sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Os Dez Mandamentos de Juvenal Antunes


I
Nunca te cases, nem mesmo com uma agonizante rica.
II
Não furtes pouco, que é muito feio.
III
Adora tuas produções artísticas, embora não valham nada.
IV
Foge das crianças, masculinas ou femininas. Elas em geral são crisálidas de borboletas venenosas. O mundo sempre contou com mais bandidos que homens de bem. E esses bandidos foram maternalmente acalentados no berço! Imagina a mãe de Napoleão, Alexandre, César Bórgia, Nero, Messalina, Lampião, Antônio Silvino, Juvenal Antunes, Vicente Inácio Pereira, Judas, Padre Cícero, Getúlio Vargas e tantos outros, cantarolando para adormecer esses monstros, alimentando-os com o leite das próprias tetas!
V
Ama os vícios. Só têm o defeito de custar dinheiro. Quando este é muito, aqueles ficam doirados.
VI
Não mates nunca, não por amor à espécie humana, medo do inferno ou respeito às leis, mas porque isso é inútil. Matas um malvado, nascem dois.
VII
Sê bacharel, vagabundo, médico, parteiro, negociante ou coisa pior. Mas, não sejas tolo.
VIII
Ama o dinheiro. Faze como o imperador Vespasiano, que achava cheirosas as moedas recebidas do imposto das sentinas.
IX
Não queiras saber da mulher do próximo nem do distante. Não vale a pena. Deixa que os outros as degradem. Aproveitarás depois, calmamente, sem perigos, o fruto do crime alheio.
X
Só trabalhes quando te pagarem. De graça não faças nem uma graça.

Juvenal Antunes de Oliveira foi o único poeta potiguar a chegar na tela da Globo.

(Depois de morto e de Marina Elali, é certo, mas, enfim.)

Nasceu em Ceará-Mirim, 29 de abril de 1883, no engenho Oiteiro, eternizado no livro de memórias de sua irmã, Madalena Antunes.

Formou-se em Direito, no Recife, e veio morar em Açu e Natal.

O irmão mais velho, oficial do glorioso exército nacional, não gostou da vida boêmia de Juvenal na Província e carregou o coitado para Belém, de onde logo o poeta partiu para o Acre.

Nunca casou. Viajando para o Rio Grande do Norte, morreu em Manaus, a 30 de abril de 1941, um dia antes do 1º de maio, Dia do Trabaho.

Logo ele, autor de O elogio da preguiça.

Seu decálogo são conselhos a um sobrinho, de partida para o Rio de Janeiro, a quem ainda alertava: “é preciso algum talento e muita coragem para praticar este programa.”

As informações sobre a sua vida e obra dificilmente chegariam aos dias de hoje sem a dedicação constante de sua irmã, e de Esmeraldo Siqueira, que reuniu cartas e textos inéditos do poeta num livrinho fundamental – Um boêmio inolvidável (Rio de Janeiro: Pongetti, 1968).

reprise


“Secretário meu faz tudo o que quer, só não faz o que eu não quero.”

Dinarte Mariz, 1903-1984 [citado por Diógenes da Cunha Lima, em Solidão, solidões: uma biografia de Dinarte Mariz. Brasília: Senado Federal, 2001]




Dicionário Ilustrado de Política


Política, segundo Djalma Marinho
“Em política, o pior inimigo é o mais recente.”
Política, segundo Dinarte Mariz
“Política é como revolução: quem ganha é herói. Quem perde é bandido.”
Política, segundo Teodorico Bezerra
“Política é feita de tudo que é bom: música, foguetão, dança e mulher.”

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Bom dia, Babilônia, bom dia, tristeza, bom dia Vietnã, bom dia tempo reencontrado




“Então me abraça forte e me diz mais uma vez
Que já estamos distantes de tudo”


O blog, blogueiro, coluna, quinta coluna, enfim, o subscrito, recomenda ao despertar a audição de: Tempo perdido, faixa 6 de Dois, Legião Urbana. 1986, Emi-Odeon.

Procurem nas prateleiras empoeiradas , desarrumadas, desconjuntadas, cascavilhem nos sebos, baixem o santo náutico.

Renato Russo em sua melhor forma, antes de virar um santo messiânico, cantando a história de todos nós que nos amávamos tanto, quando éramos jovens e não sabíamos – aqui e na companhia de uma outra Legião (com o dístico URBANA LEGIO OMNIA VINCIT), rejuvenesce qualquer manhã tão cinza.

Até porque começa com os versos:


“Todos os dias quando acordo...”


Há quem prefira a academia, pra caçar o tempo perdido.

(Há quanto tempo você não se apaixona?)

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

smoke, no smoke
















Dia internacional de combate ao fumo.

Os jornais estão cheios de publicidade contra.

Exagero meu.

Eu é que estou cheio de jornais e de jornais contendo publicidade contra o fumo.

Na verdade, acho que não passam de três anúncios.

Todos de planos de saúde, que, claro, querem economizar no tratamento futuro dos cancerosos.

Um diz (afirma, acredita, jura de pés juntos) que o cigarro é “uma arma de fogo tão potente que até a sua fumaça mata”.

Eu procurei entre os dedos do rapaz da foto a chave de um automóvel qualquer, mas, não; a arma que o senhor redator pensou era outra: entre os dedos, o polegar emulando o gatilho de um colt, tava lá um cigarro, tão branquinho, apenas aceso, que logo me veio vontade de fumar.

Outro anúncio – esse de página inteira – pergunta: “Você tá queimando o quê?”

Êpa! Que indiscrição é essa, me’irmão?

Veio-me logo em mente a página dos poetas elétricos (26.08):

“O baseado dá de cara com o espelho em brasa que lhe diz:
- SORRIA! VOCÊ ESTÁ SENDO FUMADO!”
[Carito, “O papel de cada um”]


Veio-me logo em mente Cascudo fumando um charutão.

E Orson Welles.

E Sylvia Kristel em Emmanuelle.

E Serge Gainsbourg fumando Gitanes, e seus fãs depositando em frente de sua casa em Paris milhares de maços azuis. E os vizinhos, todos bons burgueses, torcendo o nariz.

E Italo Svevo e a consciência de Zeno: "Já que me faz mal, nunca mais hei de fumar, mas antes disso quero fazê-lo pela última vez."

E Clarice Lispector incendiando-se.

E o tratado de Cabrera Infante, Fumaça pura, dedicado ao pai, "que aos 84 anos ainda não fuma".

E "o fumador de cigarros por profissão adequada", Fernando Pessoa, dividido entre a lealdade que prestava "À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que quase tudo é sonho, como coisa real por dentro."

E a capa de Catch a fire, Marley.

E Smoke e Blue in the face, dois filminhos legais de Wayne Wang inspirados em Paul Auster (principalmente pra quem não quer parar de fumar).

Sem cigarro, Tom Waits não existiria. Ao menos com a sua voz, ou seja, não existiria mesmo.

No caso de Waits tem também a bebida. Combinação mais que plausível. Perfeita. Vejam o que aconteceu com Marguerite Duras:

“Depois parei de fumar e só consegui fazê-lo voltando a beber.”

Marguerite Duras é escritora, daquelas que sabem escrever, o que é cada vez mais raro. Vai direto na canela, no osso, sem dó:

“Desde que comecei a beber, tornei-me alcoólatra.”

Lembra O amante, outra frase fantástica logo na primeira página:

Muito cedo em minha vida ficou tarde demais.”

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Contracorrente / uma tradução

recorte de jornal espanhol, década de 80

Em junho de 68, um mês apenas após o mítico maio francês (e no mundo todo), Pier Paolo Pasolini, escreveu uma poesia aos jovens romanos, depois de um violento confronto numa manifestação estudantil.

Expulso do Partido Comunista Italiano (PCI) alguns anos antes, enquanto homossexual, Pasolini foi, além de poeta, um dos mais importantes diretores do cinema italiano.

Na falta – ou desconhecimento meu – de uma tradução com certeza melhor, vai a minha, livre, como os versos de Pier Paolo:

O PCI para os jovens!

É triste. A polêmica contra
o PCI aconteceu na primeira metade
do decênio passado. Vocês estão atrasados, meninos
Agora, os jornalistas de todo o mundo (inclusive
aqueles das televisões)
puxam (como acredito que ainda se diz no ambiente
universitário) o saco de vocês. Eu, não, amigos.
Vocês têm a cara de filhinhos de papai.
A boa raça não mente.
Vocês têm o mesmo olhar malvado.
Vocês são amedrontados, inseguros, desesperados,
(certo) mas sabem também ser
prepotentes, chantagistas e seguros:
prerrogativas pequeno burguesas, amigos.
Quando ontem em Valle Giulia vocês brigaram
com os policiais, eu estava do lado dos policiais!
Porque os policiais são filhos de pobres.
Vêm da periferia, rural ou urbana que seja.
Quanto a mim, conheço muito bem
a maneira como foram meninos e rapazes,
o precioso um real, o pai ainda garotão também ele,
por conta da miséria, que não transmite autoridade.
A mãe, dura como um estivador, ou frágil,
porque doente, como um passarinho;
os tantos irmãos, a casinha
em meio à horta de erva-cidreira (em terrenos
alheios, loteados); os baixios
nas cloacas; ou os apartamentos nos grandes
conjuntos habitacionais, etc. etc.
E, depois, vejam como os vestem: como palhaços,
com aquele tecido áspero que cheira a quentinha,
repartição pública e povo. Pior de tudo, naturalmente,
é o estado psicológico ao qual são reduzidos,
(por mil reais ao mês):
sem sorrisos,
sem amizade com o mundo,
separados,
excluídos (numa exclusão sem igual);
humilhados pela perda da qualidade de homens
por aquela de soldados (ser odiados os fazem odiar).
Têm vinte anos, a idade de vocês, caros e caras.
Estamos de acordo, obviamente, contra a instituição da polícia.
Mas descarreguem sua ira contra a magistratura, e vocês vão ver!
Os jovens policiais
a quem vocês, por sacro vandalismo (de eletiva tradição
ressurgimental)
de filhinhos de papai, bateram,
pertencem a uma outra classe social.
Em Valle Giulia, ontem, aconteceu assim um fragmento
de luta de classe: e vocês, amigos (ainda que do lado
justo) eram os ricos,
enquanto os policiais (que estavam do lado
errado) eram os pobres. Bela vitória, então,
a de vocês! Nestes casos,
amigos, aos policiais se dão flores.
[...]


Traduzido por MIDC a partir de texto publicado em pagine corsare

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Fernando & Sabino


“Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem; porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice, nem tornarei mais a ferir todo o vivente, como fiz.” Gênesis, 8, 21
“O meu arco tenho posto nas nuvens; este será por sinal da aliança entre mim e a terra.” Gênesis, 9, 13



Petrópolis espia Mãe Luiza: uma aliança possível?

Não me canso de falar em Sabino, incomode a quem possa incomodar e independente de quem goste e idolatre-o: continuo achando que ele está muito além disso tudo, do bem e do mal, do paganismo e do fundamentalismo cristão, da direita e da esquerda, do reacionarismo e do esquerdismo superficial, ambos em plantão permanente. Daí que repercuto o que vier dele ou sobre ele (fazei isto em memória de mim, segundo Lucas, 23, 19). Como o e-mail do deputado Fernando Mineiro, que reproduzo, a seguir:

Caríssimo,

Lendo o texto [ver post “Um artigo inédito”, 14 agosto], aumentou a sensação do quanto Sabino nos faz falta. Aliás, nestes tempos de impactos, lembro dele, vez em quando. Bem sabemos de que lado ele estaria...
O conheci no início dos anos oitenta, quando morei em Mãe Luiza (81 e 85) e ele já estava lá, partilhando o pão com os do morro. Companheiro.
A sua simplicidade poderia levar os desavisados a confundi-lo com um simplório. Os que o conhecemos, bem sabemos de seu profundo humanismo. Culto, sem nenhuma afetação, Sabino
vivia antenado e tinha opiniões/visões/opiniões//projetos sobre o mundo.
Foi dele que ouvi, no começo dos oitenta, reflexões sobre a obra de Gramsci. Conceitos como contra-hegemonia, guerra de posição e guerra de movimento, intelectual orgânico, relação entre cultura e transformação sócio-política, entre outros temas caros à elaboração gramsciniana, eram-lhes familiar. Aliás, à época, ele traduziu e me emprestou um belo texto do Gramsci (acho que um fragmento de Cartas do Cárcere) sobre educação.
Naquela época, ele também me passou um livro que me ajudou sobremaneira o olhar/buscar/entender o eterno processo de transição brasileira. Refiro-me a O Leopardo, obra de Lampedusa – um profundo olhar sobre a decadência da monarquia e a ascensão da burguesia italianas. É desta obra a frase que se tornou famosa “mude-se alguma coisa, para que tudo fique como está”. Dele também a indicação do filme O Leopardo (acho que de Visconti, anos 60). Sabino foi articulador, entre outros movimentos, da Pastoral Operária, da Consulta Popular, das Assembléias Sociais. Seu compromisso, assumido à luz de profunda radicalidade cristã, era a emancipação dos setores populares.
Com ele, participei de vários encontros, debatendo os mais variados temas.
Foi dele que recebi um telefonema fundamental para minha resistência ao massacre sofrido pelo PT em 2005. Numa tarde de agosto de 2005, após dar uma entrevista a uma rede de televisão sobre a crise do PT, em que afirmava a necessidade de se separar os erros individuais da instituição partidária e afirmava que, a partir de nossos próprios erros, os adversários queriam mesmo era a jugular do PT e do Governo Lula, recebi uma ligação de Sabino me dizendo: “Você não pode desistir, porque temos um projeto muito maior e o que está em jogo é a história da luta de nosso povo. Brincando me disse que, mesmo que eu não acreditasse em orações, ele estava ali orando e torcendo para que nós, petistas, tivéssemos força para suportar e resistir.
A última vez que o vi e conversei com ele foi após um ato de protesto contra a violência contra as mulheres, na praça sete de setembro. Ele estava animado, esperançoso. Aliás, como sempre. Alguém se lembra de ter visto Sabino passar algum tipo de desânimo? Perguntei pela saúde e ele, naquele jeito relaxado consigo mesmo: “Tô bem, tô me cuidando, vou levando”. Até mesmo quando se internou, foi escondido.
Dias depois, viajou à Itália e se foi de vez, sem se despedir ou se despedindo, a seu jeito. Se foi como viveu: discreto.
E aqui vou rememorando isto, ao ler este texto.
E ficamos aqui, na cidade dos reis/rainhas/príncipes/princesas. Com uma saudade imensa de quem nos ensinou a resistência e o orgulho plebeus.
É isso.

Mineiro

domingo, 26 de agosto de 2007

Circuladô de fulôres
















[Década de 40]
“Intelectual no Rio Grande do Norte, [...] é na maioria o indivíduo que anda com um livro enfiado no sovaco e com um suplemento literário todo amarrotado na mão e com uma autêntica cultura de almanaque.”
DJALMA MARANHÃO, Diário de Natal, 17 de abril de 1949, em Esquina da Tavares de Lira com a Dr. Barata, centro convergente e irradiador da vida natalense. Natal: Sebo Vermelho, 2004


[Década de 60]
“(o reino é tão de treva /que – só temor e sono, /não sabe o rei que vela, /talvez, o próprio trono).”
MIGUEL CIRILO, Os elementos do caos. Natal: Sebo Vermelho, 2001


[Década de 80]
“Eu andava pela cidade como um morto anda. Completamente sem esperança, eu me sentia exausto de existir.”
BLECAUTE, em Franklin Jorge, Spleen de Natal. Natal: Edufrn, 2001


[Década de 00]
“aos 20 anos /era um jovem poeta /promissor //aos 30 anos /era um jovem poeta //aos 40 já era”
ADRIANO DE SOUSA, Saartão. Natal: Edição do Autor, 2004


[1949]
“Eu avancei para muita coisa e terminei em nada.”
JORGE FERNANDES, única entrevista, concedida a Lenine Pinto, em 1949, para o Diário de Natal e suplemento do Diário de Pernambuco.




sábado, 25 de agosto de 2007

rios, pontes & suicides



A idéia não é minha, esclareço de cara. É de Antonio Tabucchi, um escritor italiano que durante alguns anos, especialmente no meu exílio pessoal e geográfico, exerceu sobre mim um fascínio que beirou a obsessão.

É de Tabucchi, pois, a idéia de elencar lugares adequados ao suicídio, ou, como diz, ao “voluntario trapasso” – a passagem voluntária. Está no último “quase-conto” de um livrinho simpático, I volatili del Beato Angelico (Palermo: Sellerio, 1994), sob o título Última chamada (que poderia também ser traduzido, desde que ao pé da letra, como Último convite – mas me parece mais próxima a primeira tradução que escolhi, como um aviso sonoro num aeroporto, chamando os passageiros para uma derradeira viagem).

A um certo ponto ele esclarece: “Indicar um lugar onde ainda podemos suicidarmo-nos corretamente, em total liberdade (...), não deveria ser entendido como um serviço de utilidade pública (até poderia sê-lo), mas como um convite à reflexão (...) sobre a liberdade: um abstrato espírito de iniciativa, exercido sobre nós mesmos, e que pode ser colocado em prática, sem cair nas formas mais vis e vulgares às quais o suicídio parece inevitavelmente relacionado nos países considerados industrialmente avançados (...)."

Apaixonado por Portugal e pela língua portuguesa (foi o primeiro tradutor de Zero, de Ignácio Loyola Brandão, publicado na Itália antes mesmo que no Brasil), a escolha de Tabucchi sobre Lisboa, como um lugar “cheio de possibilidades”, é mais que natural: é o desejo de morrer onde gostaríamos de viver.

(Houve uma época onde essa escolha – de morrer de um modo não natural – caía naturalmente sobre Veneza.)

Pragmático, Tabucchi começa justificando sua escolha pautando um problema inerente à morte, conseqüência inevitável e incontornável: o cadáver. Que fazer com o corpo inerte, morto? Consulta-se a lista telefônica (como hoje não se faria mais neste admirável mundo pseudo-novo de pontos cons e blogspots) em busca dos serviços fúnebres: “Dezesseis páginas nas ‘páginas amarelas’ são muitas, deve-se admitir, especialmente se levarmos em conta que Lisboa não é uma cidade enorme.”

Tenho um catálogo em casa, 06/07, da Cidade dos Reis: não passa de duas páginas, nem seguindo a recomendação “consulte também... cemitérios”. Acho que nós, principezinhos, não dispomos mais que uma dúzia de agentes pra dar fim a esse objeto inútil que conduzimos pra lá e pra cá, desgraçadamente. E pra dar início ao moto perpétuo que só me faz recordar Bowie: “Ashes to ashes, dust to dust...”

“Resta apenas a dificuldade da escolha, continua o escritor. Daí a publicidade, farta, exuberante, desavergonhada, das funerárias lisboetas. Não vou me deter nas observações do autor, vou direto ao amarelo das nossas páginas.

A mais “importante”, ou ao menos assim é se me parece, dado o anúncio de página inteira, tem nome de santo e ostenta o dístico “desde...”, o que confere antiguidade e, conseqüentemente, respeito e tradição. Não se deve, claro, entregar o próprio corpo a qualquer empresa de fundo de quintal, aberta ontem – sabe lá se existirá daqui a algumas décadas, quando nosso cadáver... deixa pra lá. A qualidade dos serviços é listada em quase meia página: vai das urnas em “diversos padrões” à “higienização” através de “Tanatopraxia” (que obviamente refere-se a Tânatos, deus grego da morte, e diz respeito, informa o Houaiss, à qualquer técnica de conservação de corpos.

Mas, mais importante, as flores são naturais, o acompanhamento é profissional, a capela é ecumênica (estacionamento próprio), e, para os mais vaidosos, placas, anúncios, livros de presença, fazem parte do item “Homenagens”.

Escolhido o que fazer – e através de que empresa – com o próprio corpo, resta ao pretenso suicida, seguindo o roteiro de Tabucchi, determinar lugar e forma de morrer. “Por sua estrutura e conformação, me parece a vocação natural de Lisboa: o salto.” O salto no vazio é uma atração soberana para os “espíritos em fuga”, diz o italiano, e “contém uma espécie de rebelião à condição humana de bípede, tende ao espaço, às grandes dimensões, ao horizonte.”

Lisboa é, então, a cidade perfeita. Organizo uma pequena lista com as informações do autor:
  • Aqueduto das Águas Livre e Torre de Belém (“lugares históricos para suicídios históricos”)
  • Elevador de Santa Justa (“lugares refinados para suicídios art-déco”)
  • Ponte 25 de abril (“lugares mecânicos para suicídios construtivistas”)
  • Estátua do Cristo-Rei (“indiscutivelmente o mais adapto ao salto”, ainda mais porque, embaixo, corre o Tejo, “pronto a acolher, a arrastar o corpo do voluntário, tornando inútil até as mais solícitas atenções das agências funerárias de Lisboa”)

Atrevo-me a adaptar a lista à Cidade dos Reis:
  • Forte dos Reis Magos e Igreja do Galo (temo que não seja suficiente e invés de um corpo morto teremos um aleijado)
  • Midway Mall (nossa idéia de requinte, com o mesmo problema anterior, além de que teríamos um trabalhão pra quebrar os vidros, e a passarela é para pedestres, isto é, sem-carros, o que descarta a maioria de nós, a gente de bem da Província)
  • Ponte de Igapó (a molecada salta de lá sem quebrar o quengo, o que pra nós, claro, é sinal que não conseguiremos escapar ilesos – o problema é a poluição do Putigy)
  • Ponte de Todos (resta saber quando será inaugurada, o que a torna um lugar perfeito para os suicídios eternamente adiados)

Mas o melhor suicídio de todos é, realmente, aquele não concluído, como a tentativa frustrada dos quatro cavaleiros do apocalipse às margens do Capibaribe, reconstituída no post abaixo, Roleta Russa. Ainda mais depois da visão de um antonioni – A noite. E que coincidiu com a notícia, ontem, de um documentário americano, The bridge, sobre suicídios na ponte de San Francisco. Daí para relembrar do roteiro de Tabucchi foi um pulo. Ou um salto.

Bom dia, Babilônia, bom dia, tristeza, bom dia Vietnã, bom dia wonderful world


O blog, blogueiro, coluna, quinta coluna, enfim, o subscrito, recomenda ao despertar a audição de: What a Wonderful World, faixa 1 do disco homônimo de Louis Armstrong. 1968, ABC Records.

Procurem nas prateleiras empoeiradas , desarrumadas, desconjuntadas, cascavilhem nos sebos, baixem o santo náutico.

O negão Louis, milhares de dentes infinitamente brancos mascando trompetes e um vozeirão inenarrável, aqui e mesmo na companhia das imagens propositadamente ambíguas de Good morning, Vietnam (Barry Levinson, 1987), anima qualquer alma matutina.

Há quem prefira a guerra hormonal das academias.

E como hoje é sábado, e Zé Bezerra disse tudo sobre a música daquele sábado, a recomendação continua em mais 9 top hits:

2- BANG-BANG, PAUL WELLER

3- SOMEDAYS, NENEH CHERRY

4- HOUSE OF THE RISING SUN, NINA SIMONE

5- (SITTIN’ ON) THE DOCK OF THE BAY, OTIS REDDING

6- DIARABY, ALI FARKA TOURE E RY COODER

7- PISSING IN A RIVER, PATTI SMITH GROUP

8- 7 SECONDS, YOUSSOU N’DOUR E NENEH CHERRY

9- GUAJIRA, SANTANA

10- PALAVRAS, PALAVRAS, MAYSA

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Roleta Russa


ou
La commare secca
ou
A noite
ou
Rios Vermelhos


CELSO MARCONI: "... saímos os quatro, do cine São Luiz, e caminhamos, em silêncio, acompanhando a margem do Capibaribe. Alguém jogou uma pedrinha na água, formaram-se aqueles círculos oleosos, e Marcius Frederico começou a gritar, gritar... Ao improviso, tentou o salto para a morte."

JOMARD MUNIZ DE BRITO: "... saímos os quatro, do cine São Luiz, e caminhamos, em silêncio, acompanhando a margem do Capibaribe. Foi aí que Moacy Cirne começou a correr desembestado em direção ao rio. Era claro que seus intuitos eram suicidas: com muito custo conseguimos agarrá-lo."

MARCIUS FREDERICO: "... saímos os quatro, do cine São Luiz, e caminhamos, em silêncio, acompanhando a margem do Capibaribe. Foi na noite em que Jomard desafiou a morte com gestos tresloucados."

MOACY CIRNE: "... saímos os quatro, do cine São Luiz, e caminhamos, em silêncio, acompanhando a margem do Capibaribe. Nas imagens dos meus alumbramentos me recordo apenas de Celso Marconi sussurrando ao pé do ouvido das águas encarnadas: 'Quero morrer, quero morrer...'”

[Livremente inspirado em Moacy Cirne, Cinema, cinema – os filmes dos meus sonhos. Natal: Sebo Vermelho, 2003]

[meras coincidências não existem]



quinta-feira, 23 de agosto de 2007

um manoel, uma encomenda e o infinito



[...]
XXI

Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho quase 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais.
ou no Viterbo –
A fim de consertar minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para a minha erudição tiro nos almanaques:
- Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
- Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
- Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:
- Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco.
Etc
Etc
Etc

Maior que o infinito é a encomenda.


Manoel de Barros, “Uma didática da invenção”. Os cem melhores poemas brasileiros do século. Organização Italo Moriconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

uma carta de 66 para 07, de Glauber para Jomard, do Rio para Recife (e um morto, de Portugal para o Brasil)

“o que vai por aí neste distante Pernambuco do Recife? como agüentas a província brutalizada, a lama do subdesenvolvimento, o feijão, o angu, as velhas lotações, as estradas sujas, as ruas esburacadas, as moças sonhadoramente ansiosas na longínqua maquillage, a brutalidade adolescente dos rapazes, os velhos latifundiários, o arrivismo, os jovens poetas sinceramente dispostos a tudo salvar?”

[Glauber Rocha. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997]



Glauber, é claro, é Glauber Rocha. Jomard é Jomard Muniz de Brito – aquele mesmo para quem o baiano escreveu o prefácio de Do modernismo à bossa-nova, naquele distante meia-meia da missiva; aquele mesmo que um certo dia na Província dos Reis alcunhou-a (talvez com conseqüências funestas pra quem tomou ao pé da letra a licença poética) de “Londres Nordestina”.

O pernambucano, em entrevista a Carlos Adriano para a revista eletrônica Trópico, explicou a sua desconstrução geográfica, em prol de um Brasil não mais dividido entre Província e Metrópole: “João Pessoa de repente Rio de Janeiro. Olinda barbaramente Paulicéia. Natal absurdamente Londres desnorteada. Campina Grande desgovernada por Bráulio Tavares.”

Bela intenção, Jomard.

Mas, que a carta de Glauber preserva uma realidade imutável, não se pode contestar. Se fores nordestino da gema, experimentas colocar o nome do teu estado e da tua cidade no lugar do “Pernambuco do Recife”, e verás que cai como uma luva, mantendo a coerência do texto.

E Glauber?

Glauber morreu. Praticamente no exílio. Quem chegou ao Brasil na noite de 21 de agosto de 1981 foi um corpo doente, diagnosticado com pericardite viral. Durou pouco na Terra do Sol e da Embrafilme. Na madrugada do 22, há vinte e seis anos, Deus e o Diabo foram vistos na Clínica Bambina, RJ: estavam juntos, de mãos dadas, acendendo uma vela para o mais importante cineasta brasileiro.




O santo guerreiro, em detalhe de quadro de Flávio Freitas. Não, ao menos aqui não existe dragão da maldade.





"Tropical Analysis: The Films of Joaquim Pedro de Andrade"


Aliás,
Glauber foi velado no Parque Laje, cenário, entre outros, do seu Terra em transe e de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade...
... que, aliás...
... estará com uma retrospectiva no 45th New York Film Festival, de 29 de setembro a 9 de outubro, numa das mostras paralelas – as outras são "Views from the Avant-Garde", filmes e vídeos experimentais, e "Chinese Modern: A Tribute to Cathay Studios", sobre filmes produzidos nos famosos (sic) estúdios de Hong Kong.

O Brazyl sempre em companhia exótica.

O 45th New York Film Festival tem ainda Dylan em dose dupla: I’m Not There (“a rumination on the life of Bob Dylan”) e The Other Side of the Mirror: Bob Dylan Live at the Newport Folk Festival, 1963-1965.



Bob Dylan meets Miguel Cirilo


In Paterson that’s just the way things go.
If you’re black you might as well not show up on the street.
‘Less you wanna draw the heat.


[“Hurricane”, Bob Dylan e Jacques Levy. Desire. Sony Music, 1976 – para ver a letra na íntegra, clique aqui]



no carrosel dos mortos,
em sangue me descubro:
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO

POR DENTRO NEGRO MAIS NEGRO
MEUS IRMÃOS SÃO TODOS
NEGROS.
NEGRO O ROSTO BEM AMADO
NEGRO O MEU NOME: DANADO.

círculo negro sobre mim
e sangue até os joelhos.

olhos cegos cegos cegos:
furaram todos os olhos.
são todos os olhos – negros
são negros todos os cegos.

[“o gesto”, Miguel Cirilo. Os elementos do caos. Natal: Sebo Vermelho, 2001]

Bom dia, Babilônia, bom dia, tristeza, bom dia Vietnã, bom dia Furacão


O blog, blogueiro, coluna, quinta coluna, enfim, o subscrito, recomenda ao despertar a audição de: Hurricane, faixa 1 de Desire, Bob Dylan. 1976, Sony Music.

Procurem nas prateleiras empoeiradas , desarrumadas, desconjuntadas, cascavilhem nos sebos, baixem o santo náutico.

Bob Dylan na sua melhor forma, punhos, nocaute auditivo, cantando a história do boxeur negro “Hurricane”, aqui e na companhia de Scarlett Rivera, anima qualquer alma matutina.

Há quem, ainda, prefira a academia.

Não de boxe, claro.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

crônica de ant’ontem publicada hoje



Cansei



A festa do vizinho “tá rolando”, como bem se diz, desde o meio do dia.

Já são quase seis.

Forró, claro. E tendas, e garçãos, e empadas, e cerveja, claro, claro, claro, claro.

Até umas três a sanfona ainda se fazia ouvir. Mas faz tempo que impera um teclado safado e onipresente preenchendo todos os espaços e arrombando – no sentido sexual, mesmo – as trompas de falópio de todos, as minhas inclusive, que nem fui convidado.

Nem convidado, mas tão por dentro da festa quanto os convivas. Ou são os seus rumores que estão aqui, dentro da minha (negrito, sublinhado, itálico) casa. Penetras amplificados.

Vez em quando dou uma espiada. Ninguém parece dançar. Que diabo fazem, sentadinhos ali, entornando cerveja mezzo quente mezzo fria, engurgitando massas farináceas com recheio de azeitona e ou catupiry?

Balançam a cabeça, fingem conversar, fingem ouvir o que o outro não tem a dizer. E os dedinhos amassam a forminha de papel da empadinha, do salgadinho, do camarão empanado, da coxinha oleosa feita com uma mistura que remete ao sabor de bípede emplumado.

Capto o som das ruas de Cidade dos Reis. Sem esforço. Não conheço nenhuma das músicas (canções?), mas o arranjo é quase sempre o mesmo – bateria eletrônica, teclados, uma voz masculina, outra feminina, assumidamente pouco canoras. A mensagem, aqui, é o que importa.

Alguns versos:

“Ah, essa paixão virou chiclete
Grudou no seu coração
Virei tiete”

Ou:

“Tá rolando um zum-zum-zum
Que você tá me traindo
Por aí se divertindo”

A melhor, segundo a humilde opinião deste neófito:

“Viemos aqui pra quê?
Pra conversar ou pra beber?
Então, vamo beber
Vamo beber
Vamo beber
Vamo beber
Vamo beber”

Lá pras tantas, depois de seguir a recomendação explícita, os ânimos se aquecem, o crooner vai do nordeste ao sul maravilha trocando as combinações do teclado-orquestra: Cazuza, Renato & seus Blue Caps, e... Xuxa. Quem imaginaria tal harmonia de combinações?

Pelos gritos dos convivas, imagino que eles mesmos.

Se Deus existe, a ressaca, amanhã, vai durar até a hora do Faustão.

Não, do Fantástico.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Uma ferida não cicatrizada


Sábado, apenas soube da vitória de Deserto feliz e do seu diretor, o pernambucano Paulo Caldas, em Gramado, e-meei Augusto Lula – quem, sinceramente, é difícil descrever.

Diretor de cinema? Diretor de vídeo? Poeta visual? Visionário e sonhador de um “Rio Grande sem Sorte” (como gosta de repetir, citando Bosco Lopes) com um tiquinho mais de “sorte”, espécie na produção de um cinema que espelhe nossas contradições?

Todas as descrições poderiam ser corretas.

O que é certo é que vejo em Augusto – apesar de alguns entreveros que já tivemos – alguém verdadeiramente capacitado para realizar um filme “de verdade” na Província dos Reis, seja pela sua visão de mundo, de cinema, de cultura local, seja pela sua grande experiência no vídeo comercial, seu ganha-pão diário.

As perguntas foram apenas duas: qual o significado de um estado nordestino, fora do eixo Sul Maravilha, vencer em Gramado; e, quando a sigla RN embarcará para o RS, com uma película própria na bagagem.

Augusto Lula:

“São perguntas difíceis. Primeiro, os festivais estão em decadência – no Brasil são mais de 200. Gramado envelheceu e agora tenta premiar produções mais autorais – e que, todos sabem, não terão grande público – para tentar ser o que nunca foi: cult.

“O dia que o Rio Grande sem Sorte pintar em Gramado terá sido tarde demais, ‘como se chegasse atrasado andasse mais adiante’ (Leminski).

"Os vídeos que a gente fazia naquele tempo, fim dos 80, começo dos 90, hoje ninguém conhece. Hoje, os Cineastas de Natal nem conhecem a palavra videomaker.

“Sobre fazer Cinema ‘de Verdade’, penso que o RNsS não alcançou as condições econômico-culturais para realizar uma arte que é conseqüência direta da revolução industrial. A impossibilidade de realizar de maneira mais banal uma arte do século retrasado é a ferida não cicatrizada da nossa geração.”

domingo, 19 de agosto de 2007

Tradutor italiano de Bergman mora em Natal



“Sempre tive uma grande admiração, e ainda tenho, pela sociedade sueca, pelo ‘welfare’ [state], pela social-democracia de Olaf Palme.”

Começa assim, em tom de resgate da memória perdida, a explicação de Alberto Criscuolo, passaporte italiano, cidadão do mundo, para o como veio a ser o tradutor do roteiro de O sétimo selo, a obra-chave de Ingmar Bergman.

Morando em Natal há quase dez anos, interrompidos aqui e ali por curtas temporadas em Roma, onde ainda mantém um apartamento, Criscuolo começou a aprender sueco trabalhando na fábrica da Alfa Romeo. “Três meses de trabalho duro, mas com um salário muito próximo aos dos dirigentes – o que já demonstra uma profunda justiça social.”

Alguns colegas do jovem operário italiano eram refugiados políticos, alguns da Eritréia, outros do Peru. Talvez tenha começado ali, na fria Escandinávia, junto a outros exilados oriundos de climas quentes, seu fascínio pelo sol. E sua admiração por uma sociedade mais justa e igualitária:

“Era um tratamento de primeira classe concedido a nós trabalhadores que não mais encontrei em nenhum lugar do mundo, seja pelo salário, seja pelo respeito à pessoa humana.”

Em 1988 ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade de Estocolmo e ali concluiu o doutorado. Foram oito meses, que ele define como “um período dourado”. Ao lado dos estudos, os esportes invernais e as festas universitárias ajudavam a construir uma atmosfera de alegria constante. Mesmo assim, o italiano reconhece que o sangue latino encontra ainda algumas barreiras no norte do mundo – “fica difícil, para nós, latinos, inserir-se e compartilhar completamente dos hábitos dos suecos.”

A obra de Bergman já lhe era conhecida, desde os tempos da Universidade de Roma, na Faculdade de Línguas e Literatura Estrangeira. “Fiquei logo fascinado”, lembra, especialmente pelo Det sjunde inseglet, título original de O sétimo selo. Depois do doutorado, volta a Roma, e em 1991 retorna a Estocolmo com uma idéia fixa: traduzir o roteiro. Para a sua surpresa só encontra edições em língua inglesa. Vai à Biblioteca da Universidade, vai à Biblioteca Real, nada. “Eu era prisioneiro do desejo absoluto de possuir o livro, de tê-lo vizinho, de reler algumas partes, de reproduzir na primeira pessoa os vários diálogos do filme”, escreveu no posfácio da edição italiana (Milano: Iperborea, 1994).

Encontra uma cópia do original datilografado na cinemateca do Filminstitutet. Não era permitido reproduzir nem tirar o documento da sala de leitura. Sentindo-se “um contrabandista”, copia trechos do roteiro em pequenos pedaços de papel, sem ser visto. Volta ao instituto, pede uma cópia. Sugerem que procure a editora de Bergman, a Norstedts Förlag, que consulta o diretor: “Bergman aceitou”, resume, ainda contente com o acontecido há mais de quinze anos.

Durante a tradução, Criscuolo procura respeitar as peculiaridades do texto original, que define como “muito próximo à poesia”. O roteiro apresenta diferenças evidentes em relação ao filme: “É mais rico das indicações que Bergman faz aos atores e se percebem os cortes que ele fez na versão cinematográfica.”

O tradutor não teve nenhum contato direto com o autor: “Tinha um caráter muito reservado e não quis forçar um encontro. Vivia só, numa ilha muito bela e selvagem, Fårö”.

Em 1994 sai a primeira edição de Il settimo sigillo, o 41º de uma coleção dedicada a autores nórdicos. “Até hoje é o livro mais vendido pela editora, já está na sétima edição”.

Um ano depois Alberto Criscuolo parte para o Brasil, um mês em Salvador, carnaval. “Voltei para a Itália com o ‘mal del Brasile’”, conta, numa referência cruzada à Síndrome de Stendhal, que acometia os viajantes estrangeiros diante das obras de arte italianas.

Viaja pela Amazônia, sempre só. Durante seis meses vive em Belém do Pará. Conhece todas as grandes metrópoles brasileiras. “Quando um amigo de Natal me convidou – ou fui eu quem o obrigou a convidar-me – vim conhecer a cidade.”

As lembranças de então chocam-se com a sua atual visão da cidade: “Natal em 98 era uma pequena jóia – mar, sol, as pessoas simples e hospitaleiras. Em menos de dez anos, sem um plano regulador, com arranha-céus que lembram a periferia de Roma, com um investimento pesado num turismo miserável, uma cidade sóbria e alegre, como Natal, mudou, com a chegada de grandes quantidades de dinheiro estrangeiro, lavagem de dinheiro sujo, especulações em cimento e carne humana...”

A imagem de uma cidade inteira jogando xadrez com a morte me vem em mente, enquanto Alberto continua sua reflexão sobre a perda dupla recente. “Bergman e Antonioni são os dois últimos diretores que deixam o século passado finalmente às nossas costas. Bergman nos deixa uma grande mensagem, primeiro artística, depois humana, em qualquer modo atemporal.”

O tradutor não vê muitas semelhanças entre o conterrâneo e o sueco, senão “o desejo em comum de representar a vida, enfatizando a incomunicabilidade do homem”. Enquanto Antonioni tem uma obra “mais cinematográfica”, o olhar de Bergman (“e seu coração”, acrescenta) é sempre teatral:

“É o testemunho da melhor tradição nórdica, de Ibsen, de Strindberg. Talvez o cineasta mais próximo dessa perspectiva bergmaniana seja Buñuel (basta recordar O anjo exterminador e Simão do deserto, por exemplo).”

Para Alberto Criscuolo, Blow-up é o melhor filme de Antonioni. Entre seus bergmans preferidos cita Morangos silvestres (57), O olho do demônio (60) e O rosto (58). Além, é claro, de O sétimo selo.


Em tempo: o tal “amigo de Natal”, a que se refere Alberto, é o subscrito – que, absolutamente, não se sentiu coagido a convidá-lo. Conheci Alberto, realmente, em Roma. Era fascinado pelo Brasil e me olhava com um sentimento duplo de admiração e confusão: que fazia eu ali, longe do Brasil com que ele tanto sonhava? É claro que, como nos filmes franceses, cherchez la femme – a de Alberto era uma morena, quase índia, estudante de odontologia em Belém.

Da minha parte, a primeira vez em que fui à sua casa, além de me surpreender com o gigantesco apartamento, um pequeno detalhe me chamou ainda mais a atenção: um pequeno volume de Il settimo sigilo – e a revelação de ser ele o tradutor. Era a cópia que ainda hoje tenho comigo.

Quando voltei para Natal, no final da década de 90, ele me liga um dia: estava no Brasil, a chuva diária sobre a capital paraense, o calor amazônico, os mosquitos, tudo o incomodava – é óbvio que a história de amor tinha acabado. Eu o convidei para conhecer Natal, como sempre fiz com meus amigos “estrangeiros”. Ele veio. Ficou. Vagabundou um pouco. Teve uma jangada de pesca. Trabalhou com hotéis. Foi guia para os turistas conterrâneos. Hoje comanda o Projeto Poseidon, que, além de oferecer passeios em barco a vela, incentiva a prática da natação em mar aberto. Já tem programado para o novembro próximo uma competição de 2.000 metros em Ponta Negra. “Não será apenas um evento esportivo, mas também social”, explica Alberto, que tem um desafio ainda maior a conquistar e muito mais extenso do que dois quilômetros de oceano ou um roteiro de Bergman: abrir uma escola de vela para meninos e meninas carentes.




Se Bergman está colocado à esquerda e Antonioni à direita, quem, na sua prateleira, seria o todo poderoso do cinema? Cartas eletrônicas para a redação virtual de cidadedosreis. (A presença dos diretores e filmes na foto não quer, absolutamente, induzir os leitores a nada – foram apenas escolhidos rapidamente para um retrato na parede deste sítio.)

sábado, 18 de agosto de 2007

Em Gramado


Pernambuco leva melhor diretor (júri oficial) e melhor filme (júri popular): Paulo Caldas e o seu Deserto feliz.

Quando o Ryo Grande estará presente na competição é a pergunta do final de noite.

Na Ilha de Fårö


Enterro de Bergman, hoje.

Poucas pessoas, entre elas Liv Ullmann, que chegou a viver com o diretor na ilha e foi sua atriz em sete filmes, e Bibi Andersson, 16 filmes (entre eles os comerciais para o sabonete Bris).

Como o funeral foi para poucos, você pode ver as duas atrizes em Persona, 41 anos atrás, a cara de uma, a cara da outra.

Corra pra locadora.

Amanhã, dê um pulo aqui, pra ler mais sobre Bergman.

Em Uppsala





Por favor, Manuela, quando perguntarem por mim,
diga que eu estou morando em Uppsala,
sou acendedor de velas na catedral gótica
e que meu novo nome é Erik.
Se o telefone insistir,
não tenha dúvidas, explique
que a minha mais recente invenção
foi feita no Zâmbia e que estou satisfeito
porque as moças românticas dos tongas
recitam nas praças meus poemas
quase sem sotaque.
Diga-lhes que toda busca é inútil
como uma paisagem sem cor,
e que esquecer é uma bela
apresentação do silêncio,
suas vestes e nossa morada última.
Manuela, você perdeu meu endereço
entre os recortes do jornal de ontem
convenientemente incinerados.
Talvez, eu já me chame Petrovi’c
e ganhe dólares ambiciosamente verdes
em Dublovinik, ou seja renascido
Zurbarán fazendo das aspas de touro
curvos trabalhos ornamentais
em lugar da Estremadura
certamente, Manuela, eu não nasci para ficar aqui,
Mas para ser mudança
até a derradeira mineralização,
avise, Manuela, que eu mesmo me busquei
muitas vezes nos cristais da manhã, nos espelhos baços,
na memória consangüínea,
e continuarei buscando.
Quase, certa vez, me descobri,
sob o pseudônimo aspirado de Hatzel,
o que usava cimitarras pra comer.
Hatzel, Hatzel , claro!,
ou Manuela! Manuela, bata
o meu requerimento de ausência.

Diógenes da Cunha Lima (Nova Cruz, 1937). Requerimento de ausência, in Memória das águas. Rio de Janeiro: Lidador, 2005


[“Você com Diógenes não está sozinho. (...) Você nunca está sozinho. Diógenes é um grupo
Luís da Câmara Cascudo]


Em Stockholm


Não me sai da memória que estou no torrão que viu nascer Greta Garbo, que, certamente, neste momento, ainda se encontra aqui de passeio. E em cada esquina eu pressinto que a famosa estrela me vai aparecer. E realmente, mais de uma vez estaquei para ver passar, indiferentes, várias Greta Garbo sósias, e ainda mais cheias de mistério.

Jayme Adour da Câmara, Oropa, França e Bahia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933


Na Cidade dos Reis


Natal, de 1959 para cá, é que está tomando conhecimento com Bergman. Muitos anos antes, assistimos aquele admirável “Tortura do desejo” (“Hets”), dirigido por Alf Sjöberg, e com cenário desse jovem que alguns anos mais tarde substituiria o seu antigo mestre, dando-nos o que de melhor tem hoje o cinema escandinavo. Mas, no ano passado, o mesmo Cinema Nordeste, que parece com o propósito de nos mostrar o cinema de Ingmar Bergman (bendito propósito!) exibia a comédia “Uma lição de amor”, de 1954 (...). Este ano, em maio, exibiu o mesmo cinema, o brilhante “Sorrisos de uma noite de amor”, de 1955 (...). Agora, vemos esse “Quando as mulheres esperam”, de 1952, anteriormente.

Berilo Wanderley, in Cine Lembrança, Natal: Sebo Vermelho, 2004


sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Uppsala, RN


Uppsala é aqui:

Amanhã, o poeta Diógenes da Cunha Lima, reencarnado num certo Erik, acende velas na catedral da cidade sueca.

Domingo, Alberto Criscuolo, tradutor italiano de Bergman, conta como veio dar com os costados na Cidade dos Reis.

O mundo é um moinho, já dizia Cartola.

calendário terceiro dia


Há “exatos” 38 anos, Jeff Beck, Crosby, Stills, Nash & Young e Jimi Hendrix, entre outros, subiam ao palco de Woodstock, no terceiro dia de peace&Love.

Em New York, USA.

Longe dali, em London Town, UK, e cinco anos antes, Pete Best entrava pra história justamente por sair dela: os Beatles trocam as suas baquetas pelas de Ringo Starr.

Ainda mais longe, fechando um triângulo imperfeito no mapa-múndi, e duas décadas depois de Woodstock, a censura investia contra um rock.

No caso, o “rock das aranhas”, de Raul Seixas.

Só podia ser no Brasil.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Três diálogos policiais


Detalhe de Torpedo 1936, do espanhol Jordi Bernet
- Afinal, quem manda nesta cidade?
- Os que mandam em todas as cidades... os tiras, os vigaristas e os ricaços.
DASHIELL HAMMETT [citado no O livro dos camaleões, Rio de Janeiro: Anima, 1985]
- Que tipo de homem é esse prefeito?
- Que tipo de homem é o prefeito de qualquer cidade? Um político. Acha que é ele quem dá as cartas? Negativo. Sabe o que está errado com nosso país, meu filho?
- Pelo que me consta, o excesso de capital congelado.
- Um cara não pode se manter honesto nem que queira – disse Hemingway. Isso é que há de errado com o nosso país. Te arrancam até as calças se você se mantém na linha. Você tem que meter a mão na bolada, senão vai passar fome.
RAYMOND CHANDLER, Adeus, minha adorada. Porto Alegre: L&PM, 1999
- Vou telefonar para ela quando sair para o almoço.
- Por que não telefona daqui e economiza o dinheiro?
- Gosto que os meus telefonemas sejam de fato particulares.
- Acha mesmo que eles se dão ao trabalho de escutar nossas conversas ao telefone?
- Você não faria o mesmo na posição deles?
- Creio que sim. Mas eles devem gravar uma porção de porcarias!
GRAHAM GREENE, O fator humano. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

calendário, segundo dia


Há “exatos” 38 anos, Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Grateful Dead, The Who e Santana, entre outros, subiam ao palco de Woodstock, no segundo dia de peace&Love.

Em New York, state.

Não muito longe dali, em NYcity e cinco anos depois, os Ramones sobem ao palco do lendário CBGB.

E Elvis bate as botas, dois anos depois dos punks, oito depois dos hippies.

Em Memphis, Tenesse.

Há controvérsias.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Extra! Extra! Tradutor italiano de Bergman mora em Natal!


Leia a matéria completa no cadernodedomingo* de cidadedosreis.

* existe isso? O cadernodedomingo, não, é só uma jogada de marquetingue...

calendário


Há “exatos” 130 anos o senhor Thomas Edison fazia a primeira gravação de um som, no caso, a frase: Mary had a little lamb, versos de uma canção infantil.

Em New Jersey.

Não muito longe dali, e quase cem anos depois, Joan Baez, Richie Havens e Ravi Shankar, entre outros, subiam ao palco de Woodstock, no primeiro dia de peace&Love.

É difícil dizer se as milhares de crianças que foram concebidas na fazenda continuaram cantando que Maria tinha um carneirinho.




Paulo Mendes da Rocha remixado

Citei o nome do arquiteto e urbanista ontem. Botei até uns línques – mas a moçada tá esperta: a CartaCapital faz como as moças da Trip, não mostra tudo, só para os assinantes; a Folha é ainda mais radical, não mostra nada; e a Trip, mostra um bocado de coisas (inclusive as moças que não mostram tudo), mas – e não sei se é só em edições muito “velhas” – publica apenas a descrição do conteúdo.

Daí que entrei no sítio dos Frias, e cascavilhei na minha hemeroteca privada. Deu pra juntar um cesto de cajus. Chupem-os, de modo decente, claro, e façam uma vaquinha pro PMR passear de camelo nas dunas. Não precisa nem fazer nenhuma obra, quem sabe uma palestra pros nativos e colonos, e lançar seu novo livro. Se a vaquinha não der, falem com El síndico de Ciudad de los Reyes pra inteirar a passagem. Ou com a Associação de Decoradores da Província.





São políticas públicas que direcionam as cidades para um
destino ou outro. [2007]

A classe dominante indigna abandona a cidade e foge
para algum lugar onde não haja esse plano democrático. [2001]

Essa sociedade
amarga abandonou o centro da cidade e se enfiou no mato.
[Folha, 2007]

Você
abandona uma cidade e funda outra, como Alphaville, porque teme a liberdade.
[2007]

O abandono da cidade, a idiotização da idéia do verde, promovida pela
propaganda e financiada pela especulação imobiliária – para ela é mais fácil
abrir mato virgem e construir esses monstrengos de habitação –, deve ser
combatido veementemente. [2001]

Se você deixar degenerar, você reduz o valor
imobiliário, compra tudo de novo, reconstrói a cidade... Há quem viva só disso.
[Folha, 2007]

A idéia de escolher o lugar para morar é maligna. Está
submetida a essa especulação mercantilista de vender para você um lugar ideal
para morar. Vão vender uma casa de campo, uma casa na praia, aí lotear a praia e
poluir a baía.
[2001]

Os anúncios de jornais de domingo são um descalabro de
floresta de eucalipto abatida para fazer papel para imprimir asneira. [2007]

É evidente que a propaganda serve ao mal. [2001]

É tão estúpido cortar
uma árvore como fatiar a pedra azul de uma montanha de granito! [2001]

Precisamos cuidar das cidades. Falamos de água, ar, mas o que pode acabar
antes somos nós mesmos.
[2007]

A classe dominante, no Brasil, é a mais
pobre. [2007]

É lastimável você fundar e comprar um grande arrabalde e
chamar de cidade universitária. Como foi feita, nunca se pensou no transporte
público. Todo estudante tem um carro. A escola é pública, mas só dá milionário
ali. [Folha, 2007]

Vendi meu Chevette! Não tenho mais carro [...] Uma
bobagem você se enfiar dentro de um automóvel e ainda [...] pagar seguro. Como
posso comprar uma coisa da qual tenho que pagar seguro? Quer dizer que ela é
insegura? [2001]

Queimar petróleo para transportar uma pessoa de 60 quilos
numa lataria de 700 quilos, que não anda [devido aos congestionamentos], é um
erro grave.
[2007]

Prefiro levar um tiro que andar num carro blindado. [...]
Quando você entrar em casa, a casa é blindada, seu filho é blindado, sua mulher
é blindada, que besteira é essa?
[2001]

Se você é medroso e acha que não há
para todos e precisa defender aquilo só para você, você é um fascista. [...] O
medroso é a matéria-prima do fascismo. [2001]

O ideal do homem inteligente
contemporâneo está se esboçando com clareza: é não possuir nada. [2001]

A
idéia de cliente em arquitetura é idiota – o cliente na arquitetura é o gênero
humano. [2001]

A casa, enquanto coisa, é da cidade, não é de fulano ou
beltrano. [...] O resultado do nosso trabalho [como arquitetos] é eminentemente
público.
[2007]

A arquitetura como fato isolado, prédio por prédio, pode ser
um excelente instrumento de destruição da cidade. [2001]

A tevê é tão
horrível que todo mundo gosta de dizer que não vê.
[2001]

Religião não serve
pra nada, devia ser ultrapassada.
[2001]

Ricos ou pobres, parece que está um
querendo matar o outro. [2007]

Sempre que o dinheiro aparece em abundância,
deve ser evitado. É como a saúde: muita saúde faz mal, as pessoas que ficam
correndo, comendo só vegetais, correm o risco de não morrer nunca, terão que ser
abatidas a tiros [risos].
[2001]

Pode-se dizer para uma criança que ela não
deve fumar, mas se você fumar ninguém deve te impedir. [2001]


Paulo Mendes da Rocha, “Mestre de obras”, Revista Trip, no 94, outubro de 2001
Paulo Mendes da Rocha, “Uma cidade degenerada”, Revista CartaCapital, no 457, agosto de 2007
Paulo Mendes da Rocha, “O arquiteto em essência é um contrariado”, Folha de São Paulo, 13 de agosto de 2007


receita


Misture bem ½ litro de Antonioni com 1 xícara de chá de Greenway (concentrado), acrescente umas pitadas de Lynch – com parcimônia – e leve ao vapor exalando odores de um Oriente ao oriente do Oriente. Sirva aos neo-românticos em vasilhas de bambu e pauzinhos de inox: 2046, de Wong Kar-Wai. Tudo isso com o rádio da cozinha tocando Siboney.


terça-feira, 14 de agosto de 2007

Um artigo inédito de Pe. Sabino Gentili



Mãe Luiza,


lindo pedaço de Natal, onde a beleza da geografia se encontra com a dureza da história.


Há muito Mãe Luiza vem sendo procurada: de um lado a luta dos sem-casa, dos sem-terra, dos migrantes do interior; do outro lado a ganância da especulação imobiliária, que a começar da Via Costeira vem avançando feito trator-demolidor sobre barracos, casas e casebres...


Até agora a defesa do bairro tem sido feita pelo próprio bairro – com seus problemas de água, de areia, de miséria e de “maconheiros / marginais”. Normalmente a “gente de bem” não sabe conviver com problemas sociais dessa natureza. Agora, depois de muita luta dos moradores de lá e do muito esforço de organização das entidades populares do bairro, a classe média pode ocupar a área – o terreno está limpo, o bairro virou nobre, pra turista ver e se deliciar com a linda vista sobre o mar...


Abre-se há alguns anos a Via Costeira, incentiva-se o turismo... A euforia é grande, até porque “turismo traz mais ocupação”, se diz...


Isso à primeira vista parece até ser verdadeiro. Turista precisa ser bem acolhido, é preciso mostrar a ele uma boa fachada...


E o povo do bairro? “Eles estão acostumados a viver precariamente. A gente pode até fazer uns embriões de casa. É um pouco longe, lá em Macaíba, lá nos Guarapes... mas eles estão acostumados.”


Assim a Mãe Luiza, terra dos “malandros”, de tantos que alimentaram a curiosidade doentia e o sadismo das páginas policiais dos nossos jornais, vai mudando de cara. Assim como vai mudando de cara e de história tudo que é olhado com cobiça e com critérios meramente lucrativos.


Mãe Luiza:


Não deixa a ganância imobiliária arrancar o verde dos coqueiros e da mata, nem sujar de asfalto tuas dunas arenosas.


Impede que tua orla marítima seja poluída pelos esgotos dos hotéis.


E briga para permanecer bairro popular, do jeito que os moradores desde o começo vêm tomando conta de ti, para que todos lembrem que na vida há outros valores diferentes da ganância e do lucro acima de tudo.


Sabino Gentili
[escrito em 1989]

Sabino



Impossível pensar em Sabino como “Padre Sabino”, ou “Sabino Gentili”. Para mim – e pra muita gente – Sabino era apenas Sabino. Alguém tão próximo, que nos tocava a alma, intimamente. Com um gesto, uma palavra, um sorriso, uma atenção. No meio de um trabalho duro e diário, que consistia basicamente em abraçar os problemas “dos outros”, dos pobres, dos desvalidos, Sabino sempre encontrava tempo para ouvir problemas banais, de pequenos ou grandes burgueses como eu.

O texto inédito, encontrado “ao acaso” e relatado no post anterior, faz parte de uma série de coincidências felizes: a entrevista que o arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha concedeu à CartaCapital desta semana (que mereceria ser lida pelos 21 edis da Câmara Municipal de Cidade dos Reis, pressupondo que são alfabetizados); a lembrança de uma outra entrevista de Mendes da Rocha à revista Trip, procurada e encontrada (outubro de 2001); mais uma entrevista do arquiteto, ontem na Folha (para assinantes); um artigo de Osair Vasconcelos nO Poti que me ficou na memória e foi reencontrado na net por esses dias ("Um troféu para a intolerância", que comunga e complementa aquele de Sabino); os últimos acontecimentos na Província dos Reis. Neste caso, só a coincidência é feliz – mas, apesar do triste episódio, nos resta um consolo: parte dele não foi jogado pra debaixo do tapete. E se o que Mendes da Rocha diz vale para qualquer cidade que incha rapidamente, o que Sabino escreveu sobre Mãe Luiza pode hoje ser amplificado para toda cidade do Natal: “para que todos lembrem que na vida há outros valores diferentes da ganância e do lucro acima de tudo.”


Nariz de cera, ou, o “new journalism” papa-jerimum faz 18 anos




Em 1989 o subscrito era estudante de Jornalismo na Universitas de Província dos Reis. Não era um bom estudante, creio – metade do curso passei perambulando pelos corredores, a outra metade trabalhando numa agência de publicidade. Nesse meio tempo andei fazendo um jornaleco, não lembro se por diletantismo ou por obrigação curricular: o “Eco”.

É esse Eco, que não saiu do número zero, prova inconteste do seu potencial arrebatador, que encontro, chafurdando as velhas gavetas que sobreviveram às muitas mudanças, inclusive as de endereço.

Não deve ficar pra história. O expediente acusa Rildeniro Medeiros, Newton Cruz e euzinho aqui, como os “diretores responsáveis”. O editor era Flávio Resende, que emprestou seu registro profissional e mesmo assim teve escrito o sobrenome errado. Entre os colaboradores, Isaac Ribeiro (que editava com Robson e Carlos Magno o “Cebola faz chorar”), Maxell Batista e Marcello B. – que penso ser o carioca Marcello Brum, famoso entre nós pela curiosa história do seu pai, militar que tinha montado guarda na cela de Caetano Veloso quando da sua prisão pela ditadura.

Este número zero tem, entre outros, ao menos um inteiro parágrafo assinado por mim que é de uma idiotice e pieguice absurdas – transcrevo aqui o final, por vergonha absoluta do restante: “A garotinha agradeceu o presente da forma mais espontânea possível: com lágrimas nos olhos, traduzindo a emoção de todo o público presente.”

Pano rápido.

O jornaleco tinha até publicidade: Aky Modas (Rua João Pessoa, 267), CCAA, Hipócrates Colégio e Curso, Fisk, Armarinho Brasil e um histórico Chernobyl, quase ilegível, sem indicação do que fosse, endereço ou telefone – provando que o bar era mesmo alternativo.

Na mesma pasta meio mofada encontro outros textos, que dariam para mais uns três ou quatro números: Um artigo de Marília Maia Marques (que assinava como “3M”) sobre o “Balearic Beat – Body Music (A música do final do século)”, onde já anunciava os primórdios das réivis: “Ibiza deixou de ser apenas um balneário para os turistas europeus passarem seus feriados e se tornou a meca dos disc-jóqueis londrinos que recortam, juntam e colam sons e ritmos produzindo a chamada electro dance music” – poderia ter sido escrito ontem apesar dos 18 anos passados. Um artigo de Juliano Freire comentando os problemas do transporte urbano em Natal. Um artigo de Isaac Ribeiro comentando os problemas dos telefones públicos em Natal (“Não é de espantar que voltemos a ter que usar artifícios como as cartas e recadeiros na província do sol). Dois artigos de Flávio Rezende, um sobre rock soviético, outro sobre alimentação natural – onde implora a “D. Neide, Dr. Martins, Subhadro e a turma do sabor natural, SOS LANCHONETE NATURAL À NOITE, senão a maçã do pecado, com recheio de carne bovina, tentará os naturalistas esfomeados e perdidos na noite. Vários artigos e crônicas de Alexandro Gurgel. Uma carta de Rogério Cruz, elogiando a iniciativa e a “ousadia” do Eco. Um longo texto sobre “Informática Potiguar” escrito a mão (!) por um “especialista”.

E, maravilha, uma logomarca criada pelo enfant terrible do disáini potiguar, Afonso Martins – pra matar de inveja o pessoal da Cebola, que contava com Falves Silva na diagramação e arte-final. Infelizmente a marca de Martins nunca foi publicada.

Mas todo esse nariz de cera é só pra avisar que descobri entre estes textos, possivelmente pedidos aos colaboradores, uma pérola que vem muito a calhar nos dias de hoje: um artigo sobre Mãe Luiza escrito à máquina pelo padre Sabino Gentil.

Quase duas décadas depois, continua vivo – o artigo e também o trabalho de Sabino.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

um conto



Walflan de Queiroz está em minha casa


I


Walflan de Queiroz está em minha casa.
Tranquei-o no quarto da filha que viaja, longe das outras crianças e dos animais domésticos.
É assustador.
É assustador tê-lo em casa.
Lembra o Coringa de Batman, ainda mais disforme, as linhas borradas como uma extensa maquiagem d’alma derretida. Que estado é esse, que provém do sólido ao líquido e do líquido ao torpor de poeira de estrelas marinhas?
É assustador.
Não quero que ninguém o toque. Não quero que ninguém o veja. Porisso tranquei-o no quarto da filha que viaja. Quando ela voltar, onde o escondo, sem calabouço, sótão, castelo, cabine, mastro?
Assustador.
O Jokerman do Batman, na visão de Freud, o Lucian, não o Sigmund, acho eu, já nem sei mais.
Trancado no quarto, junto com os outros.
Quase escuto o seu coração, o som se arrastando por baixo da porta, forçando o batente, querendo sair. Se tábuas houvesse no chão invés da pobre cerâmica escarlate há muito teria escapado abrindo um rombo e nos levando a pique.
Walflan. Na minha casa! No quarto da filha que viaja (estará mesmo ela viajando? não é que tornou sem aviso?).
Vi apenas seu rosto, uma massa de cores gritantes exuberantemente trágicas. Os lábios, oh, os lábios! A comissura se unindo no centro da boca arrastando um cardume de estrelas e voadores no prumo das ventas. O nariz de boxeur bêbado. Os olhos, meu Deus, os olhos! Tão profundos que amargam as pessoas que fitar.
Cito José Ramalho no fim do parágrafo anterior, apresso-me em confessar. A Cidade dos Reis não perdoa deslizes, eis a prova, trancafiada no meu porão, digo, quarto da filha que viaja.
Quase quase sinto o odor de sargaços e coisas do mar. Quase quase abro a porta e me depararei com redes estendidas, latada, sextantes, bússolas desmagnetizadas, ilhargas, cavilhas, gurupés, cordas ressecadas.
Não foi inglêsa a língua que ouvi num sussurro que atravessou a porta fechada? Como poderia ter entrado Hart Crane senão a convite de Walflan? E essa agora, não é francês, entrecortado de risinhos abafados? Estão seguramente bêbados, os três! Eu disse três? Walflan, Crane, Rimbaud.
O mar alto se encapela na barra da casa. As ondas crescem agitadas. (Não alucino: moro mesmo à beira-mar). Sinto cheiro de pirataria no ar. Barris de Amontillado, garrafa de rum: tombou e veio rolando dar na porta. Bateu um som seco e profundo anunciando o desejo de fuga, de saque, motim.
Dessa vez, são as mulheres. Entreouço suas vozes seus silêncios sua dor e falta de piedade. Irene Porcel. Tereza. Annabel Lee. Francesca de Rímini. Denise. Tânia. Herna. Dinara. Todos nomes que definem sua inocência perdida.
Engana-se quem acredita que elas são os outros, os outros de que falei no início. Não. Aqueles eram os marinheiros, os marujos, os pescadores, os pássaros, os vaqueirinhos, os cães, gatos, touros de Espanha, areias de Portugal.
Também agora percebo aquilo que nominam coincidência: um dia antes de portá-lo à casa, a noite se fez mais escura e uma tormenta varreu o litoral vinda do sul. Os coqueiros quase foram arrancados.
Mas é como se diz: depois da tempestade vem a calmaria.
Assustadora.
Assustador.

II
Não resisto. Entreabro a porta, mesmo que por um instante. Quero que fuja. Que embarque. (Quase dizia: que seja feliz – mas isso, não, não posso). Que cruzem a linha do horizonte, todos eles: Annabel. Denise. Dinara. Edgar. Francesca. Hart. Herna. Irene. Jean Arthur. John. Newton. Paul. Tânia. Tereza. Walflan.
Eu.

Mário Ivo Dantas Cavalcanti
Madrugada de 20 de janeiro de 2007 – Lua Nova – Piranji de Dentro




Walflan de Queiroz retratado por Newton Navarro