: “Behind the iron curtain” (com uma abertura gutural de “All saints night from a polish motorway” de arrepiar, mais as versões de “The end”, do Doors, “Femme fatale”, do Velvet e a atemporal “My funny Valentine”).
Gravado ao vivo, o duplo vinil foi comprado pelo sobrescrito na Espanha, poucos meses antes de saber a notícia: passeando de bicicleta em Ibiza, onde morava, Nico morreu. Tão perto, tão longe.
Discover Nico!
“As batidas do coração em nossos peitos – ardentes e ávidos de nudez – não sossegavam.”
Bataille
História do olho
VERSO
“Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.”
Hilda Hilst
“Alcoólicas”
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
Coisa feia é ser lobista [131108]

Ainda mais em causa própria.
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
domingo, 9 de novembro de 2008
sábado, 8 de novembro de 2008
índigo

sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Mormaço


Me deixou esperando na soleira. Sem sombra. Pedra brilhante. Toquei a campainha três vezes, feito o galo de Pedro, noite do suplício. Fingiu que não escutou. A campainha está com problemas, ah, é, rapariga. Problemas vai ter você agora, a partir de hoje. Inda pensei em ligar, mas não liguei. Antes da quarta, a empregada surgiu no fundo do jardim, tava aguando as plantas. A campainha está com problemas, repetiu, desculpa. Tem de quê, não. Faço riso sério, abro o jornal do dia, quase intacto. Cruzo as pernas. Aprumo os óculos no meio da venta. Cara de mau. Celular desligado. Quero ninguém perturbando nosso encontro. Me mostrará hoje a caixinha chinesa? Sei. Desconfio, não. Chega minuto depois. Trouxe a chave, molhe de. Se atrapalha diante da bolsa aberta, couro cru e macio. Pintou os cabelos. Graúna. Passou por mim, e, boa tarde. Boa. Voltou, mais um minuto. Fechei o jornal, desdobrei as pernas, me indicou a porta aberta. Eu falei, eu tinha que falar, puta sol lá fora. Não quero trazê-lo pra cá dentro. O que eu quero dizer com isso, o que significa exatamente isso – assim, que não quero ficar sob sol. O ar condicionado no mínimo, deitei na cama, ela, ao lado. O quimono japonês fez a clássica dobra, entreviu o seio, a curva do. Um tufo de pelos caiu pela testa, espanou o nariz, ela pôs o dedinho na boca, outro percorreu meu peito. A caixinha, quase dizia, não disse. Que é isso do sol, perguntou. Muito sol, falei. Dói, ficar lá com os outros, todos se equilibrando no fio de poste derramado no chão. Me diz, quer dizer que está prestes a explodir, não falei isso, nada de combustão. Ela se levanta, some pelo quarto, sua voz caminha em pontos distantes, vejo apenas a estante de livros, lombadas em horizontes decrescentes. Agora, a voz às minhas costas, no alto da cabeça, os dedos percorrem os fios de cabelo, um após o outro, como a tecer coroas. Estou aborrecido comigo mesmo, falei, mais pensando na caixinha chinesa. Dessa vez foram as mãos a massagear o corpo inerte de cima abaixo, o quimono abrindo-se como leque, um calor de demônios derramando-se, uma boca tão fria, tão úmida, vulva fria e úmida e abissal por breves instantes. Não. Não quero que me toque, falou, levando o dedo ao lábio, como se uma coisa significasse silêncio e não outra. Planejamos tantas coisas, eu disse, vem sempre algo e cruza o caminho e nos desvia a rota. Como um gato, um cão, que atravessasse a frente do automóvel, perguntou, isso, isso, respondi. Um cão. Um gato. É um breve desvio de rota, altercação de bússola, mas o destino, mesmo vizinho, é tão distante. Gesticulei. Em algum ponto da conversa, não lembro o que dizia, gesticulei, como possuído. Boca seca, tosse miúda, uma preguiça mole arrodeando os músculos. Agora era o quimono que desfalecia no soalho de madeira, palco de tacos desfilando em tardes de verão. Hora líquida, de suores, salivas, espermas, fluidos vaginais. Cadê a caixinha, a pergunta só na memória embotada, sem eco o silêncio, gemido abafado. A boca que sorria emergindo na sombra do quarto. Dorme um pouco, sussurrou, ainda resta um quarto de hora. Então, sonhei. Que a outra moça chorava, retirando as bagagens do automóvel estacionado. Nem me perguntou como eu estava, como eu senti o suceder de mortes, ela disse, entre choros contidos e corpo em defesa. Com fúria a minha resposta, não, não perguntei, nem você, da semana passada, dos dias no deserto. Ela gemeu, e voltei a colocar a bagagem no interior da máquina. Depois, nos alpendres abertos, vento percorrendo tendas, refrigerando a tarde, ela se colocou bem próxima aos animais, todos doentes, lázaros em chamas calmas, alheia, como sempre, a tudo e em especial a mim. Tinha nas mãos um rato. De pêlo hirto e nariz cômico, rabo descarnado, ele abriu a boca e lhe engoliu quase toda a face, como em beijo canibalesco. E ela se entregou à carícia medonha, sem pudor, toda aberta e entregue a uma felicidade exótica, mundo vasto onde só cabia ela e seus temores, cada um deles domesticado, cada um deles prestes a morrer eternamente. E eu me virei e fui embora e deixei o alpendre e tendas ao vento pra trás, até que fosse apenas um ponto, minúsculo ponto no deserto, até que despertei, outra voz me chamando, seu tempo acabou, é hora de ir embora. Então, me vesti, deixei o dinheiro amassado sobre a mesa, globo de vidro, apertei sua mão. No salotinho escuro, percebi a sombra de outro homem na poltrona estreita, apenas as mãos, os sapatos de verniz escuro e lustroso, um anel vermelho no dedo, lenço branco ao peito magro. Seria ele, não eu, a assistir a abertura da caixa. Quanto a mim, restava a tarde com mil sóis e o hálito quente do exílio.
