segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Agosto


Em 26 de agosto de 1856, duas brasileiras desembarcam no cais do Sul, em Bruxelas, de onde seguem para o Hotel da Rússia. Chegam cedo, ainda de madrugada e, embora cansadas, encontram disposição de conhecer parte da cidade, visitando o Palácio das Belas Artes, o Palácio de Justiça e o Hôtel de Ville.

A mais velha tem 45 anos. Dali a menos de dois meses completará 46. A mais nova tem pelo menos metade desses anos, dos anos da mãe.

Mãe e filha viajam pela primeira vez sozinhas. O outro filho ficou no Brasil, desde abril não se vêem, e é para ele que a mãe escreve, ao fim de um dia extenuante, acomodada num “belo e confortável quarto”:

“Caro filho e irmãos do meu coração,
O mês de agosto, que (sabem vocês) é tão funesto à minha felicidade, pela tríplice perda que imprimiu em minha existência, começou este ano mais triste e doloroso do que nunca. O coração confrangido, o espírito sempre abatido pela dilacerante recordação da morte da melhor das mães, eu via aproximar-se o primeiro aniversário do dia que a roubou à minha ternura.”

Ela continua, dizendo que reviu Paris com indiferença, que a cidade perdeu sua “costumeira magia”, tornando-se “monótona e quase insuportável, à medida que o triste aniversário se avizinhava”.

A avó do destinatário tinha morrido em 25 de agosto de 1855, no Rio de Janeiro, a terceira morte da “tríplice perda” na vida da remetente: primeiro o pai, assassinado no Recife em 17 de agosto de 1828, depois a morte do seu companheiro, em 29 de agosto de 1833.

Agosto era mesmo um mês de desgostos para aquela mulher, que se obrigava a novas viagens, em busca de “um horizonte mais amplo, em atmosfera mais livre”, para curar a dor recorrente e trabalhar um luto que se renovava sem descanso: “lembrava-me os rápidos momentos de minha felicidade, que infelizmente se esvaíram, pobre de mim! apenas eu começava a apreciá-los”.

A mulher era Nísia Floresta Brasileira Augusta, para muitos, a Eva da literatura dita “potiguar”, a madrinha escolhida por Henrique Castriciano para a sua cadeira na Academia de Norte-rio-grandense de Letras.

Não era a primeira vez que estava na Europa – de 1849 a 1852 morou ali com os dois filhos, Augusto Américo (o destinatário da carta, e que quase morria de febre tifóide no agosto, sempre agosto, de 50) e Lívia Augusta, batizados assim em homenagem ao companheiro e pai, Manuel Augusto de Faria Rocha. (Também ela mesma, com aquele nome, auto-batismo extenso, sonoro e exótico, para onde levou, como disse Hélio Galvão, “sua aldeia e sua pátria”, faria uma terceira homenagem ao homem da sua vida.)

Nesse 1856, no mês anterior, antes de escrever a carta ao filho no Hotel da Rússia, às vésperas de agosto, ela se refere a si própria, caminhando às margens do Sena, “com o coração inchado de lágrimas, com a cabeça encurvada sob um fardo de melancólicos pensamentos que levavam para além do Atlântico toda minh’alma!...”

Um ano depois, insiste na associação com o mês desgostoso: “Agosto chegava ao seu fim. Uma temperatura de 30 graus parecia quase sufocar os habitantes de Paris.”

Nísia morreria na França, não em agosto mas em abril.

E, ironicamente, é em agosto que seus restos mortais são embarcados em Marselha no navio “Loide-Brasil”, sessenta e nove anos depois de sua morte, numa homenagem duvidosa que fazem seus conterrâneos.

O navio só chegaria ao Brasil no mês seguinte, em setembro de 1959.

Em mais uma homenagem questionável e numa ironia circular e autofágica, Nísia Floresta Brasileira Augusta – que nasceu Dionísia Gonçalves Pinto, em Papari – é sepultada mais uma vez, sem descanso, numa cidade que desde 1948 tem seu pseudônimo.

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