sábado, 11 de agosto de 2007

Manhã de Sábado

Objeto não identificado dentro de outro não menos identificado, 2005


As manhãs de sábado eram destinadas à faxina pesada. E não havia faxina sem cera nem enceradeira.

Quem não se lembra do som de uma enceradeira encerando um sábado matutino não sabe o que perdeu.

Indescritível. Mesmo. Pra ilustrar, recorro, literal e metaforicamente, à poesia: o som de uma enceradeira está para uma manhã de sábado como Rilke para as Elegias de Balduíno, Maiakóvski para Liubliù, ou Bandeira pra Pasárgada. Na prosa, arriscaria escalar as duplas Joyce-Finnegans Wake, Proust-À sombra das raparigas em flor. Afinal, e não sou o primeiro a dizer, cada um tem sua madeleine.

A minha é um som. Que vem de longe, tão longe quão longe cheguei nessa rota absurda de vida e tempo redescoberto. Atravessa as janelas escancaradas do solar do vizinho, onde descansam lençóis e fronhas na ânsia imóvel de se livrarem do mofo cotidiano, cruza os paralelepípedos da rua estreita, ainda mornos na calidez da manhã, sobe aos saltos as escadas frias de mármore, o jardim suspenso e despretensioso coalhado de coroas-de-cristo, desliza sibilino pelo assoalho do corredor vazio, e nos encontra, já despertos mas ainda deitados na cama, o pijama entreaberto onde falta o previsível botão, os olhos totalmente abertos à liberdade da manhã sabatina.

Assim era nossa infância. Um suceder-se de dias de prisão seguidos da alforria, redenção, reconquista da liberdade do e no sábado. Dia de tomar café-da-manhã tarde, sem pressa, a farda amarrotada, suja, bem suja, imunda, porque ontem foi sexta-feira, e dane-se ela, ainda no cesto de roupas pra lavar, dia de passar o pente como bem quiser nos cabelos emaranhados ou de nem passar, os pés libertos do conga e do kichute – branco um, preto o outro.

Dia de vestir o calção mais gasto, puído e confortável. Sem cueca.

Dia de ver pela janela as bicicletas dos amigos chegando, uma após outra, um após o outro, todas elas jogadas em cima da grama ou na calçada sombreada ainda atapetada pelas flores do jambeiro, todas elas sem aquele varão metálico que se retraía através de uma mola, todas elas sem esse descanso metálico e para nós inútil, por isso era obrigatório tirá-lo fora, ainda que a bicicleta fosse nova, especialmente se nova fosse, porque para nós, naquela época, bicicleta boa era bicicleta velha, usada e abusada, gasta, o selim rasgado, também os pára-lamas retirados, para sempre no quarto de despejo, sinal de que tínhamos, sobre duas rodas, atravessado muitos e muitos sábados.

Em tudo, ao fundo, preenchendo as lacunas que nunca mais seriam preenchidas, o som modorrento da enceradeira, lustrando a manhã e as infinitas possibilidades de futuro.

Assim:



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