A idéia não é minha, esclareço de cara. É de Antonio Tabucchi, um escritor italiano que durante alguns anos, especialmente no meu exílio pessoal e geográfico, exerceu sobre mim um fascínio que beirou a obsessão.
É de Tabucchi, pois, a idéia de elencar lugares adequados ao suicídio, ou, como diz, ao “voluntario trapasso” – a passagem voluntária. Está no último “quase-conto” de um livrinho simpático, I volatili del Beato Angelico (Palermo: Sellerio, 1994), sob o título Última chamada (que poderia também ser traduzido, desde que ao pé da letra, como Último convite – mas me parece mais próxima a primeira tradução que escolhi, como um aviso sonoro num aeroporto, chamando os passageiros para uma derradeira viagem).
A um certo ponto ele esclarece: “Indicar um lugar onde ainda podemos suicidarmo-nos corretamente, em total liberdade (...), não deveria ser entendido como um serviço de utilidade pública (até poderia sê-lo), mas como um convite à reflexão (...) sobre a liberdade: um abstrato espírito de iniciativa, exercido sobre nós mesmos, e que pode ser colocado em prática, sem cair nas formas mais vis e vulgares às quais o suicídio parece inevitavelmente relacionado nos países considerados industrialmente avançados (...)."
Apaixonado por Portugal e pela língua portuguesa (foi o primeiro tradutor de Zero, de Ignácio Loyola Brandão, publicado na Itália antes mesmo que no Brasil), a escolha de Tabucchi sobre Lisboa, como um lugar “cheio de possibilidades”, é mais que natural: é o desejo de morrer onde gostaríamos de viver.
(Houve uma época onde essa escolha – de morrer de um modo não natural – caía naturalmente sobre Veneza.)
Pragmático, Tabucchi começa justificando sua escolha pautando um problema inerente à morte, conseqüência inevitável e incontornável: o cadáver. Que fazer com o corpo inerte, morto? Consulta-se a lista telefônica (como hoje não se faria mais neste admirável mundo pseudo-novo de pontos cons e blogspots) em busca dos serviços fúnebres: “Dezesseis páginas nas ‘páginas amarelas’ são muitas, deve-se admitir, especialmente se levarmos em conta que Lisboa não é uma cidade enorme.”
Tenho um catálogo em casa, 06/07, da Cidade dos Reis: não passa de duas páginas, nem seguindo a recomendação “consulte também... cemitérios”. Acho que nós, principezinhos, não dispomos mais que uma dúzia de agentes pra dar fim a esse objeto inútil que conduzimos pra lá e pra cá, desgraçadamente. E pra dar início ao moto perpétuo que só me faz recordar Bowie: “Ashes to ashes, dust to dust...”
“Resta apenas a dificuldade da escolha” , continua o escritor. Daí a publicidade, farta, exuberante, desavergonhada, das funerárias lisboetas. Não vou me deter nas observações do autor, vou direto ao amarelo das nossas páginas.
A mais “importante”, ou ao menos assim é se me parece, dado o anúncio de página inteira, tem nome de santo e ostenta o dístico “desde...”, o que confere antiguidade e, conseqüentemente, respeito e tradição. Não se deve, claro, entregar o próprio corpo a qualquer empresa de fundo de quintal, aberta ontem – sabe lá se existirá daqui a algumas décadas, quando nosso cadáver... deixa pra lá. A qualidade dos serviços é listada em quase meia página: vai das urnas em “diversos padrões” à “higienização” através de “Tanatopraxia” (que obviamente refere-se a Tânatos, deus grego da morte, e diz respeito, informa o Houaiss, à qualquer técnica de conservação de corpos.
Mas, mais importante, as flores são naturais, o acompanhamento é profissional, a capela é ecumênica (estacionamento próprio), e, para os mais vaidosos, placas, anúncios, livros de presença, fazem parte do item “Homenagens”.
Escolhido o que fazer – e através de que empresa – com o próprio corpo, resta ao pretenso suicida, seguindo o roteiro de Tabucchi, determinar lugar e forma de morrer. “Por sua estrutura e conformação, me parece a vocação natural de Lisboa: o salto.” O salto no vazio é uma atração soberana para os “espíritos em fuga”, diz o italiano, e “contém uma espécie de rebelião à condição humana de bípede, tende ao espaço, às grandes dimensões, ao horizonte.”
Lisboa é, então, a cidade perfeita. Organizo uma pequena lista com as informações do autor:
- Aqueduto das Águas Livre e Torre de Belém (“lugares históricos para suicídios históricos”)
- Elevador de Santa Justa (“lugares refinados para suicídios art-déco”)
- Ponte 25 de abril (“lugares mecânicos para suicídios construtivistas”)
- Estátua do Cristo-Rei (“indiscutivelmente o mais adapto ao salto”, ainda mais porque, embaixo, corre o Tejo, “pronto a acolher, a arrastar o corpo do voluntário, tornando inútil até as mais solícitas atenções das agências funerárias de Lisboa”)
Atrevo-me a adaptar a lista à Cidade dos Reis:
- Forte dos Reis Magos e Igreja do Galo (temo que não seja suficiente e invés de um corpo morto teremos um aleijado)
- Midway Mall (nossa idéia de requinte, com o mesmo problema anterior, além de que teríamos um trabalhão pra quebrar os vidros, e a passarela é para pedestres, isto é, sem-carros, o que descarta a maioria de nós, a gente de bem da Província)
- Ponte de Igapó (a molecada salta de lá sem quebrar o quengo, o que pra nós, claro, é sinal que não conseguiremos escapar ilesos – o problema é a poluição do Putigy)
- Ponte de Todos (resta saber quando será inaugurada, o que a torna um lugar perfeito para os suicídios eternamente adiados)
Mas o melhor suicídio de todos é, realmente, aquele não concluído, como a tentativa frustrada dos quatro cavaleiros do apocalipse às margens do Capibaribe, reconstituída no post abaixo, Roleta Russa. Ainda mais depois da visão de um antonioni – A noite. E que coincidiu com a notícia, ontem, de um documentário americano, The bridge, sobre suicídios na ponte de San Francisco. Daí para relembrar do roteiro de Tabucchi foi um pulo. Ou um salto.
Um comentário:
Puxa, o nosso querido Potengi virou mesmo Putigy? Um bom lugar pra se suicidar em Natal? Deixe-me ver... deixe-me ver...
Postar um comentário