quinta-feira, 12 de junho de 2008

ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS | Happy together




ELA SABIA QUE ELE NÃO ERA CONFIÁVEL.
Podem chamar ciúme, podem ajuntar um doentio na bagagem da ênfase, podem esculhambar à vontade. E
la sabe.
Quando o conheceu, era apenas um menininho bobo, recém-descabaçado, incerto ainda em encontrar um modo claro de se comportar no mundo.
Ela não lembra quando – nem por que – mas um dia ele começou a ser importante pra ela. Tornou-se alguém em quem depositar atenção, carinho, e sexo.
Ela não costumava usava sutiã. Ele escorria suas mãos entre os botões que abriam-se como desabrochando. Com as palmas e as fissuras das palmas – a linha da vida, a linha da cabeça, a linha do coração – abocanhava o volume pleno dos seios. Só muito depois ela descobriria ser aquilo tudo incomparável.
No começo ela apenas se deixava acariciar. Uma entrega anônima. Não importava quem, importava o que faziam com ela. A maioria não sabia fazer.
Logo começou a sentir dolorosamente a ausência daquelas mãos, da boca, dele inteirinho à sua frente, para seu uso e abuso. Para que dela fizesse uso, e abuso.
Ela então percebeu que o que ele significava pra ela poderia facilmente significar pra outras, também.
Para ela não tinha aquele papo do “monstro verde do ciúme”, de tapete de unhas, de vidros triturados misturados à fome azul.
Tudo que ela fazia ou conseguia fazer era jogar-se sob o chuveiro, vestida como estava, para aplacar um calorão que viva a consumia.
Uma, duas, três, quatro, mil vezes ele a deixou. Sem explicação. Ou com uma explicação implacável.
Uma duas três quatro mil vezes ela o deixou.
Sendo ela a explicação era a mesma:
– Quero viver minha vida.
E ela realmente queria, queria também outros homens, embora quando com eles, era nele em quem pensava, era dele que sentia falta.
Então chegou o dia. Quando a palavra dele pareceu ser a última. Quando ele pouco realmente parecia importar-se.
Ela saiu sozinha. Esteve em todos os lugares que alguém como ela poderia estar. Como ele.
Ela bebeu e sorriu e trocou palavras e se fez de bonita e não se fez de rogada e jogou o longo cabelo para lá e para cá e arregaçou a boca pintada de batom e mostrou os dentes e passou a língua pelo céu da boca com força e deu de ombros. E procurou-o.
Ela passou a noite procurando-o. E na medida em que não o encontrava ficava cada vez menos risonha, menos bêbada, mais apreensiva.
Em todos os bares onde eles costumavam ir, foi.
Correu a cidade de cima abaixo, de norte a sul. De sul a norte. Das duas uma: ou ele estava em casa dormindo ou boa coisa não estava fazendo.
Quando a primeira embriaguez sumiu, ela voltou a beber, tanto até tornar-se romântica. E, sendo romântica, caiu na ingenuidade dos tolos, um poço raso e escuro onde boiavam outras mulheres como ela. Tinha um bocado de gente conhecida ali. Algumas ainda tentavam escalar a parede arredondada e lisa. Outras jaziam, de bruços, de costas. Aquela ali tinha já o corpo inchado e olheiras roxas.
Comprou uma garrafa de vinho, teve o cuidado de pegar o saca-rolha em casa, retocou o batom, deu uma ajeitada nos cabelos, voltou a arrumá-los melhor, olhou-se no espelho, reconheceu o orgulho, não viu nenhuma sombra de indecisão. Sem ela foi até a casa dele. Do outro lado da cidade.
A manhã se anunciava em nuvens frias e coloridas.
Os pardais já preparavam bico e briga.
Ela tocou a campainha.
Lá dentro da casa silenciosa a caixinha branco-gelo fez:
– Dííín, Dôôôn.
Viu o carro estacionado na garagem. Insistiu.
Quando ele saiu, ela ainda teve dúvidas. Ele sabia disfarçar.
Ele foi frio, sério, fingiu sono. Até que soube disfarçar bem.
Ela quase caiu na sua conversa encenada. Mas, não, não. Não ela: ela sabia. Ela farejou. No ar.
– Tem alguém aí?
Ele respondeu que não. Ele sabia fingir muito, muito bem.
Ela não precisou pôr-se nas pontas dos pés e tremelicar as narinas como um animalzinho assustado.
– Posso entrar?
Ele hesitou, não gaguejou, apenas balançou o corpo sutilmente para um lado e para o outro. O filho da mãe jogava muito bem.
Ela não esperou mais, afastou-o do seu caminho e foi entrando como se seus pés pisassem em brasas. Atravessou terraço, hall, sala, não percebeu nada estranho, continuou pelo corredor, as pernas cada vez mais pesadas, desejou que não tivesse fim, o corredor que parecia mesmo infinito, desejou, ardeu, rogou aos céus que nunca chegasse ao quarto iluminado.
Mas ela chegou ao quarto iluminado.
Primeiro viu os pés. Tudo dobrado, pés, pernas, coxas, bunda. Ainda teve tempo de sentir uma inveja saudável, ela tinha de reconhecer, quase dava os parabéns à moça, era preciso ser justa na vida.
De algum ponto minúsculo do estômago partiu uma fagulha que foi subindo pelas paredes das vísceras, primeiro num fogaréu intenso, depois numa erupção de lava viva. Dizer que isso lhe queimou os olhos seria redundante.
Por isso não lembra como voltou sobre os próprios passos, como se tivesse deixado pegadas visíveis sobre o piso, não lembra nem como passou por ele.
Lembra apenas da garrafa de vinho quebrada na calçada, da mancha escura derramada que bem poderia ser sangue, mas que não era sangue.
Isso antes de implorar ao safado que deixasse a moça da bunda saudável ir embora e ficasse com ela. Só com ela.

ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS | Adivinhe quem vem para jantar




Então ela me convida para jantar.

Não. Não fazemos amor.

Não acendemos velas.

Não nos vestimos a rigor, com o rigor dos amantes em deliciosa expectativa.

Eu ajudo a levar os pratos. Eu abro a gaveta da cozinha com a intimidade que me foi concedida outrora.

Nos sentamos quase lado a lado. Porque frente a frente nos olharíamos nos olhos. Porque lado a lado nos tocaríamos as mãos.

Não é preciso deixar deslizar o guardanapo de linho bordado ao chão.

Não é preciso baixar as luzes.

Aumentar a música.

Alimentar o cão e o pássaro trancados na área de serviço.

Somos apenas amigos.

E como bons amigos nos despedimos.

Prometendo um reencontro.

Da próxima, como a sobremesa, juro.

terça-feira, 10 de junho de 2008

UM DISCO: Watch, Manfred Mann’s Earth Band. 1978, Bronze Records Ltd.



Primeiro, a capa, claro.

A imagem do homem de paletó amarelo decolando numa pista de aeroporto contra um céu nublado é, para dizer o mínimo, inesquecível.

Depois, o conteúdo. O que se ouve.

Sete músicas, quatro pro lado A, três pro lado B, e um buraco no meio – ouvir Watch faz mais sentido em vinil.

É óbvio que o hit tá lá – Davy’s On The Road Again, primeira faixa do lado B – mas o todo é bem homogêneo e vale aquela expressão de matemática banal, “maior que a soma das partes”; todas as faixas têm um quê de classicismo, como se fizessem parte de um best of de B-sides e não de um LP da discografia oficial (gravado em 77 e lançado no ano seguinte, Watch é o antepenúltimo da Earth Band).

O lado A é mais prog. O B mais rock. Ambos têm o mérito de soar fácil, como uma banda um pouquinho mais pretensiosa ensaiando no quarto dos pais. O vocal de Chris Hamlet Thompson impera, ao lado dos synths do próprio Manfred e das guitarras de Dave Flett.

Se existe um equivalente sonoro para a expressão déja vu é este – coincidentemente intitulado – Watch. Se no disco anterior – opção preferencial dos fãs mais empedernidos – o sul-africano Mann e sua banda proclamavam o Roaring Silence, o som e a fúria, a partir da capa de uma orelha munida de boca e dentes, em Watch eles parecem pedir para seu público que, sit down, relax, apenas assistam. E se deixem levar. Decolar, alçar vôo.

A verdade é que basta escutar uma primeira vez para ter a sensação de sempre ter ouvido essas melodias, os riffs, os solos. Não é amor, é simpatia à primeira audição.

Os fãs do Marillion de início de carreira vão ser obrigados a reconhecer que Fish e companhia beberam da fonte de Watch, que, como original, é muito mais cru (confira Circles, Martha’s Madman).

Os efeitos na voz de Chris Tompson por sua vez bebem na fonte do soul com destilados psicodélicos como aperitivo.

A banda da terra de Manfred nos leva de Chicago pra Califórnia num piscar de olhos, ou num deslizar da agulha. O baixo de Pat King dá fisgadas, a bateria de Chris Slade – básica, eficiente – faz o dever de casa direitinho, a guitarra de Flett abocanha a isca jogada pelos keyboards do Sr. Manfredo. Tudo é costurado com precisão hipnótica, e a haute coture atinge seu máximo em Chicago Institute, tão simplezinha, tão pegajosa nos ouvidos que dá gosto de ouvir e reouvir e ouvir de novo. Déjà vu. Déja ecute. Mas nem precisa. California, a faixa seguinte é sua extensão – natural, original e diferente.

Um disco que nos faz recordar a época em que vivíamos na Califórnia – com menos flores no cabelo e menos sol na cara – mesmo sem nunca ter estado lá.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Azul-grego



[Shakespeare em companhia: James & Sylvia – do sítio the modern word]

O bicho tá pegando lá pelas bandas do substantivo singular e plural de Tácito Costa: cada um que puxa o tijolão do Senhor James Joyce pra si.

Desse jeito, vão terminar rasgando o livro.

E Tácito Costa, com a paciência de um monge recolhido a um mosteiro medieval beneditino, ainda está na 350ª página. Por aí.

A edição original tinha 732 páginas – “e uma média de um a seis erros tipográficos por página, segundo a editora, a norte-americana Sylvia Woodbridge Beach.

No verão parisiense de 1920, Sylvia conheceu James, Beach conheceu Joyce – nada bíblico, enfim: “Apertamos as mãos; quer dizer, ele pôs sua mão mole e lânguida na minha patinha dura – se é que se pode chamar isso de um aperto de mãos.”

Pouco depois, a Shakespeare & Company, livraria de Beach, Sylvia, anunciava a publicação de Ulisses “na íntegra, tal como escrito”.

Não seria nada fácil.

A primeira dificuldade foi encontrar o papel certo e a cor certa, desejada por Joyce – azul-grego.
A segunda, uma boa datilógrafa: Joyce escreveu todo o Ulisses à mão. Só para o episódio de Circe, a feiticeira, foram necessárias mais de 10 – Beach: “A oitava, contou-me Joyce, ameaçara, em seu desespero, atirar-se da janela. Quanto à nona, tocara a sua campainha e, quando ele abriu a porta, atirou as páginas que estavam prontas no chão e saiu correndo pela rua, desaparecendo para sempre.”

A 10ª foi a irmã de Sylvia, Cyprian, que precisou viajar e abandonou a empreitada.

A 11ª foi uma amiga de Sylvia, Raymonde Linossier, que precisou desistir.

A 12ª, uma amiga de Raymonde, então, assumiu a máquina datilográfica, mas o seu marido, “após passar os olhos pelo texto, atirara-o ao fogo.”

Em 2 de fevereiro de 1922, Sylvia Beach entregava a James Joyce o primeiro exemplar de Ulisses. Era o 40ª aniversário do irlandês.

Oitenta e seis anos depois, na Cidade dos Reis, alguém começa a ler o livro e não pode nem achar o calhamaço chato. Tácito: “A perenidade de uma obra de arte depende de muitos fatores. E o fato dela estar inscrita no cânone e ter sobrevivido a milênios não impede que um ou outro leitor a ache chata. Isso não significa que ela não tem importância ou seja uma grande obra. Onde está escrito que todos temos de achar a mesma coisa sobre um determinado livro ou obra de arte? Eu não abro mão de ter minhas próprias opiniões, mesmo que elas contrariem seja quem for.”

Do lado de cá, eu nem tentei abrir o livro.

O que sei e contei aí em cima, apreendi de Shakespeare & Company: uma livraria na Paris do entre-guerras, de Sylvia Beach, tradução de Cristiana Serra, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004.

Comparado ao Ulisses, quase uma revista Caras, mas bem bom de ler.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A farra do boi

“No matadouro de João Câmara, assistimos às mortes mais brutais dos bois. O animal era puxado por uma corda por um adolescente, que lhe cobria os olhos com um pano e outro marretava a cabeça do animal, errando várias vezes, fazendo o animal gritar de dor.” – Relatório do Ministério do Trabalho denunciando trabalho infantil em matadouros do Rio Grande do Norte, hoje na Folha, para assinantes.


“Conduzida ao pátio, e não muito distante da porteira, um dos matadores dá-lhe com o olho do machado uma pancada violenta no encaixe da cabeça apanhando o cabelo louro, na expressão sertaneja. A rês cai incontinente sobre a cama de ramos verdes de antemão preparada. Era então sangrada com uma comprida e afiada faca de ponta na veia-mestra [...]. O sangue espirra e, pouco a pouco, a seringada vai diminuindo e também vão diminuindo os estrebuchamentos agoniados até que a vítima revira os olhos e morre. É este um drama muito triste e talvez mais triste ainda é assistir as lamentações desesperadas dos sobreviventes no lugar da matança. A rês que primeiro, e à distância, pressentir o cheiro do sangue derramado, aproxima-se entristecida. O passo é ainda vagaroso, mas à proporção que o a distância vai encurtando, começa a trotear em direção ao curral. O primeiro urro lamentoso ecoa nos ares para perder-se na distância das serras, cujo eco lhe aumenta a melancolia. Como por encanto surgem de toda parte outras reses que, inteiriçadas, as cabeças voltadas para um dos lados num esforço que lhes repuxa a parte lisa do queixo, começam o coro penoso. Os mugidos aumentam num crescendo mais e mais angustioso, a que não faltam nem mesmo as lágrimas como evidência de dor, saudade, amargura e revolta. No grupo, formado ao redor daquela sepultura, tem-se a impressão de que se interrogam diante do mistério do sangue derramado.” – Eloy de Souza em Memórias, Natal: Fundação José Augusto, 1975

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Rudy & Francis talking


– Os pecados mortais são sete.
– Mortais? Que quer dizer com mortais?
– Quero dizer diários. De todos os dias.
– Na minha opinião só há um pecado.
– Preconceito.
– Ah, claro. Preconceito. É.
– E inveja.
– Inveja. É, sim. É um deles.
– E luxúria.
– Luxúria, certo. Desse eu sempre gostei.
– Covardia.
– Não sei o que você quer dizer. Não conheço a palavra.
– Covardia.
– Não gosto da palavra covarde. Que foi que você disse a respeito de covarde?
– Covarde. O sujeito que se encolhe. Sabe o que é um covarde? O que foge.
– Não, essa palavra eu não conheço. Francis não é covarde. Luta com qualquer um. Escute, sabe do que eu gosto?
– De que é que você gosta?
– Honestidade.
– Esse é um deles.


[William Kennedy, Vernônia, tradução de Sonia Botelho, Rio: Francisco Alves, 1986]

terça-feira, 3 de junho de 2008

A última loja de discos [280408]



“Prostituta não poderia se apaixonar – mas, as coisas raras eu levo pra casa.” – quem fala é Antônio Carlos, há uns 15 anos proprietário da Discomania, vizinhanças do Beco da Lama, downtown potyguar. As “coisas raras”, a que se refere, são discos, discos de vinil.

É a última loja de discos da cidade, e, paradoxalmente, conseguiu sobreviveu até mesmo à Velvet, que comercializava quase que exclusivamente CDs e tinha um público bem mais jovial e antenado com os últimos lançamentos. Antônio Carlos também os vende, os disquinhos pequenos, em embalagem acrílica. Embora, discretamente os desdenhe, sutilmente os despreze. O compact-disc não é um inimigo a ser combatido – são os long-plays que precisam ser defendidos.

Seu discurso a favor do vinil e da própria atividade tem um viés político, quase de guerrilha, permeando um raciocínio objetivo: “Nosso negócio tem duas características – uma, comercial; a segunda, de prestação de serviços. Resistir à ofensiva do mercado fonográfico que impôs o CD e resgatar a boa música são os nossos objetivos.”

E o que Antônio Carlos entende por boa música? Principalmente a discografia das décadas de 70 e 60, incluindo aí a MPB, embora os discos da época não alcancem boa cotação – “o que eleva o preço de um LP antigo é a tiragem original: como nos anos 70 e 80 as tiragens acompanhavam a demanda alta, é fácil encontrar a discografia dessa época em qualquer sebo”, explica.

Diante da pergunta qual o disco mais caro que tem na loja, se atrapalha um pouco, até confessar que o bolachão não está exatamente na loja, mas em casa – é quando faz o paralelo com as putas apaixonadas, que beijam na boca e tudo mais: teoricamente o disco está à venda, mas o mantém na segurança do lar, para não cair em tentação. Não cita nomes, talvez com medo que o sobrescrito lance mão de uma oferta, mas revela um que, nunca, jamais, em tempo algum, venderia: o primeiro de Frank Zappa. Em resumo, em casa guarda cerca de 2,5 mil discos, dos quais mais da metade – 1,5 mil – é “inegociável”.

Desconversa, desconversa, e mostra alguns, disponíveis ao escambo por reais: o único disco da banda pernambucana Ave Sangria (R$ 100) e o “Sertania”, de Ernst Widmer e Elomar (R$ 150). Já passaram pelas suas mãos o primeiro de Roberto Carlos (R$ 2 mil), um Renato & seus Blue Caps (R$ 500) e o único LP do grupo carioca Módulo Mil (R$ 400). E, claro, o top dos tops das raridades: o “Paêbirú” de Lula Côrtes e Zé Ramalho – vendeu por R$ 600, ano passado, mas hoje é cotado em cerca de R$ 2 mil e há quem afirme ter sido vendido pelo dobro do preço. No Brasil ou no exterior.

Bruno, 17 anos, morador das Quintas, pega mais leve e é um exemplo mais próximo do dia-a-dia da Discomania: depois de horas fuçando nas prateleiras – o maior prazer para quem curte long-plays – leva pra casa o “Houses of the holy”, do Led Zeppelin. Por R$ 25. Diz que trocou um CD player por um toca-discos com um amigo. Tem MP3 mas segue, vez ou outra, comprando vinis – embora se considere, ele mesmo, uma rara exceção entre os amigos.

Antônio Carlos balança a cabeça: o dado contraria sua tese, a de que jovens como Bruno cada vez mais curtem as bolachas pretas, especialmente aquelas de grupos de rock progressivo e hard rock, de uma época em que não eram nem nascidos. Mas reconhece que há uma tendência geral à elitização e à maturidade, com significativa parte do público-consumidor formado por colecionadores.

As vendas também podem acompanhar a alta-estação, inclusive aquela tipicamente turística: “Há alguns anos, uma turma de japoneses fez um arrastão de [discos de] Bossa Nova na cidade: enchiam caixas e mais caixas, que eram despachadas de navio.”

Os altos e baixos do negócio não o desanimam – tem dois empregos públicos que garantem as vacas magras, e a Discomania, no final das contas, não lhe traz prejuízo, aliás, é um complemento na renda. Tampouco a internet o seduz. Chegou a vender alguns discos no mercado virtual, mas o que lhe interessa mesmo é a loja física, onde pode “bater papo, trocar idéias e negociar vinis”.

É realmente a última loja de discos em Natal, resquício indireto de uma época onde existiam lojas que vendiam unicamente discos. “Hoje você encontra uma seção de discos dentro de uma grande loja ou supermercado, mas não uma loja exclusiva.” É o próprio Antônio Carlos quem cita outros colecionadores, alguns que ainda vendem discos, mais nenhum com negócio físico: César “Pace”, “Black” Moraes, Régis “Hendrix”, Nilson “Eloy”. Os apelidos dispensam explicação. E Tony “Zappa”, adivinhem quem é? O próprio Antônio Carlos – que não vê a hora de aposentar-se para dedicar-se em tempo integral à loja.

Ivete, a esposa e sócia, diariamente na loja, ao ouvir – talvez pela centésima vez – o projeto, levanta uma sobrancelha, baixa os olhos, em silêncio. Uma sombra de dúvida parece passar pela sua cabeça.

Mas logo se vai. Já entendeu que o que move o marido não é apenas um negócio: é antes de tudo uma paixão.


PROSA
“Este não é um emprego para os selvagemente ambiciosos.”
Nick Hornby
Alta fidelidade
VERSO
“Apaches, punks, existencialistas, hippies, beatniks de todos os tempos
Uni-vos!”
Caetano Veloso
“Ele me deu um beijo na boca”

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Inventário


Como herança materna, me restou uma loucura seca, árida como paisagem vazia, pontuada de sacos plásticos de supermercado tramelados no mato rasteiro.

Como herança paterna, findei-me numa placidez de boi, inconsciente da vereda que o tange do pasto ao matadouro, sem escalas.

A nenhum dos dois espólios me foi concedido o direito indiscutível e inalheável: com unhas e punhos os conquistei e defendo e sucumbo.



sexta-feira, 30 de maio de 2008

O homem chora [280508]

[Foto de Man Ray, claro]


Graças aos meus pais, que nunca me admoestaram o dito “Homem que é homem não chora”, me senti, se não induzido, ao menos liberado para o pranto sem culpas.

E tome choro. Ora, feito qualquer bípede pós-Cró-Magnon, já nasci aos berros, e a porrada do pediatra foi a primeira que a vida me aplicaria, primeiro nas nádegas, depois na cara, no peito, no fígado – que a rapadura pode ser doce, crianças, mas igualmente quebra os dentes, os mesmos com os quais construímos sorrisos, entre uma lágrima e outras.

Mas, fora aquele tirado a fórceps, o choro pode ser do tipo “romântico-emocional”, matéria que dizem ser da alçada das meninas, derna o tempo em que escondiam cartas de amor entre os seios em flor desabrochando.

Pois, confesso que chorei – e como chorei, à semelhança do canto de Cauby. Ainda lembro quando fui ao Rio Grande – o cinema fechado pra futura demolição – assistir “Uma janela para o céu”. O filme é de 1975, imagino que tenha passado por aqui no mesmo ano ou no seguinte: contava eu, então, com uma década de vida. A historinha, para quem não conhece ou não lembra, era uma mina de lágrimas: moça esportista dos chamados esportes de inverno sofre acidente em cima dos esquis e permanece paralítica do pescoço pra baixo. Mas o ápice, mesmo, de dar nó em pingo d’água e na garganta do caba mais macho do Alto Oeste, era a cena em que, no processo de reabilitação, a heroína mostrava ao namorado os lentos progressos dos seus nervos: com as mãos contraídas ela consegue extrair de uma tigela uma única batata-frita, espalhando as demais pelo chão. O rapaz, incorporando o supra-sumo da frieza masculina fica decepcionado e dá o pira, o fora, como se dizia uma época. A moça, claro, chora – e eu na platéia, claro, idem. Embora assustado com a idéia de que, no acender das luzes, os outros meninos me vissem a debulhar lágrimas, como uma mocinha.

Vem daí a expressão engolir o choro – tão indigesta quanto engolir sapos.

Pra completar, era um tempo em que o cinema não se obrigava ao inamovível “happy end” de hoje – e com as luzes prestes a iluminar a sala, o filme findava com a moça, na cabeceira de um campo de pouso, assistindo o avião com o novo namorado (que incorporava os machos sensíveis) despencar céu abaixo. [vendo o link acima me flagrei bolando as trocas: a tal cena, como a descrevi, não existe.]

Doutra feita, fui às Lojas Brasileiras, no tempo em que alguns ainda a chamavam de “Quatro e Quatrocentos”. Comprei com o dinheiro da mesada dois bichinhos de borracha: um burrinho cinzento e um diabinho vermelho – ligados a um tubo que insuflava ar em seu interior, eles saltavam pra lá e pra cá.

Nem bem cheguei em casa, meus irmãos, todos maiores que eu, tiraram um sarro pela segunda escolha: onde já se viu trazer o tinhoso pra dentro de um lar católico?

Com o rosto manchado em lágrimas de raiva incontida (desculpem o lugar-comum e piegas), escondi burro e diabo debaixo da cama. E prometi a mim mesmo que os protegeria de toda agressão humana e fraterna. Não do choro, mas do ranger de dentes.

Menina na praia [270508]

[foto de Joca]


“Ela tava chorando, daí eu peguei uma conchinha pra ela parar de chorar.” – E não é que “ela” parou mesmo de chorar, e toda contente veio me mostrar a concha, ainda fechada sob o calor do sol e a placidez do mar?

“Ela” é minha filha, sexto ano sobre a Terra. E quem me comunica a boa ação é Samantha, uns 11, ou 12 anos, imagino.

Samantha – quem eu nunca vi, que veio à praia com o pai, a mãe e uma bicicleta – tem o rosto de menina, o corpo de menina e as atitudes que as meninas de uma época tinham e nem sei se a maioria ainda preserva: aquela jeito calmo de quem deseja ter apenas a idade que realmente tem, e não a idade precoce que a mídia cheia de tchans e créus insiste em imiscuir na cabeça e no corpo das infantes.

Até no nome, Samantha foge do lugar comum – não lembro de nenhuma atriz ou candidata à, ou nenhum personagem de novela com este batismo, ao menos nos últimos anos. Mais me evoca “A feiticeira”, seriado anos 60 ou 70. Samantha, a feiticeira de nariz arrebitado, era casada com um publicitário americano e mãe de Tabatha.

Samantha, a menina na praia, também faz suas mágicas, mergulha e colhe estrelas, revelando os desenhos escondidos na circunferência de seus corpos: “Tem forma de flor”. E sorri, como se a frase fosse banal e não um exercício de poesia. E se deixa molhar os cabelos e escorrer o mar salgado em seu rostinho ainda infantil e inteligente.

Mergulha, colhe estrelas e conchas e adverte sobre alguns bichinhos do mar: “Não coloca na boca, não, que pode ser venenoso.” Imagino que não tenha irmãos menores, mas os deseje. Imagino que goste dos pequenos, por isso, pela solidão tranqüila em que vive, como filha única de um casal ainda jovem. Imagino que goste de ensinar aos menores o pouco que já aprendeu na sua curta e breve vida, de 11, 12 anos. Imagino que não seja uma daquelas meninas, particularmente ricas e cheias de vontades e brinquedos que não cabem mais nas estantes decoradas. Imagino que não tenha TV a cabo e, talvez, não estude em escola particular. Imagino que seja uma boa filha – e que seus pais sejam bons pais. Simplesmente.

Tudo, enfim, tão longe e tão perto do noticiário, com suas celebridades, seus escândalos, seus mistérios e segredos, suas negociatas interesseiras, seus anúncios de uma vida plena e satisfeita no novo condomínio de nome pomposo e quase sempre estrangeiro, de “localização privilegiada”, de “arquitetura diferenciada” e “acabamento de alto padrão” (e, tudo, ilustrado pela clássica foto do casal e um ou dois filhos, saboreando os momentos de lazer, na piscina vistosa, no “espaço fitness” e naquele “gourmet”, no “street ball” e no “kids club”, que nem imagino o que realmente possam ser).

Olho Samantha e seus pais afastando-se ao longe, na faixa larga de areia que a maré baixa deixou e o domingo de sol não conseguiu lotar: não acho que nenhuma agência de publicidade os contratasse para os anúncios de página inteira que prometem que “viver bem é uma arte”. Não, não. Não têm os estereótipos de quem vive “bem” ou que faça de sua vida o que se convencionou chamar “arte” – aqui, numa confusão de falsos entendimentos com “glamour”, “fashion” e outros termos da moda.

Não. É apenas um casal e sua filha, que vieram para praia, tomaram banho de sol e mar, e, ao final, pegaram a velha bicicleta e voltaram pro arroz e feijão também dominical. No meio tempo, a menina viu outra menina chorar, mergulhou, e, num passe de mágica afastou as lágrimas e iluminou o domingo. Simples assim.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Leviatã





[A Baleia por excelência, quem diria, foi parar nas mãos do estilista Ronaldo Fraga – do sítio da CosacNaify ponto com ponto bê erre]


Na contramão das torcidas literárias organizadas, não me rendi aos propalados encantos da nova edição brazuca de “Moby Dick”, o clássico por excelência não apenas do seu autor, Herman Melville, mas de toda a literatura norte-americana, e, por extensão, mundial.

Isso, sob a chancela da mais-querida editora nacional entre os modernetes e designers de Deus-salve-a-América-do-Sul: a Cosac Naify.

Verdade seja dita: a Cosac tem edições que pedem para serem levadas pra casa, e acariciadas com as mãozinhas limpas e os olhinhos túrgidos dos viciados em livros. O basbaque – de preferência na solidão do vício, o restante da casa dormitando – toma o exemplar em mãos e admira embevecido a última compra. E se parabeniza pelo feito, atitude, bom gosto, de ter comprado aquele livro. Que nem sempre lê.

Quase sempre acerta, a editora do Sr. Charles Cosac, um tipo que poderia ter saído da última parada gay, se o evento tivesse apenas ele como única atração – e se o cenário não fosse a Paulista, mas o principado de Dubai.

A Coleção Mulheres Modernistas, por exemplo, é um primor que dispensa retoques e elogios: vale quanto pesa e mais ainda do que custa. Por ela já foram publicadas Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Karen Blixen e Marguerite Duras.

A Coleção Particular acertou com “Primeiro amor” de Beckett e com “Bartebly, o escrivão” de Melville – e nem tanto com “A fera na selva” de Henry James (em se falando do tal livro de designer).

Feito e efeito maior fez a editora com “Ismália”, poema de Alphonsus de Guimaraens com ilustrações de Odilon Moraes. Como explicar o desejo quase incontornável de pagar 45 pratas por um livro-poema-objeto e seus tão somente vinte versos?

A lista é extensa, mas impossível não citar os livros de viagem de Joseph Brodsky, Elias Canetti, Le Corbusier e Jean-Paul Sartre, narrando (mais que descrevendo) cidades fantásticas como Veneza, Marrakesh e Istambul.

E como ler, em pleno século 21 a maravilhosa “História do olho”, de Bataille, com o belíssimo ensaio de Cortazar, senão pela Cosac Naify?

Basta, basta.

Estou – talvez – apenas provando que não é má vontade contra a editora, aliás.

Então, “Moby Dick”, em nova tradução e edição moderninha? Nnnãã. Faço até e ainda o rumor de quem limpa os dentes com a língua, para horror do Senhor Charles. O livro ficou grande demais, grosso demais, as páginas de um branco excessivo, a gráfica mais adapta a qualquer outra coisa senão ao capitão de uma perna só, à voz de Ismael e às tatuagens de Queequeg.

Vou ficar mesmo – para horror dos entendidos – com a minha velha edição da Francisco Alves, com a sua capa fake, com a introdução de Lêdo Ivo, com a tradução de Berenice Xavier.

E, no mesmo dia em que rejeitei o Moby da Cosac, levei pra casa uma quinta modernista: Flannery O., na lombada, F. O’Connor, na capa.

Uma maravilha.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Cerimônia do chá




[Farinha Celeste, Photoshopmontagem de Joca Soares]


Tomei chá de sumiço, bem o sei.

Digo mais: foi às cinco horas da tarde.

Ainda: aos pés, não da santa cruz, mas do relógio da Junqueira Ayres.

A Junqueira Ayres é uma avenida, uma ladeira, o senso do trânsito é uma subida, longa subida, doem os pés, formam-se calos.

Junqueira Ayres, quem demônios terá sido Junqueira Ayres? Ligo pr’O Fotógrafo, O Fotógrafo não o sabe, não o lembra. Ah! Não vou ligar pra mais ninguém! Outros saberão – deixo os outros em paz, santa paz de deus e crianças no cochilo pendular, zum-zum, zum-zum, modorra de tabuada.

Às cinco horas da tarde, pés do relógio da Junqueira Ayres.

Chá.

O trânsito dormitava. Carros, caminhões, ônibus, jardineiras e o velho bonde puxado a burrinhos, as orelha espanando moscas imaginárias, os olhinho cerrados, baloiçar de focinho teimosos.

O relógio marcando: cinco horas. Ponteiro pequeno no cinco, ponteiro grande no 12.

O tráfego, parado.

A mesa, aparelhada por mãos lépidas e trigueiras, restou em falso.

Alguém veio e botou um calço. Jornal de antontem dobrado em três.

Por entre as máquinas sonolentas, um desfile de fantasmas.

Reconheci alguns. Ferreira Itajubá com seu violão de folhas de flandres pra chuva não chupar a madeira. Othoniel Menezes logo atrás. Empurrava um carro de rodas, na verdade um leito hospitalar sobre rodas, o lençol remendado, com marcas das letras que denunciavam a instituição e, em riba, um enfermo – Gothardo Neto, a loucura tomando de assalto o rosto em ríctus doloroso. O olhar solto à procura de Maria das Mercedes. Juvenal Antunes vinha de charla alegre com Abner de Brito. Inexplicavelmente Antunes exibia as gâmbias magras mal cobertas por um arremedo de ceroula, dir-se-ia quase um Quijote sem Rocinante. Como se normalíssimo fosse circular em tais trajes na Subida da Ladeira. O velho Esmeraldo vinha logo atrás, caderno de anotações numa mão, lápis grafite noutro punho. Os olhos aquilinos bem plantados nos dois à frente. Os cabelos do velho pareciam algodão doce, derramando-se por trás do crânio resoluto. Noutro extremo da ladeira, Celso da Silveira apoiou-se em João Lins Caldas – também já esfalfado com o peso morto duma mala de onde saíam fólios e ondinas.

Muito mais gente vi e me canso de a todos anunciar.

Melhor voltar pra mesa, aquela, do chá das cinco. Chá de sumiço e bem-passar.

A mão que findou de aparelhar a mesa – redondinha, de três pés arqueados – calçava luvas: era a mão de Dom Manuel d’Assis Mascarenhas. Vestia-se o homem assim – na descrição certeira de Luís da C. C.: “calção de seda e sapato de entrada-baixa, com fivela de ouro.”

Baixo, a cabeleira voltada pra trás e a ausência de barbas que provocou assombro nos habitantes da então Aldeia dos Reis, Dom Manuel tirava o chapéu para os mendigos e “só falava com mulher estando acompanhado pelo seu ajudante d’Ordens, Antônio José de Moura.”

Pois, não foi Moura a calçar a mesa pondo-a em nível horizontal para que a loiça não escorresse ladeira abaixo.

Foi Beleza. O criado que ousou desmerecer a beleza cantada e decantada da Cidade-Aldeia-dos-Reis.

O Palácio de Dom Manuel, presidente que substituiu aquele Parrudo, nato Silva Lisboa, ficava na metade da Junqueira Ayres, então Rua da Cruz, hoje lugar das Artes & Ofícios. Uma turma levantou pelas axilas o Beleza: foram lá pelos lados do rio, surraram-no com gosto inaudito.

De novo, cito Luís da C. C.: “Diante do pai não se acha filho feio.”

Durante o chá, Beleza ainda exibia as marcas da lição paterna. Ajudou-o no serviço um certo Inselença, criado do irmão mais gordinho de Auta de Souza. Ainda arrepiado com as vozes que ouvia na casa do patrão – mui parecida, diga-se lá, com a voz que tangia as cordas do violão de folhas de flandres.
Terminei o chá e mal tive tempo de pulir o buço com o guardanapo de linho branco que uma moça muito simpática mo passou: não me disse o nome de pia batismal, apenas me olhou com uns olhos negros de azeitona madura colhida no pé. Na boca um batom discreto carmim. Ainda olhei pro fundo da xícara de porcelana inglesa, um restinho de chá reluzindo o crepúsculo sobre o óleo ribeirinho. Então, tudo sumiu, porque o chá era de sumiço, sumiram eles, sumi eu.

Voltei ainda há pouco. Trazia areia branca nos pés, a sola queimada molhada de água salgada.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Há dezessete anos


Há dezessete anos e o que me lembro é o braço de minha mãe segurando o meu, mão contra mão, dedos trepando-se em dedos, sufocando o tempo e me liberando o choro.

Há dezessete anos.

Uma criança nua, por trás do sangue e das vísceras, um choro de bebê.

Um rosto massacrado, berrando tintas.

Dezessete anos.

A espinha dorsal nua, o lençol descobrindo a pele branca, uma nuca, uma mulher sem rosto.

Eu, todo amordaçado, todo amarrado, todo higienizado, todo estéril, insípido, inodoro, impotente.

Sangue, gazes, assepsia em tons marrons, em crepúsculos escuros, dormentes, etéreos.

Meus pés, como estariam?

Depois, a criança nua, por trás do sangue e das vísceras, um choro de bebê. A camisolinha de bebê, o nome bordado, as flores bordadas – alguém esqueceu de bordar o destino, os percalços, a sinuosidade do caminho: alguém esqueceu de bordar a distância, o adeus.

Engulo o vazio. O móvel move-se. Descemos ao inferno das saudades. É outra mão que aperta a minha. Desta, sem dedos entrelaçados, apenas o punho contra o punho, o punho engolindo o punho, o punho engolfando o punho, o punho fagocitando o punho, o punho digerindo o punho, como uma jibóia que engoliu o boi e o transformou num arremedo de chapéu.

Agora, é uma luz que ofusca, uma luz que ofusca com o auxílio de vagas e vagalhões prateados, serpente de escamas que se repetem e brilham sob o sol.

Somos dois, às vezes três, uma vez, chegamos a quatro. Brincamos. Enquanto o sol nos engole, nos engolfa, nos fagocita, nos digere. E depois nos expulsa para sempre, cobertos de sangue e vísceras, sem a fluorescência que nos limpe das marcas e das cicatrizes que os anos, dezessete anos, teceram sobre a pele. Sem um afago, uma carícia, uma palavra: apenas o silêncio de uma mão grosseira enfiando o metal pontiagudo.

Há dezessete anos.



Haja cultura pra cuspir na cultura [130508]


[detalhe distorcido de foto original de giovanni sérgio]


Fala-se muito na Capital do Ryo Grande. Um disse-me-disse dos demônios.

Às vezes acho que a imprensa só existe pra repercutir e ecoar essas fofocas – e se retroalimentar nelas, num processo autofágico onde nada se perde, tudo se recicla, de um extremo a outro do tubo digestivo.

A essa altura da coluna, terceiro parágrafo se iniciando, as almas sebosas e pias – e aquelas que comungam em ambos adjetivos – devem estar aguardando, ansiosas, que eu desça o cacete no Colunismo Social (Capitalize Each Word, que é de bom tom).

Não, neguinhos e neguinhas: vou descer o malho, mesmo, na Cultura, com cê maiúsculo, minúsculo, bold, itálico, o escambau.

Pense numa turma perigosa. Panelinhas, arrumadinhos, turminhas, qui-qui-quis, quó-quó-quós, blá-blá-blás. E tudo edulcorado com o supra-sumo da boçalidade literária. Escrevas errado e serás criticado. Escrevas certo e idem. A conjugação também se aplica para outras atividades [sic] culturais: pintar, atuar, cantar, filmar – e por aí vai.

Ouse criticar um deus, semideus ou entidade menor dita cultural, artística, intelectual, que verás o furdúncio e rebuliço que se propaga feito fogo em pasto seco, esturricado: as vacas sagradas põem-se a mugir e baloiçar os guizos e amolar os chifres pra dar uma carreira no profanador de templos. Ou, se reúne uma reca de marmanjos ou moçoilas pra aplicar uma lição, sova, castigo, no indigitado.

A turma só se entende com tapinhas nas costas e bater de vidros de geléia recheados da velha cerveja doirada, precinho camarada pra quem tem, via de regra, os bolsos vazios.

Lembra aquele papo do sujeito que gasta 200 pro outro não ganhar 20. Dizem que a frase é de Cassiano Arruda Câmara. Ligo pro jornalista: “Não fui o autor, mas o divulgador durante muito tempo, desde os anos 70. Provavelmente foi ouvida em Nova Cruz, coisas da sabedoria popular. Mas continua valendo”, encerra célere o colunista, comentando ainda que esta “minha área”, a Cultural, “é muito árida”, além de diluída no entretenimento e no lazer.

Pois, gosto muito da releitura poética da frase, feita por Adriano de Sousa em “O alvissareiro”: “uma aldeia onde gasta-se 200/ pro galado da oca ao lado não ganhar 20”. As cerejinhas são os termos “aldeia”, “oca”, e o fenomenal “galado” – expressão que é a cara da Província.

Como a Cultura Potyguar é terra desolada, desamparada, paupérrima, favelizada, sempre com o pires nas mãos mendicantes, falar de 200, 20 ou dois mil-réis é besteira: aqui, intelectual não gasta nada pro outro intelectual continuar na penúria. Não gasta porque não tem. Mas faz um estrago danado. Sobem nas tamancas, empinam-se no salto alto, alçam voz e verbo, dedo em riste.

Esporte de intelectual é puxar tapetes. Ou esteiras, ou capachos, ou panos de chão. De preferência, claro, com o inimigo em riba.

E como têm inimigos os intelectuais que sobrevivem às margens do Ryo Grande! Nas Academias, nas Sociedades, nas Associações, nas Fundações, nas Universidades, nos Grêmios, nas guildas, nas calçadas, nas mesas. Lembra aquele poema do Drummond, às avessas: “João odiava Teresa que odiava Raimundo/ que odiava Maria que odiava Joaquim que odiava Lili/ que não odiava ninguém.”

O poema chama-se “Quadrilha”. Pois, pois, de associações com intuito mafioso o Erre-Ene é pródigo.

Quanto à Lili, coitada, que no poema original casava-se com J. Pinto Fernandes, “que não tinha entrado na história”, ih! Esse é o pior de todos!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Fliperama epiléptico [140508]




Assistir “Speed Racer” é jogar fliperama durante um ataque de epilepsia depois de engolir quaisquer pastilhas de efeito alucinógeno. Se a trilha tivesse uma cítara e ecos de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e “Their Satanic Majesties Request” (Beatles e Rolling Stones, respectivamente) ou pitadas da trilha do Pink Floyd para “La Vallée”, então, o negócio era psicodelia pura!

Mas assistir “Speed Racer” é sentir-se explicavelmente velho. E cansado. E sonolento. E acabrunhado. E deslocado. E inquieto. É se perguntar: “Que diabos eu vim fazer aqui?”

É tentar encontrar um roteiro como aqueles de antigamente, boy meets girl e pronto – foi o então jovem cineasta francês Leos Carax que assim definiu a súmula de todos os filmes: um rapaz encontra uma moça e lá se vai toda uma história.

Em “Speed Racer”, o menino encontra a menina, mas o mancebo está mais interessado em carros de corrida do que nas curvas de uma mulher. Tanto que o único beijo que rola nos 135 minutos de duração do épico feérico dos irmãos Wachowski é precedido do aviso irônico que a cena seguinte pode chocar o público, anestesiados quaisquer sentidos que não sejam a visão e a audição pelo borbulhar de luzes e o ronco dos motores – é como se aqueles minutos na parte final de “2001, uma odisséia no espaço”, de Kubrick, quando o astronauta viajante mergulha fundo no espaço, durasse todo o tempo do filme, que faz jus ao adjetivo “speed”.

É como estar numa discoteca sem As Frenéticas saracoteando as cadeiras e as cabeleiras black.

É como tomar um porre de pastilhas multicoloridas e encontrar-se, misteriosamente, num quarto de motel, em companhia de Ronaldo Nazário e três seres estranhos.

O filme se parece tanto com o desenho animado original que nos perguntamos pra quê gastar tanto dinheiro pra fazer algo em carne e osso e efeitos especiais se o resultado final é quase cópia c&c do desenho original – é como gastar mais dinheiro copiando uma bolsa Louis Vuitton do que os custos de produção do produto autêntico.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

alcatéia remixed by afonso martins




Harlem-Beco da Quarentena:
nome-título-letreiro-legenda-placa luminosa de lendário show da Alcatéia
Maldita, nos anos 70, salvo engano no teatrinho do Alecrim. Pesquisando agora em
meus arquivos alternativos vejo que o poeta João da Rua menciona um show deles,
"A estrela do cão maior", de 1974, no Sandoval ("Raul, a voz negra melodia da
alcatéia", artigo publicado no jornal-fanzine Delírio Urbano nº 3, 1986). Em
artigo de 1992 para o "Sarau Cata-Livros", João situa o Harlem-Beco da
Quarentena no ano da graça de 1976, no mesmo bat-local.Jota Medeiros, em sua
"Antilogia", aponta um show da Alcatéia em 1979, produzido pelo poeta Osório
Almeida, sem maiores detalhes. O fato é que a foto me trouxe à tona esse barril
de referências, e vendo ali no teatrinho do Tirol esse black-man dos nossos
tristes trópicos, lembrei das capas de sam cooke e james brown (live at the
apollo) e dos discos de jazz da blue note, dos luminosos do cotton club, e sly
stone e prince e temptations e kool and the gang e mick jagger e os panteras
negras e um papa legba haitiano, lobos e lobos...

A melhor banda de rock do planeta [120508]




O título é pomposo, sei. Mas a Alcatéia Maldita bem o merece. Não que signifique muita coisa, vindo desta coluna dos cafundós do planeta. Qualquer bandinha já recebeu prêmios mais consagradores, inclusive por essas bandas, digo, cafundós. Mas a Alcatéia faz jus ao adjetivo que a define, que a torna única – e passa ao largo dessas feiras paroquiais e universais de vaidades contemporâneas.

Maldita.

Dia desses, pra ser exato, o último oito de maio, dia do artista plástico, entraram no palco do TCP, o teatrinho de cultura popular da Fundação Zé Augusto. Raul, Franklin, Fidja, Julinho e Johnson. Voz, guitarra, bateria, baixo e sax. A platéia escasseava, umas 30 almas, um pouco mais, um pouco menos.

A Alcatéia nem tchuns: duas ou três palavras incluindo o boa noite e pronto. Rock. É rock mesmo como complementavam nos idos dos seventies. A Alcatéia é dessa década. E dos oitenta, e dos noventa e dos novos anos Double Zero, já em seus atropelos e suspiros finais.

Rock? Não encontro palavras para definir o som de Raul e bad company. Tem a cara dos setenta, mas sem o saudosismo óbvio. Tem a cara dos zero-zero, mas sem as pseudomodernidades electrônicas. Os caras conseguiram se manter atuais sem fazer concessões nem ao passado nem ao futuro.

As letras são uma maravilha – não sei citar nenhuma, de passagem, mas sei que são, é assim que as sinto em cada show que vou, quase como se fosse a uma missa (maldita, claro). Minto: Formigas transando o bordado do chão, são uns versos de “Floresta marrom”, um dos ícones do grupo.

Devo saber de outras letras, em pedaços, em restos, em descompassos. Mas, não consigo pensar muito na Alcatéia e em Raul sem pensar que é uma tragédia que não tenham discos gravados, que não existam ao menos velhos long-plays nos sebos, como se pode ainda encontrar aqueles da Banda Imaginária, Lóla, Impacto Cinco e Terezinha de Jesus, pra citar alguns “conterrâneos”.

E como não encontro palavras, vou de carona nas de Carito, vocalista de Os Poetas Elétricos, em seu blog: “antes desse alvoroço em cima de misturar rock com isso e aquilo, Raul jazz misturava rock com tudo... antes de descobrirem a pólvora da mistura, Raul já tinha explodido a mpb local desde os anos 70”. Carito (que também já fez história com os Fluidos e o Modus Vivendi) atende a necessidade do público de referências externas para supostas comparações e definições, traçando um paralelo entre Raul, Van Morrison, e Mick Jagger – “invoco as forças místicas do nordeste só para não dizer que não fiz o que todo mundo parece que tem que fazer nesses tempos pós-não sei o quê: respaldar Chico Antônio através de Mário de Andrade, etc.”

Uma ótima provocação: afinal, Chico Antônio é bom e interessante e “massa” e o escambau porque é tudo isso mesmo, ou, é tudo isso porque Mário de Andrade deitou os olhinhos por trás dos oclinhos e se encantou com o mulato?

Raul e sua Alcatéia Maldita são a melhor banda do planeta porque se parecem com outras melhores bandas do planeta, ou, são a melhor banda do planeta mesmo e Zé-finí?

Eu fico com a última opção.

E continuo na carona alheia do poeta elétrico: “Raul traz clássicos autorais, mas também novidades, bons artigos e melhores preços, tal qual a antológica ‘Casas Cardoso Tecidos’, embora ele não seja o centro da moda. Ainda bem!”

Falando de moda – agora não no sentido metafórico, como na conclusão de Carito – Raul tem uma moda própria que deixa no chinelo quaisquer fashion week dessas, daqui e alhures: usa sempre calças jeans que ressaltam o corpo magro e longilíneo (daí a comparação com Jagger), um cinto com a ponta ameaçadoramente solta, óculos escuros e chapéu (que pode ser de palha ou couro ou feltro, mas são sempre uma referência ao Nordeste). Dentes brancos, de índio. O homem da cobra, mala aberta no centro do chão da praça. “Se vestia fantasistamente”, assim descreve Mário de Andrade um curador de cobra que conheceu apenas na versão de Cascudo: “a roupa era de cor berrante e o chapéu coberto de pele de maracajá.”

Afonso Martins remixou visualmente uma foto que fiz de Raul – não publico aqui porque só faz sentido em cores fortes. Explica Martins, transcendendo a foto numa definição digna de verbete: “O fato é que a foto me trouxe à tona esse barril de referências, e vendo ali no teatrinho do Tirol esse black-man dos nossos tristes trópicos, lembrei das capas de Sam Cooke e James Brown (Live at the Apollo) e dos discos de jazz da blue note, dos luminosos do Cotton Club, e Sly Stone e Prince e Temptations e Kool and the Gang e Mick Jagger e os Panteras Negras e um papa legba haitiano, lobos e lobos...”

Mário de Andrade não sabe o que perdeu.


PROSA
“Ele procura de fato ficar tonto porque, quanto mais gira e mais tonto, mais o verso da embolada fica sobrerrealista, um sonho luminoso de frases...”
Mário de Andrade
O turista aprendiz
VERSO
“Ai, Chico Antônio
Quando canta
Istremeçe
Esse lugá!”
Chico Antônio

sexta-feira, 9 de maio de 2008

steppenwolf


steppenwolf dois


steppenwolf três









Raul e a Alcatéia Maldita, a melhor banda de rock do planeta,

8 de maio, TCP, Fundação Zé Augusto

UM DISCO: Band On The Run, Paul McCartney & Wings. 1973, EMI Records Ltd.





Primeiro, a capa, claro.

O bando, desarmado e acossado de McCartney contra um muro inglês sob os holofotes da polícia compõe, para dizer o mínimo, uma capa clássica.

Depois, o conteúdo. O que se ouve.

Nove músicas, cinco pro lado A, quatro pro lado B (e, ao ouvir novamente Band On The Run em CD, percebemos o quão pouco viramos o lado A).

Pra começo de conversa, a faixa-título, com suas variações de arranjo, que faz o ouvinte incauto de primeira audição pensar que são três músicas diferentes. Da melancolia beirando o psicodelismo e o estranhamento da abertura, passando pelo swing contagiante do intermezzo, até desembocar na balada fácil do trecho final, o verdadeiro corpo da musica, com o refrão em coro Band on the run, band on the run... Uma Balada sem John & Yoko, costurada por Paul, a senhora McCartney, Linda, e o guitarrista Denny Lane.

Jet vem logo depois. Passados trinta anos, poderia ter sido gravada ontem. Tem um pé na black music, outro na disco music, e as mãos no rock’n’roll. And Jetzzz... Bluebird é McCartney puro, com saudades não declaradas e não assumidas de Lennon. Mrs Vandebilt é uma senhora Robinson cínica, a resposta não menos cínica para a pergunta do ex-parceiro em How Do You Sleep. Let Me Roll It mantém uma pegada blues, pós-Let It Be, pós-Let It Bleed – se meu coração é uma roda, deixa girar até você.

Pausa pra virar o disco: diante da aura consagrada e sagrada e sacramentada de Lennon, McCartney sempre foi o chato de galocha. O caretão. Ávido por dólares. Com sua mulher loirinha, made in usa – em contraposição à artista made in japan do seu ex-cara-metade. O pecado de Paul foi nunca ter se considerado nem se vendido como gênio. Enquanto John se exilava, primeiro num bed in sem fim pelo mundo, depois na cozinha e no berço do edifício Dakota, em New York City, bad trip, Paul gravava um disco após o outro com os Wings (o casal McCartney mais Lane e um punhado de músicos estrategicamente convidados). Acusavam Paul de ser (aparentemente) fiel à Linda. Acusavam Linda de ser rica, loira e não tocar nada. Acusavam (para sermos corretos, Lennon acusou, na faixa citada, de Imagine) de só ter feito Yesterday – como se fosse pouco.

Besteira. Se vale alguma coisa, Paul foi preso ao menos duas vezes por posse e consumo de drogas, em 73 e 80; no final descobriu-se que Lennon era muito mais fiel à Yoko, que não era loira, nem pobre, mas que também não tocava nada – e que, justamente por isso, fosse pouco provável (no sentido que não se pode provar) ser mais ou menos inteligente que Linda.

O lado B começa com uma certeza: não se fazem mais músicas como Mamunia, e como fazem falta. No Words é Beatles, ou o que estariam fazendo se tivessem continuado. Picasso’s Last Words (Drink To Me) cita as últimas palavras do pintor espanhol antes de morrer: Bebam comigo, bebam à minha saúde, vocês sabem que eu não posso mais beber. Nineteen Hundred And Eighty Five ataca um piano fusion, flertando com a discotéque, elocubrações prog e delírios rock. É profético: Oh no one ever left alive in 1985... Ano em que não lançaria nenhum disco. Ainda bem que o velho Maca mandaria ver, dois anos antes, o ótimo Tug Of War, pau-a-pau com este Band On The Run.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Ela é carioca [050508]




Hoje bateu uma vontade de me jogar na arena.

E esperar a chegada soturna das hienas.

Então, vamo’nessa: Roberta Sá é carioca. Da gema do ovo.

Até que me provem o contrário.

Pois, até que me provem o contrário, a tentativa de conterraneizá-la é só um e não passa de mais um ataque histérico dos nativos do Ryo Grande, traumatizados ainda com o fato colonial (remonta aos idos de quatro séculos atrás) de que nem tão grande assim era o nosso ryo (embora tenhamos a maior das aldeias, derna de sempre, ou, a “Metrópole Indígena”, nas palavras articuladas de Polycarpo Feitosa, ou Antônio José de Melo e Souza, nosso último governante letrado).

E haja necessidade de auto-afirmação (ponto de exclamação ou reticências, à escolha do freguês).

E haja exibir nas fuças dos outros a certidão de nascimento de quem nos ufanamos.

Desejo bem ambíguo, aliás, para quem – e tomo emprestado de novo as letras cursivas do Dr. Antônio – “com uma excessiva desconfiança de si próprio, que parece ser também um dos elementos do seu caráter, o potiguar é propenso a considerar irresistivelmente o estrangeiro, o desconhecido, como superior, como capaz, e respeita-o pelo menos enquanto não convencer-se de que o tal estrangeiro é igual ou inferior a si mesmo”.

Talvez seja isso que tanto nos envaidece e nos anima como pintinhos na beira da cerca: Robertinha Sá une o útil ao agradável, Tomé com Bebé, é “de fora”, mas também “é daqui”. Um must, enfim, para a patuléia que se acha o ó do borogodó, o centro do mundo, as pregas que não cabem no meio, oco do mundo.

Uma maravilha, claro, os discos da moça, as músicas da moça, o suingue da moça. Menos por sua certidão de batismo e mais por ela mesma – embora muitos “críticos” às margens do Putigy adorem exercitar e ecoar o que “os outros”, no gramado alheio, dizem dela: porque “os daqui” tudo que fazem é citar que a menina foi citada pelos “outros”, sem nenhum juízo crítico e opinião pessoal.

E tomem repetir o que ouso questionar: Roberta Sá é de Natal – mas, Roberta Sá é mesmo de Natal?

Não acredito, crianças. A Roberta Sá de quem vocês tanto falam e hosanam nas alturas nasceu artisticamente na Guanabara, e cumpriu, meio ao acaso, sem intenção premeditada, mas por antecipação, o dito de Antonio Carlos Jobim para a macro-geografia nacional: a melhor saída para o músico brasileiro é o aeroporto.

Galeão, no Rio; Augusto Severo, na Província dos Reis.

Pois, esta semana Roberta Sá vem à Natal – dá uma de Bob Dylan e vem à Natal por 50 contos o ingresso individual. Quem tiver a carteirinha de estudante ou provar que é velhinho, paga a metade. Tal como Mr. Zimmerman em Sampa, o preço alto não deve assustar o público, entusiasmado em e por ser conterrâneo da moça: a Agenda Propaganda programou dois horários, às sete e às nove da noite da próxima quarta, 7 de maio. No Teatro Alberto Maranhão.
Quem não “qui$eR” ir ao show de Robertinha, pode ir ao Praia Shopping e assistir, de grátis, Dodora Cardoso e o show “Cofrinho de Amor” – oh-oh... sendo assim, datemi un martello por favor, como diria Rita Pavone: é melhor quebrar os cofrinhos pra inteirar os cincoenta mil réis!

segunda-feira, 5 de maio de 2008

UM DISCO: Fanny Adams, The Sweet. 1974, Bronze Records Ltd.



Primeiro, a capa, claro.
Deliciosa e docemente kitsh. Com os quatro cavaleiros do apocalipse, prontos pra levar um bakulejo no salão de baile da paróquia, vestidos de matar em prata, laranja, azul e preto. Faltam só as plumas e os paetês (o laquê vem grátis). Fundo verdesmeralda, reflexo metálico da pose. É tudo pose.

Depois, o conteúdo. O que se ouve.

Nove músicas, cinco pro lado A, quatro pro lado B, e uma porrada sonora em ambos, cada side mais hard e heavy que o outro. Nem tudo é pose.

Música após música, faixa dopo faixa, baixo-guitarra-bateria post efeitos vocais-tubular bells-moog, Fanny Adams é um disco pra se ouvir na estrada, a quantos quilômetros por hora seu carango possa andar.

Set Me Free abre o lado A, acelerada. De zero a cem em poucos segundos de bateria pesada (Mick Tucker) e guitarras básicas (Andy Scott). Brian Connoly segura os vocais, bem mais sério do que a indumentária do Sweet pré-conceitua. No mais é o baixo mais alto de Steve Priest e phaser pra todo lado – phaser é um pedal muito usado nos anos 70 e 80, aqui abusado muito além da tradicional guitarrelétrica.

Hertbreak Today conclui – ainda na segunda faixa – que Fanny Adams é disco indispensável. Em meados da década de então era trilha de uma rádio brazuca. O som de FA é pré-rock-de-FM. O Sweet era o lado B de figuras como Marc Bolan, Bowie na sua fase glitter, e os dois Brian – Ferry e Eno – nos primórdios do Roxy Music. Ou seja, glam, glitter, glamourous.

É verdade que daí pro Village People foi só uma questão de mais fantasia (dressed) e menos fantasia (dreamed).

Mas Fanny Adams é tão empolgante que tudo mais pode ir pro inferno e ainda ser perdoado. No You Don’t dialoga e chama pra briga. Rebel Rouser é pura adolescência sem causa. Peppermint Twist revisita o somzinho ingênuo de dez anos atrás, meados dos sixties, quando a moçada dançava, mascava chicletes e as saias ainda não tinham subido pelos joelhos.

Clap your hands, The Ballroom Blitz é música de salão depois de uns cocktails a mais. Pra dançar, suar e agitar as cadeiras e o lado B, que segue o ritmo com Sweet Fanny Adams e Restless. AC/DC fecha o círculo, coerentemente adolescente, sem vergonha de ser adolescente e tocar numa banda de rock.

Um disco pra ouvir na estrada politicamente incorreta do sexo (ao menos, se não concluído, tentado), drogas (alcahol, em doses que conjuguem o verbo encharcar) e rock’n’roll. Only, only, only and only.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

quarta-feira, 30 de abril de 2008

terça-feira, 29 de abril de 2008

segunda-feira, 28 de abril de 2008

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Caetano e as melancias [250408]



Incrível. No duplo sentido da palavra, enquanto substantivo e adjetivo, um pouco menos como interjeição, já que esta ganha normalmente ares de pura e simples exclamação quase abstrata, quase banal.

Incrível, por que inacreditável, por que fantástico, extraordinário, extravagante, ridículo: leio num portal de notícias uma pequena manchete acompanhada de foto e tudo – “Depois do jantar, Caetano passa no mercado”. Clico em cima, a foto se alarga, vê-se o entorno do músico, em primeiro plano um caixa vazio de supermercado, mais adiante uma gôndola baixa com frutas – laranjas, laranjas, maçãs, vermelhas e verdes, e outras que não identifico –, e por trás dela um Caetano alheio ao fotógrafo, digo, paparazzi, rosto tranqüilo, de flâneur urbano, de flâneur de supermercado. Falta só o vento, a praia, o calçadão para compor com seus versos: “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento...” Invés, ou quase isso, a didascália informa: “Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

Sim, pois, tinha me esquecido, por sobre a gôndola, quatro ou cinco fatias de suculenta melancia exibiam seu verde-vermelho – e pareciam emoldurar o passo, que imagino gingado e malandro, de Caetano.

Mas, voltemos a legenda, não sem antes rever a manchete – “Depois do jantar, Caetano passa no mercado”. Manchete. “Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”. Legenda. Apesar de incrivelmente besta, a primeira é superada, em muito, pela segunda. Se não há notícia alguma no fato de um dos mais famosos músicos do Brazil jantar e depois ir ao supermercado (a menos que ele tenha matado Paula Lavigne durante a ceia), menos ainda há na sua passagem fugaz, ladeando exuberantes melancias, ou abóboras ou mexericas ou melões-de-são-caetano que sejam.

No entanto, está lá. Na página do UOL (slogan “o melhor conteúdo da internet”), sob a categoria “Celebridades”.

Ou seja, tudo aquilo que nos ensinaram no supermercado do saber que é a universidade (e na quitanda que é a faculdade de jornalismo), está furado, errado, torto e equivocado. Não é mais necessário que o carteiro morda o cão – tá de bom tamanho que entregue a correspondência, de preferência a uma celebridade qualquer da vez e da hora, do quarto de hora que são os famosos 15 minutos de Warhol. E ao cachorro nem precisa o esforço de ladrar ou morder: basta que submeta-se ao flash do fotógrafo, barriguinha pra cima no colo da dona ou do dono, que aproveita pra exibir o último sofá combinando com o quadro decorativo na parede nas páginas multicoloridas das revistas.

Mas, desculpem-me: não me sai da cabeça a legenda. Preciso repeti-la aqui, uma e mais outras vezes, para digeri-la melhor, para entender como caminha a humanidade. “Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

“Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

“Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

Pronto, descobri! A humanidade caminha perto das melancias.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Inner City Blues



Cidade dos Reis, ontem à noite antes da tempestade de hoje

Manhattan Transfer



Cidade dos Reis, ontem à noite antes das chuvas torrentes de hoje

domingo, 20 de abril de 2008

O abismo de todos nós


Não é exagero citar o velho chavão do abismo social no caso da menina Isabella Nardoni. A mídia, e quem comumente dela faz uso, tem maior respeito pela dita “classe média” – outro chavão que ainda resiste – em detrimento daquelas “inferiores”, C, D, ou Z.

Basta ver os programas que pululam nas nossas TVs locais e em todas TVs locais Brasil afora: a câmera não pede licença para – tal como um dedo índice acusatório – escancarar o rosto do meliante para o telespectador em casa. Como não pede licença para passear no corpo seminu do bandido – reparem: a cena é quase sempre a mesma, um indivíduo pardo, a barba e bigode mal-feitos, o cabelo desgrenhado ou rapado zero, o calção puído e gasto de tanto lavar, e as chinelas de dedo, igualmente gastas, consumidas, desbotadas.

Se é do sexo feminino, a marginal é violentamente explorada pelas lentes para exibir as mesmas estereotipias: a cor parda, o cabelo basto e desarrumado, o corpo apertado num collant de cores vivas. Entre o collant e o shortinho curto, uma barriga proeminente: as mulheres das classes mais baixas (abaixo da “média”) têm o corpo desfigurado e maltratado e muito de gordura localizada. É um estereótipo que as câmeras fazem questão de delimitar, como fronteira social entre os incluídos – nós, que compramos jornais e temos TV a cabo – e eles, os excluídos – carne de canhão para notícias de um mundo, submundo, além das nossas seguranças e inseguranças.

Além do aspecto visual, o verbal é igualmente importante: os repórteres dos plantões de polícia televisivos não têm papas nem freios na língua. Disparam sem temor a pergunta que traz embutida uma resposta prévia e acusatória: “Por que você matou?” Na bucha, à queima-roupa. Os acusados cumprem bem o seu papel, o papel que determinamos para eles: dão respostas evasivas, pontuadas pelo mau uso da gramática, por vezes sorriem um sorriso amarelo e sem graça o que nos provoca revolta e a certeza do cinismo.

Noves fora o caos psicológico que é a morte de uma criança (cinco anos!) – além do mais nas circunstâncias terríveis do caso Nardoni – o que assusta a todos, câmeras e policiais, para citar dois profissionais que têm se mostrado atônitos e por isso mais respeitosos com os acusados, o que assusta a todos, insisto, incluídos aí os telespectadores comuns, classe “média”, é que, neste caso, não existe nenhum invasor externo a ultrapassar a fronteira do condomínio classe média. (E se existisse cumpriria as regras do estereótipo: marginal, pardo, peito nu, calção e chinelos.) O que assusta é que o inimigo, desta vez, contrariando a lógica da divisão social, está ao nosso lado. Veste as roupas da classe média, o corte de cabelo da classe média, é filho, neto, irmão, amigo e – o mais terrível – pai e algoz dessa mesma classe média.

Alguém que não usa o elevador de serviço, enfim.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

um monte de ruínas [080408]





Estava eu dia desses charlando com Don Giovanni de Lolita y Rêgo. Papos idiossincráticos. De beira de calçada. Noite alta, ou baixa, céu risonho, ou amuado – sem estrelas nem cometas, que os últimos dias são invernais, com vê minúsculo. O sobrescrito e o dito cujo são chegados numa beira de calçada. Um meio-fio. De preferência aqueles de paralelepípedos.

Os temas são quase sempre os mesmos: o Ryo Grande, a Natalzinha, o Putigy. E os varões e donzelas que enfeitam a paisagem. Sociais, políticos, econômicos.

A idéia era encontrar uma idéia para um projeto de livro. A minha palavra tangendo as 1.000 do tira-fotos. E vice-versa.

Conversa vai, chope vem, sugeri um livro sobre como os natalenses moravam, abordando os que ainda moram, como num passado mais ou menos recente: em amplas casas, com jardim, quintal e retratos nas paredes e sobre os móveis da sala.

Enumerei umas tantas – que seus proprietários me perdoem a intromissão e a exposição nesta coluna, mas, enfim, são apenas palavras, e, nem ao menos, tão descritivas.

A casa de Dona Sílvia Ramalho, por exemplo. Viúva de Osório, nora de Manoel Dantas, sua casa é uma maravilha, de uma época que já foi. Não existe fausto, nem pompa ou circunstância exageradas. Nem, tampouco, declínio, queda ou decadência. Tudo permanece, como se os anos 60 e 70, especialmente, continuassem a existir no equilíbrio, na discrição, na arrumação sóbria dos móveis e dos sopra-móveis. Como se os arquitetos-decoradores que enxovalharam as neogaiolas da neo-elite no último decênio nunca tivessem existido.

Outra: a casa da viúva Machado. Dói em mim sabê-la desconhecida. Não sei quanto daria para passeá-la – que de vinténs e tostões só os tenho furados – mas, de bom grado, aceitaria um convite para o chá das cinco. Prometo até calçar sapatos, como gente de bem. E alçar o mindinho quando levar a xícara de porcelana inglesa aos lábios contritos. Ou não alçá-lo, que sei eu de regras da nobre etiqueta?

Voltando às que conheço, a casa de Odilon Garcia: uma beleza, com ares de mansarda americana e ecos distantes da Segunda Guerra. Ainda tive o privilégio de lá adentrar e ser recebido pela figura ímpar do amigo do meu pai – ainda que a visita fosse à sua filha e minha professora de semiótica, Maria Lúcia. Em várias ocasiões, antes das refeições, tive o prazer de ouvi-lo botar o toca-discos pra funcionar: de algum canto da casa evoluíam no ar clássicos extraídos dos sulcos negros de antigos long-plays, bem conservados e cuidados, como todo o mais – a arquitetura original intacta, imune às sanhas do novo, as plantas verdejantes, o pátio sombreado com cadeiras à espera da visita e do bem-acolher. Emprestou-me, um dia, o velho Odilon, um livro de crônicas de Antônio Maria, também estas retrato de uma época, de um Brasil saudoso de meio-século atrás. Noutro, estendeu o braço e me passou uísque e gelo. Não é exagero dizer que ainda lembro com alegria o gesto, transubstanciando no frio do copo de boca larga, e no tilintar das pedras descortinando maltes e o prazer da companhia. Do compartilhar fraterno, ali, perto e ao mesmo tempo tão longe da cidade assanhada em ser metrópole, ingênua no seu desmantelo à guisa de progresso.

Quantas mais existem destas velhas casas? Quantas e por quanto tempo ainda sobreviverão? Aos velhos não lhes resta nada a não ser ceder espaço aos vivos e aos que estão por nascer, que o mundo parece cada dia mais apertado. Um dia, esses retratos antigos, vivos, em terceira dimensão, palpáveis e sentidos, fecharão para sempre suas portas. A penumbra encerrada não resistirá muito: ninguém as mais quer, enquanto morada. Alegam segurança, tamanho, gastos. Contas são feitas, cálculos ignoram e desprezam o romantismo datado, arquitetos e engenheiros fazem plantas, empurra daqui, tira dacolá, cabem aqui tantos apartamentos de tantas suítes e não menos vagas nas garagens.

Num piscar de olhos as velhas construções tomam o mesmo rumo de seus donos, transformam-se em entulho. Um olhar distraído e nem escombros reencontramos mais. Dali a poucos dias, o stand feérico é construído. Blindex, gesso, granito, aço escovado, a receita da modernidade.

Vai ser assim com outra das casas da nossa lista: a última – suponho – da família Lamartine em Natal, esquina da Trairi com a Rodrigues Alves (a informação é da abelhinha Eliana Lima). É uma casa moderna – os acadêmicos de arquitetura saberão descrevê-la melhor – daquele modernismo da década de 70 em Natal, provavelmente reflexos de décadas anteriores no mundo, especialmente nos Estados Unidos da América. Tem ares de Frank Loyd Wright, ou Le Corbusier, ou Mies van der Rohe, imagino, e posso estar enganado, não importa: para mim, é uma presença que permanece constante desde que eu era menino. Outro dia passei lá. Passo quase diariamente lá, o velho saudosista e bobo em que estou me transformando. Olhei as árvores enormes, que rimam com a casa como versos fluidos numa poesia silenciosa, e que parecem plantadas pelo mesmo arquiteto-construtor.

Me peguei com o desejo ridículo de que ao menos elas fossem conservadas. Besteira: se apagariam diante do monstro de concreto, ávido em arranhar céus, nuvens, estrelas. Em nos engolir.

PROSA
“Demais, não faltarão jornalistas de oposição para afirmar, por dever de ofício, que vamos em regresso e que, daqui a 50 anos, Natal será um monte de ruínas.”
Manoel Dantas
Natal daqui a 50 anos

VERSO
“Vamos, irmãos, eu que estou reparando, de retrato, esse quadro que se alonga ao longo da parede.”
João Lins Caldas
A casa nos conta a sua história

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Vestir-se cotidiano














A agonia é uma de minhas mudas de roupa;
Não pergunto pro ferido como ele se sente... eu viro o ferido,
Minha dor se volta para mim, lívida, enquanto me apóio na bengala e observo.

[Walt Whitman Folhas de relva tradução e posfácio Rodrigo Garcia Lopes 1ª reimpressão São Paulo Iluminuras 2006]