“Sempre tive uma grande admiração, e ainda tenho, pela sociedade sueca, pelo ‘welfare’ [state], pela social-democracia de Olaf Palme.”
Começa assim, em tom de resgate da memória perdida, a explicação de Alberto Criscuolo, passaporte italiano, cidadão do mundo, para o como veio a ser o tradutor do roteiro de O sétimo selo, a obra-chave de Ingmar Bergman.
Morando em Natal há quase dez anos, interrompidos aqui e ali por curtas temporadas em Roma, onde ainda mantém um apartamento, Criscuolo começou a aprender sueco trabalhando na fábrica da Alfa Romeo. “Três meses de trabalho duro, mas com um salário muito próximo aos dos dirigentes – o que já demonstra uma profunda justiça social.”
Alguns colegas do jovem operário italiano eram refugiados políticos, alguns da Eritréia, outros do Peru. Talvez tenha começado ali, na fria Escandinávia, junto a outros exilados oriundos de climas quentes, seu fascínio pelo sol. E sua admiração por uma sociedade mais justa e igualitária:
“Era um tratamento de primeira classe concedido a nós trabalhadores que não mais encontrei em nenhum lugar do mundo, seja pelo salário, seja pelo respeito à pessoa humana.”
Em 1988 ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade de Estocolmo e ali concluiu o doutorado. Foram oito meses, que ele define como “um período dourado”. Ao lado dos estudos, os esportes invernais e as festas universitárias ajudavam a construir uma atmosfera de alegria constante. Mesmo assim, o italiano reconhece que o sangue latino encontra ainda algumas barreiras no norte do mundo – “fica difícil, para nós, latinos, inserir-se e compartilhar completamente dos hábitos dos suecos.”
A obra de Bergman já lhe era conhecida, desde os tempos da Universidade de Roma, na Faculdade de Línguas e Literatura Estrangeira. “Fiquei logo fascinado”, lembra, especialmente pelo Det sjunde inseglet, título original de O sétimo selo. Depois do doutorado, volta a Roma, e em 1991 retorna a Estocolmo com uma idéia fixa: traduzir o roteiro. Para a sua surpresa só encontra edições em língua inglesa. Vai à Biblioteca da Universidade, vai à Biblioteca Real, nada. “Eu era prisioneiro do desejo absoluto de possuir o livro, de tê-lo vizinho, de reler algumas partes, de reproduzir na primeira pessoa os vários diálogos do filme”, escreveu no posfácio da edição italiana (Milano: Iperborea, 1994).
Encontra uma cópia do original datilografado na cinemateca do Filminstitutet. Não era permitido reproduzir nem tirar o documento da sala de leitura. Sentindo-se “um contrabandista”, copia trechos do roteiro em pequenos pedaços de papel, sem ser visto. Volta ao instituto, pede uma cópia. Sugerem que procure a editora de Bergman, a Norstedts Förlag, que consulta o diretor: “Bergman aceitou”, resume, ainda contente com o acontecido há mais de quinze anos.
Durante a tradução, Criscuolo procura respeitar as peculiaridades do texto original, que define como “muito próximo à poesia”. O roteiro apresenta diferenças evidentes em relação ao filme: “É mais rico das indicações que Bergman faz aos atores e se percebem os cortes que ele fez na versão cinematográfica.”
O tradutor não teve nenhum contato direto com o autor: “Tinha um caráter muito reservado e não quis forçar um encontro. Vivia só, numa ilha muito bela e selvagem, Fårö”.
Em 1994 sai a primeira edição de Il settimo sigillo, o 41º de uma coleção dedicada a autores nórdicos. “Até hoje é o livro mais vendido pela editora, já está na sétima edição”.
Um ano depois Alberto Criscuolo parte para o Brasil, um mês em Salvador, carnaval. “Voltei para a Itália com o ‘mal del Brasile’”, conta, numa referência cruzada à Síndrome de Stendhal, que acometia os viajantes estrangeiros diante das obras de arte italianas.
Viaja pela Amazônia, sempre só. Durante seis meses vive em Belém do Pará. Conhece todas as grandes metrópoles brasileiras. “Quando um amigo de Natal me convidou – ou fui eu quem o obrigou a convidar-me – vim conhecer a cidade.”
As lembranças de então chocam-se com a sua atual visão da cidade: “Natal em 98 era uma pequena jóia – mar, sol, as pessoas simples e hospitaleiras. Em menos de dez anos, sem um plano regulador, com arranha-céus que lembram a periferia de Roma, com um investimento pesado num turismo miserável, uma cidade sóbria e alegre, como Natal, mudou, com a chegada de grandes quantidades de dinheiro estrangeiro, lavagem de dinheiro sujo, especulações em cimento e carne humana...”
A imagem de uma cidade inteira jogando xadrez com a morte me vem em mente, enquanto Alberto continua sua reflexão sobre a perda dupla recente. “Bergman e Antonioni são os dois últimos diretores que deixam o século passado finalmente às nossas costas. Bergman nos deixa uma grande mensagem, primeiro artística, depois humana, em qualquer modo atemporal.”
O tradutor não vê muitas semelhanças entre o conterrâneo e o sueco, senão “o desejo em comum de representar a vida, enfatizando a incomunicabilidade do homem”. Enquanto Antonioni tem uma obra “mais cinematográfica”, o olhar de Bergman (“e seu coração”, acrescenta) é sempre teatral:
“É o testemunho da melhor tradição nórdica, de Ibsen, de Strindberg. Talvez o cineasta mais próximo dessa perspectiva bergmaniana seja Buñuel (basta recordar O anjo exterminador e Simão do deserto, por exemplo).”
Para Alberto Criscuolo, Blow-up é o melhor filme de Antonioni. Entre seus bergmans preferidos cita Morangos silvestres (57), O olho do demônio (60) e O rosto (58). Além, é claro, de O sétimo selo.
Em tempo: o tal “amigo de Natal”, a que se refere Alberto, é o subscrito – que, absolutamente, não se sentiu coagido a convidá-lo. Conheci Alberto, realmente, em Roma. Era fascinado pelo Brasil e me olhava com um sentimento duplo de admiração e confusão: que fazia eu ali, longe do Brasil com que ele tanto sonhava? É claro que, como nos filmes franceses, cherchez la femme – a de Alberto era uma morena, quase índia, estudante de odontologia em Belém.
Da minha parte, a primeira vez em que fui à sua casa, além de me surpreender com o gigantesco apartamento, um pequeno detalhe me chamou ainda mais a atenção: um pequeno volume de Il settimo sigilo – e a revelação de ser ele o tradutor. Era a cópia que ainda hoje tenho comigo.
Quando voltei para Natal, no final da década de 90, ele me liga um dia: estava no Brasil, a chuva diária sobre a capital paraense, o calor amazônico, os mosquitos, tudo o incomodava – é óbvio que a história de amor tinha acabado. Eu o convidei para conhecer Natal, como sempre fiz com meus amigos “estrangeiros”. Ele veio. Ficou. Vagabundou um pouco. Teve uma jangada de pesca. Trabalhou com hotéis. Foi guia para os turistas conterrâneos. Hoje comanda o Projeto Poseidon, que, além de oferecer passeios em barco a vela, incentiva a prática da natação em mar aberto. Já tem programado para o novembro próximo uma competição de 2.000 metros em Ponta Negra. “Não será apenas um evento esportivo, mas também social”, explica Alberto, que tem um desafio ainda maior a conquistar e muito mais extenso do que dois quilômetros de oceano ou um roteiro de Bergman: abrir uma escola de vela para meninos e meninas carentes.
Se Bergman está colocado à esquerda e Antonioni à direita, quem, na sua prateleira, seria o todo poderoso do cinema? Cartas eletrônicas para a redação virtual de cidadedosreis. (A presença dos diretores e filmes na foto não quer, absolutamente, induzir os leitores a nada – foram apenas escolhidos rapidamente para um retrato na parede deste sítio.)
7 comentários:
Sem dúvida, uma grande revelação, meu caro, e um belo texto. Curiosamente, gosto de todos os filmes dispostos em dvd por você. Uns mais, outros menos. Parabéns. E um abraço.
pois, "vote", moacy! sei q escolher um só é limitante, mas diga aí quais são os mais e,ou os menos - e qual o diretor q vosmicê sentaria ao lado do italiano e do sueco... (e obrigado pelas participações... faz esse "blogueiro" sentir-se menos só). abraços,
Vamos lá, pois. Os "mais": L'Avventura, Persona, 2001, Cidadão Kane, Era uma vez no oeste, Jules et Jim, Dogville. Os "menos" (embora sejam bons e/ou ótimos): Cidade dos sonhos, As invasões bárbaras, Ran, A doce vida, Je vous salue Marie. O diretor? Os diretores: Welles, Kubrick, Godard e, provavelmente, Leone. Claro que eu gosto muitíssimo de outros diretores, de Buñuel a Buster Keaton, de Renoir a Vertov, de Mizoguchi a Visconti, de Dreyer a Straub, e assim por diante. Um abraço.
Palpitando! Conduzo Fellini (prazer ainda q virtual)p o lugar ao lado.
Lembro Zabriskie Point, do alto dos meus, então 18 anos (ahora lejos).
E ainda precisamos da Festa de Babette e Dersu Uzala.
E eu descobri por tabela (de incerta forma também periódica, visto o tempo da descoberta) que também conheço o tradutor de Bergman que mora nesse point (que assim vira meio Zabriskie) chamado Natal. E concordo com a Cláudia acima (Cardinale?), nessa Festa de Babette, de norte a Dersu precisamos exalar Uzala!!!
oi Mário,muito bom este seu blog,parabéns!!És o Mário de Pola??Saudações da índia,hoje odontóloga,de Belém.Foi realmente magnífico o trabalho de Alberto!
sou sim, athe (o "mario de pola")... estamos por aqui (natal) se quiser meu email é marioivo@yahoo.com.br - bom saber de vc...
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