segunda-feira, 13 de agosto de 2007

um conto



Walflan de Queiroz está em minha casa


I


Walflan de Queiroz está em minha casa.
Tranquei-o no quarto da filha que viaja, longe das outras crianças e dos animais domésticos.
É assustador.
É assustador tê-lo em casa.
Lembra o Coringa de Batman, ainda mais disforme, as linhas borradas como uma extensa maquiagem d’alma derretida. Que estado é esse, que provém do sólido ao líquido e do líquido ao torpor de poeira de estrelas marinhas?
É assustador.
Não quero que ninguém o toque. Não quero que ninguém o veja. Porisso tranquei-o no quarto da filha que viaja. Quando ela voltar, onde o escondo, sem calabouço, sótão, castelo, cabine, mastro?
Assustador.
O Jokerman do Batman, na visão de Freud, o Lucian, não o Sigmund, acho eu, já nem sei mais.
Trancado no quarto, junto com os outros.
Quase escuto o seu coração, o som se arrastando por baixo da porta, forçando o batente, querendo sair. Se tábuas houvesse no chão invés da pobre cerâmica escarlate há muito teria escapado abrindo um rombo e nos levando a pique.
Walflan. Na minha casa! No quarto da filha que viaja (estará mesmo ela viajando? não é que tornou sem aviso?).
Vi apenas seu rosto, uma massa de cores gritantes exuberantemente trágicas. Os lábios, oh, os lábios! A comissura se unindo no centro da boca arrastando um cardume de estrelas e voadores no prumo das ventas. O nariz de boxeur bêbado. Os olhos, meu Deus, os olhos! Tão profundos que amargam as pessoas que fitar.
Cito José Ramalho no fim do parágrafo anterior, apresso-me em confessar. A Cidade dos Reis não perdoa deslizes, eis a prova, trancafiada no meu porão, digo, quarto da filha que viaja.
Quase quase sinto o odor de sargaços e coisas do mar. Quase quase abro a porta e me depararei com redes estendidas, latada, sextantes, bússolas desmagnetizadas, ilhargas, cavilhas, gurupés, cordas ressecadas.
Não foi inglêsa a língua que ouvi num sussurro que atravessou a porta fechada? Como poderia ter entrado Hart Crane senão a convite de Walflan? E essa agora, não é francês, entrecortado de risinhos abafados? Estão seguramente bêbados, os três! Eu disse três? Walflan, Crane, Rimbaud.
O mar alto se encapela na barra da casa. As ondas crescem agitadas. (Não alucino: moro mesmo à beira-mar). Sinto cheiro de pirataria no ar. Barris de Amontillado, garrafa de rum: tombou e veio rolando dar na porta. Bateu um som seco e profundo anunciando o desejo de fuga, de saque, motim.
Dessa vez, são as mulheres. Entreouço suas vozes seus silêncios sua dor e falta de piedade. Irene Porcel. Tereza. Annabel Lee. Francesca de Rímini. Denise. Tânia. Herna. Dinara. Todos nomes que definem sua inocência perdida.
Engana-se quem acredita que elas são os outros, os outros de que falei no início. Não. Aqueles eram os marinheiros, os marujos, os pescadores, os pássaros, os vaqueirinhos, os cães, gatos, touros de Espanha, areias de Portugal.
Também agora percebo aquilo que nominam coincidência: um dia antes de portá-lo à casa, a noite se fez mais escura e uma tormenta varreu o litoral vinda do sul. Os coqueiros quase foram arrancados.
Mas é como se diz: depois da tempestade vem a calmaria.
Assustadora.
Assustador.

II
Não resisto. Entreabro a porta, mesmo que por um instante. Quero que fuja. Que embarque. (Quase dizia: que seja feliz – mas isso, não, não posso). Que cruzem a linha do horizonte, todos eles: Annabel. Denise. Dinara. Edgar. Francesca. Hart. Herna. Irene. Jean Arthur. John. Newton. Paul. Tânia. Tereza. Walflan.
Eu.

Mário Ivo Dantas Cavalcanti
Madrugada de 20 de janeiro de 2007 – Lua Nova – Piranji de Dentro




Walflan de Queiroz retratado por Newton Navarro

3 comentários:

Anônimo disse...

Que maravilhoso susto!!! Você não dá conto sem dó... só o mar salteado... o navio dos piratas pirados aporta na porta entre/aperta o coração...

ComentadorDuCanto disse...

Grande e sensivel artista potiguar: esse é Newton Navarro.

vou deixar aqui uma poesia so mesmo que acho muito... ah, só lendo:

A CADEIRA



O alto corpo se curva,

Quebram-se as linhas

E partidas formas lentas

Se debruçam.

Do vivo traço que era, de pé,

Como haste, erguido,

Em três planos se dispersa.

Vivo olhos, agudamente,

Percorrem a sala sem lume...

Dois seios pulsam, solenes.

As mãos uma flor seguram

Suspensa sobre o regaço.

E o sexo e a flor se ocultam

No sem espaço da curvas.

Pernas suspendem ligeiras,

Os pés, e as alpargatas

Caem no vazio onde foram

Sólidas raízes do corpo

Que a cadeira despedaça.

E na sombra

Sem movimento,

Todo o corpo adormecido

Sobre o corpo da cadeira

Mulher de amor ausente,

Talha na sombra envolvente

Vivo relevo de carne

Inútil sobre a madeira.

ComentadorDuCanto disse...

grande e sensivel artista potiguar: achei otimo vcs publicarem um desenho de Newton Navarro, a proposito vou deixar uma poesia dele:


A CADEIRA
O alto corpo se curva,
Quebram-se as linhas
E partidas formas lentas
Se debruçam.
Do vivo traço que era, de pé,
Como haste, erguido,
Em três planos se dispersa.
Vivo olhos, agudamente,
Percorrem a sala sem lume...
Dois seios pulsam, solenes.
As mãos uma flor seguram
Suspensa sobre o regaço.
E o sexo e a flor se ocultam
No sem espaço da curvas.
Pernas suspendem ligeiras,
Os pés, e as alpargatas
Caem no vazio onde foram
Sólidas raízes do corpo
Que a cadeira despedaça.
E na sombra
Sem movimento,
Todo o corpo adormecido
Sobre o corpo da cadeira
Mulher de amor ausente,
Talha na sombra envolvente
Vivo relevo de carne
Inútil sobre a madeira.